Dívida Interna – Nova Face do Endividamento Externo
Ao contrário do que apregoam o governo e a mídia corporativa, a vulnerabilidade externa não diminuiu e a dívida interna se tornou a nova face do endividamento externo
É comum o governo e a grande mídia afirmarem que a dívida externa é uma questão do passado, e que a “dívida interna”, por sua vez, beneficia principalmente os pequenos investidores nacionais, que sairiam prejudicados com um eventual não-pagamento.
Se obervarmos os dados da Secretaria do Tesouro Nacional, em seu Relatório da Dívida Pública Mobiliária Federal Interna de Julho de 2006 (disponível no site http://www.stn.fazenda.gov.br/hp/relatorios_divida_publica.asp), no Quadro 7, constatamos que os bancos (a rubrica “Carteira Própria”) possuem R$ 313 bilhões em títulos da dívida interna, os chamados “Fundos de Investimento” detém R$ 480 bilhões, enquanto as empresas não financeiras detém R$ 61 bilhões.
A partir daí, pareceria que os bancos apenas deteriam cerca de 30% da dívida interna (cujo estoque atual é de cerca de R$ 1 trilhão). Porém, na mesma tabela há uma rubrica denominada “Títulos Vinculados”, cujo saldo é bastante relevante, de R$ 108 bilhões. Isto significa títulos de instituições financeiras depositados como garantia de operações em Bolsa de Valores, ou retidos no Banco Central para compulsório bancário. Traduzindo o economês: são títulos também dos bancos, sobre os quais estes ganham as taxas de juros mais altas do mundo.
E se formos ao “Anexo VI – D” do mesmo Relatório, veremos que existe uma parcela da Dívida Interna chamada “Operações de Mercado Aberto”, com nada menos que R$ 96 bilhões, que são operações de compra de moeda pelo governo para regular a base monetária. Traduzindo novamente o economês: são títulos dos bancos, que também rendem a eles a taxa de juros mais alta do mundo, e que não constam no Quadro 7 do Relatório.
CONTROLE DOS BANCOS
Segundo dados do Informe Estatístico da Previdência Complementar, de dezembro de 2005, os Fundos de Pensão possuem cerca de R$ 186 bilhões aplicados em títulos públicos, sendo a maioria através de Fundos de Investimento.
Portanto, se subtrairmos dos Fundos de Investimento os recursos dos Fundos de Pensão, e considerando os novos dados colocados anteriormente, chegamos à situação demonstrada neste gráfico.
Sobre os Fundos de Investimento, é comum o governo afirmar que são aplicações de pequenos poupadores. Apesar de qualquer pessoa poder participar destes fundos (ao investir o que sobra de sua conta bancária), sabemos que esta parcela da dívida interna tem como principais beneficiários grandes investidores, empresas privadas e até mesmo investidores estrangeiros.
Aliás, a maior parte das famílias brasileiras não têm a possibilidade de fazer estes investimentos, uma vez que não possuem conta bancária, e quando possuem, o salário mal dá para cobrir as despesas do mês, isto quando não estão endividadas no cartão de crédito, cheque especial ou no chamado “crédito com desconto em folha”.
CLASSE MÉDIA?
Interessante observarmos também que, apesar dos sucessivos governos afirmarem sempre que os pequenos investidores – inclusive a classe média brasileira – seriam os principais participantes destes fundos, o governo se nega a disponibilizar dados que possam confirmar esta afirmação.
Em resposta ao Requerimento 3513/2005, da Câmara dos Deputados, que solicitava a participação dos grandes e pequenos investidores dos Fundos de Investimento (sobre o qual falamos no Boletim anterior), o governo respondeu: “por não ser a entidade supervisora de (…) fundos de investimento, o Banco Central não detém os dados de seus participantes ou cotistas.”
É interessante ressaltar também que, segundo a Comissão de Valores Mobiliários, os participantes de Fundos de Investimento (que aplicam em títulos da dívida interna) são 5 milhões, ou seja, 2,7% da população brasileira.
O RISCO DOS FUNDOS DE PENSÃO
Uma última questão a ser ressaltada, com base no gráfico, é a participação dos Fundos de Pensão, que tem crescido no país devido à deterioração da previdência pública no país. Com benefícios de aposentadoria cada vez menores, e falaciosa propaganda sobre o déficit da previdência pública, as pessoas são induzidas a aderir a estes Fundos.
Porém, na hora de uma crise da dívida, são estes fundos os primeiros a sofrerem perdas. Na Argentina, por exemplo, quando o governo decretou a moratória da dívida, em 2002, os Fundos de Pensão foram os maiores prejudicados, perdendo cerca de 75% de seu patrimônio, prejuízo que foi repassado aos beneficiários desses fundos.
Por outro lado, os grandes credores da dívida, que acompanham o mercado financeiro todos os dias e muitas vezes detêm informações privilegiadas, puderam, a tempo, enviar capitais ao exterior. E aqui no Brasil? Qual o futuro dos milhões de trabalhadores que estão investindo em fundos de pensão que não dão a garantia de benefício definido, extamente porque são, em grande parte, respaldados em títulos da dívida pública?
