Empréstimos sem risco: Os privilégios dos credores da dívida pública

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Fábio Melges*

O consenso fordista/keynesiano pressupunha crescimento econômico para redistribuição das políticas do Estado do bem-estar social, o welfare-state (Harvey, 1992). A partir do final dos anos 1970, a crise do modelo keynesiano, aliado ao colapso do regime soviético abriu campo para uma profunda mudança política liderada por Margareth Thatcher e Ronald Reagan, ideologicamente baseada nos escritos de Hayek e Friedman , chamada de neoliberalismo (HARVEY 1992; HARVEY 2008; HOBSBAWN, 1998).

A crise da estagflação do modelo keynesiano, jogou nas costas dos trabalhadores a conta a pagar. Culpava-se o welfare-state pelo que era uma crise estrutural do capitalismo, crise de acumulação, e assim achava-se a resposta ideológica para a diminuição de direitos do trabalho, o ataque a sindicatos e o começo da desregulamentação dos bancos que culminou na grave crise de 2008, outra crise estrutural de acumulação.

A desregulamentação dos bancos levou ao que hoje é chamado de Capitalismo Financeiro. Segundo Marques (2016) hoje apenas 28 grandes bancos controlam os Estados nacionais mantendo-os reféns, o autor usa a expressão Hidra para se referir a estes bancos, que disciplinam os Estados e os mantém reféns. Ainda segundo o autor, a dívida pública mundial em 2016 era de 59 trilhões de dólares e estes bancos, possuíam juntos, no mesmo período, um estoque de ativos de 50 trilhões de dólares.

Para pagar os juros e estas dívidas os Estados tributam pesadamente seus cidadãos e, em troca, oferecem pouco serviço, acabando com as proteções do estado do bem-estar. Como diz Harvey (2008) “a extração de tributo via mecanismos financeiros é uma velha prática imperial”. O império aqui é a Hidra.

O capital, na sua forma mais pura, “não é algo e sim um processo” (HARVEY, 1992). Os Estados nacionais, agora amparados no arcabouço teórico legal do neoliberalismo, cujos pressupostos são atualmente os da Nova Economia Institucional, cujas bases são a teoria dos contratos, os direitos de propriedade e o oportunismo do agente (COASE, 1998; GOMES, 2004; NORTH, 1991), entre outras questões, mediante o arcabouço legal dos Estados, protege grandes agentes da democracia de fato. São os contratos defendendo a assimetria de informação, o uso da teoria em favor dos conhecedores dos fatos em detrimento da maioria da população.

Além de garantir os contratos para os donos do capital, a teoria também prevê situações para diminuir os Custos de Transação, que são, de forma resumida, os custos para fazer as transações e gerenciar contratos, diminuindo riscos dos agentes e do chamado “oportunismo”.

Neste sentido se encaixa a cláusula CAC, que é uma cláusula que visa proteger o credor e diminuir custos de transação às expensas da soberania do Estado (FATORELLI, 2006).

O privilégio da dívida é o privilégio do Capital. Segundo Marques (2016) aproximadamente 6 trilhões de dólares foram transferidos para paraísos fiscais entre 2007 e 2009 – muito disso pouco difundido na mídia – no escândalo conhecido como Panama Papers, entre outros escândalos de evasão. Logo os Estados tributam os trabalhadores, mas não o Capital. Têm-se assim um círculo vicioso em favor do Capital descrito da seguinte forma por Marques (2016):

1. Os impostos desviados que vão para os paraísos fiscais são captados pela “Hidra”, os grandes bancos.

2. Os bancos emprestam aos Estados nacionais com juros altos.

3. Os Estados tornam-se devedores crônicos tendo que extrair tributos pesados dos cidadãos para pagar os altos juros. E assim,

4. Fomentar a ideologia que é o cuidado ao povo, o Estado do bem-estar que é gigantesco e perdulário e por isso são necessárias políticas de austeridade.

