Revista Ecológico: “Somos credores da dívida ecológica”, com Maria Lucia Fattorelli
O Brasil ainda engatinha quando o assunto é divulgar o conceito e avançar nos estudos voltados para o cálculo da dívida ecológica. Para a belo-horizontina Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da organização Auditoria Cidadã da Dívida e integrante das comissões de auditoria da dívida pública do Equador e da Grécia, os responsáveis pela exploração predatória das riquezas naturais e geração de danos ambientais e sociais irreparáveis envolvem, principalmente, empresas transnacionais e instituições financeiras que viabilizam a comercialização das matérias-primas com lucros exorbitantes e ocultos, por meio do uso de paraísos fiscais.
Em busca de formas para calcular e cobrar a fatura pelos impactos – ambientais e sociais – causados por empreendimentos de diferentes setores, tais como a mineração e a construção de usinas hidrelétricas, Belo Horizonte sediará, no próximo dia 19 de julho, o 1º Encontro Mineiro sobre Dívida Ecológica.
“Vamos reunir pessoas interessadas no tema para ampliar o conceito de dívida ecológica e trazê-lo para mais próximo da nossa realidade. O fato desse importante encontro acontecer na capital mineira é emblemático, considerando sobretudo as impressionantes ameaças do setor minerário à Serra do Curral”, afirma a especialista.
É o que você confere, a seguir:
Qual é o conceito de dívida ecológica?
Esse tema ainda é abordado de forma incipiente no mundo todo e, aqui no Brasil, está praticamente na estaca zero. Nem mesmo o seu conceito tem sido corretamente estabelecido. Nas raras fontes disponíveis sobre o tema, a dívida ecológica tem sido definida como um débito dos países do Norte para com os do Hemisfério Sul, devido à exploração de matérias-primas nos últimos cinco séculos, provocando danos ambientais. Entendemos que há muito que avançar.
Em que aspectos temos de avançar?
Os atores responsáveis pela exploração predatória das riquezas naturais e a geração de danos ambientais e sociais irreparáveis não envolvem simplesmente os países do Norte. Mas, principalmente, as empresas transnacionais e instituições financeiras que viabilizam a comercialização das matérias-primas com lucros exorbitantes e ocultos, por meio do uso de paraísos fiscais. Portanto, estamos dando os primeiros passos.
A realização do 1º Encontro Mineiro sobre Dívida Ecológica, em Belo Horizonte, no próximo dia 19 de julho, é uma forma de contribuir para a difusão desse conceito?
Sem dúvida. Vamos reunir pessoas interessadas no tema para ampliar o conceito de dívida ecológica e trazê-lo para mais próximo da nossa realidade. O fato desse importante encontro acontecer na capital mineira é emblemático, considerando sobretudo as impressionantes ameaças do setor minerário à Serra do Curral. Tanto devido às inescrupulosas atividades de mineração como aos interesses imobiliários especulativos, que estão sendo beneficiados por recente sentença judicial que, imprecisa, abre espaço para avanços sobre a área da Serra do Curral, permitindo a urbanização da área.
Como, então, tratar esse tema de forma integral?
Em razão do conjunto de atores que produzem a dívida ecológica, e levando-se também em conta a sua larga abrangência, que vai muito além da insaciável pilhagem das riquezas naturais, com a substituição de serras e montanhas por ameaçadoras represas de rejeitos, é preciso ainda considerar vários outros fatores. Entre eles: o estabelecimento do preço dos minerais de forma arbitrária no exterior. O montante dos danos que têm sido provocado historicamente, tendo em vista o “valor” das riquezas espoliadas, da vegetação suprimida, dos rios contaminados e até assassinados. Além do uso indiscriminado da água; dos animais extintos, enfim, todo o conjunto desses reflexos na natureza.
Existe algum critério para se calcular essa dívida e cobrá-la?
Não se trata de precificar os bens da natureza, colocar preço em um rio ou em uma jazida de nióbio, por exemplo. Por outro lado, as riquezas naturais têm sim, o seu valor, pelos serviços ambientais prestados a toda a humanidade. É muito importante distinguir a noção de “preço” e “valor”. Na prática, as riquezas naturais estão sendo exploradas como se não tivessem valor algum. São vendidas pelos preços estabelecidos nas bolsas de Londres ou Chicago, de acordo com um critério do qual não participamos da definição, ficando o lucro da exploração somente para as grandes empresas transnacionais. Não se vê a receita decorrente das riquezas minerais nos orçamentos públicos dos entes federados no Brasil. Ela é invisível. E nós ficamos apenas com o dano ambiental e a contaminação das pessoas que trabalham na extração e da comunidade local. A ideia é juntar especialistas que já se dedicam aos estudos sobre valoração ambiental, a fim de que estabeleçam critérios e metodologias para que possamos calcular essa fatura e cobra-la. Assim, sairemos da condição de vítimas que apenas lamentam os danos sofridos para a de credores que exigem a reparação ecológica.
Como avalia o comprometimento do empresariado brasileiro com a questão ambiental? Somos um país maduro?
Não. Pelo contrário. Estamos atrasadíssimos, apesar da importância que a nossa Constituição dá ao tema, dedicando a ele o Capítulo VI e estabelecendo, no Artigo 225 que: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
Poderia citar algum avanço real e prático?
Embora tenham havido tentativas de avanço na legislação há anos, como é o caso da Lei 6.938/81, que instituiu a Política Nacional de Meio Ambiente, os investimentos nos órgãos de fiscalização são continuamente contingenciados. Muitos estão sendo extintos ou literalmente fracionados e desmontados. É o caso do Departamento Nacional da Produção Mineral (DNPM), cuja estrutura de Estado não pode ser comparada à da Agência Nacional de Mineração (ANM) criada para, teoricamente, substitui-lo. Inúmeros absurdos gritantes comprovam o nosso atraso com a questão ambiental no Brasil.
