Causa Operária entrevista Fattorelli

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A dívida pública afeta diretamente a vida de todo cidadão brasileiro

Brasil – PCO – O Jornal Causa Operária entrevistou a Maria Lucia Fattorelli que é auditora fiscal e coordenadora da organização brasileira Auditoria Cidadã da Dívida. Foi membro da Comissão de Auditoria Integral da Dívida Pública (CAIC) no Equador em 2007-2008 e também participou ativamente nos trabalhos da CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a dívida) realizada no Brasil. Atualmente, lançou o livro A dívida pública em Debate.

Causa Operária – Qual é o objetivo do movimento Auditoria Cidadã da Dívida?

O objetivo da Auditoria Cidadã da Dívida é investigar e revelar a verdade sobre o processo de endividamento, a fim de fornecer substrato à população para que, soberana e democraticamente, decida sobre os rumos do país. Para tanto, promovemos a articulação entre as entidades da sociedade civil representativas dos mais diversos segmentos (movimentos sociais, sindicatos de trabalhadores, associações, federações, igrejas, pastorais sociais, sociedades de classes, centrais sindicais, fóruns etc.), bem como cidadãos independentes, a fim de realizar estudos, debates, eventos, publicações didáticas, e cobrar a necessária transparência que deveria ser proporcionada pelo Estado.

A dívida pública afeta diretamente a vida de todo cidadão brasileiro, pois o pagamento dos elevados juros e amortizações tem absorvido a parcela mais relevante dos recursos nacionais, afetando todas as áreas sociais.

É por causa da dívida que não existem recursos suficientes para o atendimento dos direitos sociais em nosso rico País. Além disso, a dívida tem servido de justificativa para as privatizações e para a imposição de medidas econômicas danosas à Nação. Por isso a dívida pública carrega grande responsabilidade pela profunda desigualdade social existente no Brasil.

A auditoria da dívida permite conhecer a origem do endividamento público, quem se beneficiou desse processo, quais os fatores que influenciaram em seu crescimento e onde foram aplicados os recursos, de modo a verificar sua consistência, validade e legitimidade. O relatório de auditoria é uma ferramenta que permite ações na esfera jurídica, política e social, a fim de reparar danos e punir responsáveis por práticas irregularidades que provocaram danos patrimoniais e aos direitos humanos.

Causa Operária – Qual é o montante da dívida pública brasileira e quais são os principais componentes?

A dívida pública federal brasileira já supera 78% do PIB, atingindo, em agosto/2012, as cifras de R$ 2.637.403.802.880,08 (Interna) e US$ US$ 422.895.138.185,71 (Externa).

Os estados e municípios também possuem dívida interna e externa. A dívida dos estados com a União atingiu R$ 396 bilhões em dezembro/2011 e dívida externa tem crescido aceleradamente, principalmente porque estados estão contratando créditos junto a organismos internacionais – Banco Mundial, BID e BIRD – para pagar à União.

Causa Operária – Quais fatores levaram à disparada da dívida pública no Brasil nos últimos cinco anos?

O principal fator de crescimento da dívida pública brasileira é decorrente da aplicação de onerosíssimas taxas de juros. Essa extorsão contra o povo brasileiro ocorre em todas as esferas: federal, estadual e municipal.

Durante os trabalhos da recente CPI da Dívida Pública (Câmara dos Deputados em 2009/2010), restou comprovado tal fato, ou seja, por meio de investigações técnicas que buscavam explicar a contrapartida da dívida brasileira, comprovou-se que a mesma é fruto da incidência de juros sobre juros, em elevadas proporções.

No âmbito federal, restou comprovado que as taxas de juros não são fixadas em base a critérios objetivos e coerentes, mas sim a partir de dados colhidos em reuniões realizadas pelo Banco Central com representantes do mercado financeiro, o que demonstra sua ilegitimidade, face ao evidente conflito de interesses que lesam a nação e beneficiam unicamente o mercado financeiro.