Para garantir o pagamento os países mais pobres devem, segundo Harvey (2008) extrair mais valia de sua população empobrecida para pagar banqueiros internacionais. Ainda segundo o autor, citando Stiglitz, “que mundo peculiar este em que países pobres estão na verdade subsidiando os mais ricos”.

No Brasil há também todo um arcabouço legal para privilegiar o Sistema da Dívida (FATTORELLI, 2012). Para a autora (2012) todo o modelo econômico brasileiro, o que de certa forma está corroborado pelos autores já citados neste texto, está desenhado para atender os interesses dos grandes credores, entre eles:

• Poder exacerbado dos bancos.

• Financeirização baseada em papéis.

• Liberdade total para os fluxos financeiros.

• Ausência de transparência nas negociações que geram o endividamento público.

• Prioridade para o controle da inflação ancorado em política de juros altos.

• Privilégios tributários.

A política de subir ou baixar juros, por exemplo, defesa do pensamento monetarista, que é base da ideologia neoliberal, possui para muitos economistas valor como instrumento de controle da inflação. Contudo, só é efetivo para inflação de demanda, e o caso brasileiro, a inflação é na maior parte das vezes, de custos: alta do dólar, alta do petróleo ou preços administrados pelo governo. Nestes casos subir juros não é efetivo para combater a inflação. Há indícios aí, neste caso, de favorecimento dos credores, visto que juros altos é rentabilidade da dívida. E para pagar esses juros o Estado brasileiro precisa taxar seus cidadãos e diminuir seus direitos. São os tentáculos da Hidra tornando os brasileiros refém do Sistema da Dívida e mantendo os privilégios deste sistema.

A saída para acabar com os privilégios da dívida passa por uma radicalização e aprofundamento da democracia – a exemplo do que ocorreu na chamada “Revolução da Islândia ” -, exigir a auditoria cidadã da dívida, criar um mecanismo cidadão de auditoria permanente da dívida respeitando a soberania nacional e os princípios de transparência.

* Trabalho de Conclusão do Curso de Ensino à Distância Dívida Pública Brasileira e suas consequências para os diversos segmentos sociais – Auditoria Cidadã da Dívida: Por quê? Para quê? Como? 

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1 Friedrich Hayek, economista austríaco. Milton Friedman, economista da escola de Chicago, EUA.

2 Estagflação: desemprego (causado por uma recessão: ou seja, diminuição das atividades produtivas) acompanhado de inflação. Este tipo de evento era considerado impossível pelos teóricos keynesianos.

3 Fruto da crise de 2008, em 2009 o povo islandês se rebelou e exigiu a renúncia de toda as autoridades. O povo então organizado proclamou uma nova constituição, nacionalizou os bancos e decidiu não pagar as dívidas que o Estado havia contraído. Fonte: nacionhttp://operamundi.uol.com.br/dialogosdosul/porque-sera-revolucao-da-islandia-sumiu-da-midia/13012016/

 

Bibliografia

COASE, R. The new institutional economics. The American Economic Review, v. 88, n. 2, p.72-74, mai. 1998.

GOMES, F.G. A nova economia institucional (NEI) e o (sub) desenvolvimento econômico brasileiro: limites e impossibilidades de interpretação. In: Sep – Encontro Nacional de Economia Política. Uberlândia. Anais, 2004.

FATTORELLI, M.L. Caderno de Estudos – A Dívida Pública Brasileira em Debate. Brasília, 2012.

FATTORELLI, M.L. Mais Poder para os Bancos com a Cláusula CAC, 2006.

HARVEY, D. Condição Pós-Moderna. 17ª. Edição. São Paulo: Editora Loyola, 1992.

HARVEY, D. O neoliberalismo – história e implicações. São Paulo: Edições Loyola, 2008.

HOBSBAWM, E.J, Era dos extremos. 2ª. Edição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

MARQUES, L. Capitalismo e Colapso Ambiental. 2. Ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2016.

NORTH, D. C. Institutions. The Journal of Economic Perspectives, Vol. 5, No. 1. pp. 97-112, 1991.