A que situações ou absurdos se refere?
À construção da Usina de Belo Monte, por exemplo, que interrompeu o curso do Rio Xingu, no belíssimo local denominado Volta Grande. Justamente nesse leito seco do rio, a estrangeira Belo Sun Mining Corporation tem explorado grandes quantidades de ouro da melhor qualidade, conforme ela mesma se “gaba” em seu site (www.belosun.com). Isso às custas de gravíssimos impactos ambientais e sociais. Aquela obra, feita às pressas e passando por cima de embargos do Ministério Público, Ibama e outros órgãos, colocou os interesses empresariais nacionais e estrangeiros acima de tudo.
Atingiu também comunidades indígenas…
Exatamente. Belo Monte devastou parte da floresta amazônica, afetando o Rio Xingu e suas ilhas. A série A devastação do Xingu em imagens, da ONG Instituto Socioambiental, evidencia em fotos a violação do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade de pessoas atingidas pela construção da usina. O que poderia se caracterizar, inclusive, como um ato de terrorismo, conforme mencionei em meu artigo (https://goo.gl/cV9RJP). O aprofundamento dos estudos sobre essa dívida ecológica poderá envolver todos os atingidos por esses escândalos.
Qual a sua opinião sobre o setor de mineração no Brasil e, em especial, sobre o acidente e desdobramentos da atuação da Samarco, desde novembro de 2015?
Creio que aquelas cenas do Rio Doce morto, com quantidades enormes de cardumes agonizando, o desespero dos povos Krenak, dos pescadores e moradores das centenas de localidades atingidas nunca sairão de nossa memória. Fotos de satélite, tiradas antes e depois do ocorrido, mostram outra perspectiva visual do imenso dano ambiental e patrimonial provocado: soterramento da maior parte das propriedades de Bento Rodrigues por toneladas de rejeitos da mineração depredatória e inescrupulosa. Dezenove pessoas morreram e inúmeras espécies do Rio Doce foram dizimadas. Só em 2014, o faturamento bruto divulgado pela Samarco foi de R$ 7,6 bilhões.
Houve negligência nesse caso?
É evidente que houve, diante principalmente do imenso volume de rejeitos acumulados, capazes de soterrar um distrito e alagar dezenas de outros, matar um rio inteiro, dizimar espécies, e se espalhar ao longo de dois estados até alcançar o Oceano Atlântico, que também foi afetado. Esse caso é emblemático e pode ser escolhido como prioritário para o grupo de estudos que será formado a partir do encontro sobre dívida ecológica que será realizado em Belo Horizonte. Afinal, ainda convivemos com a ameaça de outras barragens se romperem em Minas.
E no contexto da água: o Brasil tem também uma dívida ecológica hídrica?
Sim. Em março, Brasília (DF) também sediou o Fórum Alternativo Mundial da Água (Fama), que contou com a participação de mais de 7 mil pessoas e 450 organizações socioambientais nacionais e internacionais. Ao final, aprovamos uma carta, denunciando a transformação dos bens naturais em mercadoria, por meio de processos de privatização, precificação e financerização. Embora o Brasil detenha a maior reserva de água do mundo, inúmeras comunidades não têm acesso à água potável nem tratamento de esgoto. As notícias e campanhas sobre a crise hídrica focam na necessidade de educar as pessoas a economizar água na hora de escovar os dentes, tomar banho, lavar roupa, etc. Porém, estudos indicam que a cada 100 litros de água, as famílias consomem apenas 4%; indústrias e mineração gastam 12%, e o agronegócio cerca de 72%. E mais: essa é uma média que, evidentemente, não leva em consideração o fato de o trágico acidente de Mariana ter consumido um rio inteiro! Sem dúvida, esse também será um tema fundamental para o estudo da dívida ecológica.
É otimista em relação ao futuro comum da humanidade no planeta?
Se olharmos o nível de desrespeito com que a natureza tem sido tratada, frente a tantos abusos que envolvem a exploração predatória de seus recursos; contaminação por agentes químicos usados na mineração e acumulação de rejeitos; poluição das indústrias; uso abusivo de agrotóxicos; fatores que provocam o aquecimento global etc., ficaremos de fato alarmados. Continuamos caminhando a passos largos para o comprometimento da vida em quase todo o planeta.
Apesar disso…
É claro que sou otimista. Se não fosse e não tivesse a certeza de que é possível recuperar o que tem sido feito de modo errado, especialmente em relação às nossas finanças, que têm relação direta com a dívida ecológica, como mencionou o Papa Francisco em sua Encíclica Laudato Si’, não dedicaria minha vida a esse trabalho voluntário à frente da Auditoria Cidadã da Dívida. Quanto mais pessoas se envolverem e se dedicarem à prática da cidadania ativa, mais rápida será a mudança de rumos. Nascemos em um dos países mais ricos e belos do planeta. Não podemos continuar vivendo no avesso do país que poderíamos ter. A realidade de abundância que existe no Brasil não combina com o cenário de escassez a que temos sido submetidos. Vai depender, sobretudo, do engajamento de muitas pessoas. Espero que acordemos a tempo!
Programe-se
O 10 Encontro Mineiro sobre Dívida Ecológica, em BH, será realizado em 19 de julho, das 8h às 17h, no Auditório da Associação dos Funcionários Fiscais do Estado (AFFEMG),
Rua Sergipe, 893 – Savassi. Informações e inscrições: [email protected]
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