No âmbito estadual e municipal, o rendimento nominal pago por esses entes à União é dividido em duas partes: atualização monetária obrigatória, mensal, equivalente à variação de índice calculado por instituição privada (IGP-M da Fundação Getúlio Vargas), acrescido de juros que varia de 6 a 9% ao ano. Esse rendimento nominal chegou a quase 20% no ano de 2010 para alguns entes, sendo que nesse mesmo ano a União comprou bilhões de dólares de títulos da dívida norte-americana que não rende quase nada ao país.

Outro fator de crescimento da dívida, por exemplo, foi a ausência de controle de capitais, o que permitiu a entrada de tsunamis de dólares no país, por meio do sistema bancário, sem limites, e, sob o argumento de controle inflacionário, o Banco Central absorveu esses dólares e entregou títulos da dívida interna aos bancos. O resultado foi imenso prejuízo operacional ao Banco Central (R$ 147 bilhões em 2009; R$ 50 bilhões em 2010, e no 1o semestre de 2011 R$ 44,5 bilhões, tudo isso transferido para o Tesouro Nacional e arcado por todos os brasileiros.

Causa Operária – Como o governo esconde o verdadeiro montante da dívida pública e quais são os objetivos?

Alguns artifícios são utilizados, com o objetivo de aliviar a apresentação dos números da dívida, não deixando transparecer a gravidade do problema do endividamento público em nosso país, por exemplo:

O montante da dívida divulgado amplamente pelo governo e grande mídia é, em geral, bem inferior ao que consta dos próprios dados oficiais que pesquisamos. Isso decorre da utilização do artifício de “dívida líquida”, definição esdrúxula e sem sentido lógico: os juros nominais efetivamente pagos são calculados e pagos sobre a dívida bruta; as amortizações idem. O termo “dívida líquida” tem trazido grande confusão e ilusão a muitos setores.

Relativamente à dívida externa, omitem a parcela da dívida do setor privado, sendo que toda ela tem o aval do governo, constituindo-se obrigação. Historicamente, em inúmeras ocasiões dívidas externas do setor privado foram assumidas pelo setor público, devido a essa garantia.

Relativamente ao montante destinado ao pagamento dos juros e amortizações outros artifícios são utilizados:
– Não são informados os juros nominais efetivamente pagos pelo governo federal. A conta dos juros indica apenas a parcela dos juros que supera atualização monetária medida pelo IGP-M;
– Omissão do efetivo montante do serviço da dívida. Consideram unicamente a parcela paga com recursos orçamentários e excluem a parcela paga com os recursos advindos do leilão de novos títulos;
– Divulgação errônea de que emissão de nova dívida para pagar dívida anterior seria mera troca ou “rolagem”. Na realidade, cada emissão de títulos é autônoma, passa pelo processo de leilão através dos privilegiados dealers[1] , com custos não transparentes, e fica sujeita à reação do mercado. Portanto, não existe a tal mera troca. Adicionalmente, as investigações técnicas durante a CPI da Dívida comprovaram que parte dos juros está sendo contabilizada como rolagem, portanto, deve ser computado esse montante.

Causa Operária – O que está por trás das dívidas dos estados e municípios com a União?

O mesmo “sistema da dívida”, isto é, a utilização do endividamento como um instrumento de subtração de recursos públicos, se repete no âmbito dos estados e municípios.
A origem do problema do endividamento dos entes federados coincide com a grande oferta de capitais estrangeiros por parte dos bancos privados internacionais na década de 70, e coincide com o período ditatorial no Brasil, quando houve o aprofundamento da política tributária concentradora dos recursos na esfera federal, empurrando os entes federados à opção pelo endividamento.
As investigações realizadas comprovaram que a imensa maioria dos empréstimos externos autorizados pelo Senado Federal para os entes federados na década de 70 e em boa parte da década de 80 sequer menciona o agente credor ou a finalidade do empréstimo, que seria controlado pelo Ministério da Fazenda e Banco Central. Tal fato indica, desde o início, um grande desrespeito ao Federalismo e demanda o aprofundamento das investigações sobre a natureza desses empréstimos, que podem ter servido até para financiar a ditadura militar.
Na década de 80 a natureza do endividamento dos estados e municípios passa por mudanças, sendo relevante ressaltar o forte incentivo à emissão de títulos da dívida mobiliária dos entes federados, conforme a Lei 7.614/87, na medida em que autorizou operações de crédito interno “à conta e risco do Tesouro Nacional”, mediante suprimento específico adiantado pelo Banco Central.
A partir de 1993, a Emenda Constitucional no. 3 proibiu os entes federados de emitir títulos públicos, exceto para o pagamento de precatórios judiciais.