Mas a principal questão é que, no Relatório do Tesouro Nacional, não é informada a participação dos bancos e investidores estrangeiros dentro das rubricas “Títulos Vinculados”, “Operações de Mercado Aberto” e “Fundos de Investimento”. Uma pista sobre a participação destes investidores externos pode ser dada por determinados tipos de operações financeiras, efetuadas por bancos estrangeiros.
Uma destas operações se chama NDF, na sigla em inglês (“Non-deliverable Forward”), que consiste, no final das contas, em um investimento estrangeiro em um título da dívida interna. No início de 2005, estimativas indicavam que estas operações atingiam cerca de US$ 70 bilhões. Porém, o volume real pode ser bem maior, uma vez que são operações feitas entre os investidores, muitas vezes sem registro pelo Banco Central. Como se dá esta operação?
O investidor estrangeiro, no exterior, contacta um banco multinacional que possua uma filial no Brasil e faz uma espécie de “contrato de investimento”, no qual o banco irá comprar títulos da dívida interna brasileira (ou irá aplicar recursos em fundos de investimento brasileiros), repassando os ganhos da aplicação para o investidor externo, mediante, claro, uma boa taxa de administração.
O detalhe é que os dólares do investidor externo não entram no país. No final da operação, o banco estrangeiro embolsa sua taxa de administração, e paga apenas o juro para o investidor. Esta é uma inovação da globalização financeira, que faz com que não seja necessária a movimentação real de moeda, mas apenas a utilização de bancos de dados que registrem as transações financeiras, e ao final destas operações, sejam pagos apenas os ganhos das operações para os investidores, verdadeiras bolhas fictícias, resultado de meras transações escriturais. É um mundo virtual de negócios totalmente isento de impostos e de fiscalização, e que muitas vezes se utiliza de paraísos fiscais.
A DÍVIDA RECICLADA
Admitindo-se uma taxa de juros de 14% ao ano, e um estoque de NDFs de US$ 70 bilhões, podemos estimar que os ganhos anuais dos estrangeiros seriam de quase US$ 10 bilhões, ou seja, cerca de 70% das atuais remessas de juros da dívida externa brasileira! Ora, está claro que a “dívida interna” não passa de uma reciclagem do clássico mecanismo da dívida externa. Além dessas, há muitas possibilidades de outras operações financeiras realizadas diretamente por investidores e bancos estrangeiros que, diante da total liberalização financeira, podem adquirir títulos da dívida interna brasileira, ou aplicar em fundos de investimento no Brasil. Por isso, não se pode dizer que a dívida interna é uma dívida para com os brasileiros.
Enquanto o governo brasileiro divulga a falácia de que a dívida externa “acabou”, e que não há mais dependência ou vulnerabilidade externa, os investidores estrangeiros, por meio de operações virtuais, continuam colocando o governo de joelhos. Um bom exemplo disso é o que ocorreu em maio deste ano.
No início do ano, o governo isentou de Imposto de Renda os estrangeiros que investirem na dívida interna brasileira, alegando que esses investidores teriam a propensão de comprar títulos de maior prazo, o que melhoraria o perfil da dívida interna. Porém, logo após, em maio, a turbulência da alta de juros nos Estados Unidos fez com que estes investidores, que haviam acabado de comprar os títulos brasileiros, fugissem desesperadamente para o exterior, em busca de juros mais altos. O detalhe é que os estrangeiros não conseguiram se desfazer de seus títulos de longo prazo, pois ninguém queria comprá-los antes do vencimento. Ou seja: para saírem do país, os investidores teriam de vender os títulos a um valor muito menor do que compraram.
Então, furiosos, dia 24/05/2006 eles começaram inverter suas operações no país (em termos simples: fugir do país), pressionando a cotação do dólar, o que obrigaria o governo a subir os juros para estimulá-los a permanecer no Brasil. Um aumento nos juros traria prejuízos a Lula em um ano eleitoral. Naquele momento, o governo preferiu simplesmente torrar R$ 4 bilhões para recomprar antecipadamente os títulos dos estrangeiros, por seu valor total, pagando esse alto preço e ainda permitindo a fuga de capitais, de forma a manter em “alta” a confiança dos mercados financeiros!
Trocando em miúdos: é impressionante a ditadura que os mercados exercem sobre nós, com a cumplicidade do governo. Ao invés de controlar os fluxos de capitais, o governo prefere torrar em apenas 3 dias R$ 4 bilhões (valor este equivalente a todos os gastos com Reforma Agrária em todo o ano de 2005) para satisfazer aos estrangeiros, comprando antecipadamente títulos por seu valor de face.
Analisando tais fatos, podemos compreender porque os bancos comerciais estão obtendo lucros bilionários, enquanto o Banco Central registrou prejuízo de R$ 10,45 bilhões em 2005 e de R$ 12,5 bilhões no primeiro semestre de 2006.
Ao mesmo tempo em que controla a conta gotas os gastos sociais, autoriza imediatamente qualquer gasto para preservar a “confiança dos mercados”. Apenas uma profunda auditoria poderá mostrar todos os prejuízos destas operações, que apenas favorecem poucos investidores estrangeiros.
AUDITORIA JÁ!