Foi intensa a emissão de títulos da dívida mobiliária na década de 90, sendo relevante recordar o que foi apurado pela CPI dos Precatórios[2], referente à criação descontrolada de precatórios judiciais falsos, com o objetivo de gerar receita para pagamento de dívidas anteriores e até mesmo para desvios.

Em 1997 foi editada a Lei 9.496/97 mediante a qual os estados tiveram que refinanciar suas dívidas com a União. Estudos feitos com base em dados disponibilizados pelo Tesouro Nacional e Banco Central à CPI da Dívida demonstraram que o montante refinanciado pela União correspondeu, em sua maior parte, a dívidas mobiliárias (dívida em títulos emitidos pelos estados). Apesar do baixíssimo valor de mercado daqueles títulos da dívida mobiliária dos estados, tais dívidas foram refinanciadas pela União a 100% de seu valor de face, o que representou claramente uma brutal transferência de recursos públicos para o setor financeiro privado. Além disso, o passivo dos bancos que seriam privatizados também foi incluído no pacote refinanciado pela União. As condições impostas pela Lei 9.496 foram onerosíssimas: apesar do rigoroso cumprimento dos acordos e da privatização do patrimônio estadual, o estoque das dívidas dos estados cresceu de forma exponencial e, atualmente, estados estão se endividando junto ao Banco Mundial para pagar à União. Tal fato representa uma verdadeira aberração e um insulto ao federalismo.

Processo semelhante ocorreu com os municípios que a partir do ano 2000, com a edição da Medida Provisória MP 2.022 (e 2.118), tiveram suas dívidas também refinanciadas pela União, nas em condições semelhantes às aplicadas aos estados.

O resultado é uma situação de grave endividamento dos entes federados, amarrados a obrigações financeiras geradas a partir de mecanismos meramente financeiros, que não significaram qualquer benefício à sociedade que está arcando com essa pesada conta.

Por isso tais dívidas dos entes federados precisam ser auditadas, a fim de rever essa situação, corrigir os erros do passado e garantir o respeito aos direitos sociais. Para tanto, a Auditoria Cidadã da Dívida está formando Núcleos em diversos locais.
6- Qual é o percentual do orçamento público destinado ao pagamento dos serviços da dívida pública?

O gráfico a seguir indica os percentuais do orçamento da União executado em 2011 destinados ao pagamento de juros e amortizações da dívida, e a todas as outras áreas. É evidente o privilégio da dívida:

Orçamento Geral da União Executado até 31/12/2011
Total: R$ 1,571 Trilhão
Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida. Fontes:
http://www8a.senado.gov.br/dwweb/abreDoc.html?docId=20703 – Gastos por Função
http://www8a.senado.gov.br/dwweb/abreDoc.html?docId=20704 – Gastos com a Dívida
http://www8a.senado.gov.br/dwweb/abreDoc.html?docId=20715 – Transferências a Estados e Municípios (Programa “Operações Especiais – Transferências Constitucionais e as Decorrentes de Legislação Específica”). Nota 1: As despesas com a dívida e as transferências a estados e municípios se incluem dentro da função “Encargos Especiais”. Nota 2: O gráfico não considera os restos a pagar de 2011, executados em 2012.

[1] Dealers são as instituições financeiras selecionadas para adquirir os títulos da dívida no Mercado primário e negociar também no Mercado secundário http://www.tesouro.fazenda.gov.br/hp/downloads/dealers.htm
[2]http://www.cosif.com.br/mostra.asp?arquivo=mtvm_titpublicos. Acessado em 11/06/2012.

Leia a primeira parte da entrevista da Maria Lucia na íntegra no jornal da Galiza: Diario Liberdade.