Estrangulamento dos estados: na forca do neoliberalismo

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ESTRANGULAMENTO DOS ESTADOS
NA FORCA DO NEOLIBERALISMO

J. Carlos de Assis*

Paulo Lindesay**

O chamado Plano de Recuperação Fiscal do Rio de Janeiro é a consagração absoluta da falência do Estado no meio de uma crise financeira sem precedentes. Com a virtual impossibilidade de cumprir as condicionalidades exigidas no programa draconiano, o saldo a pagar da dívida atingiu em outubro cerca de R$ 34 bilhões[1], quase metade do orçamento, em outubro último. Mesmo que o Estado vendesse todos os seus ativos, inclusive a Cedae, como exigido pelo Governo federal, o grosso do endividamento não se alterava. Ao contrário, continuará a crescer até 2023.

Como consequência dessa situação, o Estado do Rio perdeu totalmente sua autonomia e soberania financeira. Todas as suas contas, sobretudo as de pessoal, estão sendo comprimidas no limite e vigiadas pelo Conselho de Supervisão do Plano de Recuperação Fiscal, criado pelo pela lei complementar 159/2017, composta por um membro do Ministério da Fazenda, um dos órgãos de fiscalização e um do estado, com poder de veto sobre as principais despesas. A receita de privatizações não será de aplicação livre. Terá que ser obrigatoriamente destinada a pagar o serviço da dívida pública estadual. Os próprios empréstimos a serem autorizados pelo Governo também se destinarão a pagamento da dívida.

O exemplo do Rio ilustra com perfeição o fato de que o chamado Plano de Recuperação Fiscal e o que chamam de novo Pacto Federativo não se destinam a viabilizar a recuperação financeira dos Estados, mas ao esmagamento da Federação, levando ao extremo a centralização financeira e fiscal pelo Governo federal. Seu objetivo é capturar os entes federativos a partir do aumento da dívida pública e o estabelecimento de condicionantes para créditos marginais, num brutal sistema de financeirização das economias estaduais via securitização.

Tudo é feito no sentido do ajuste fiscal federal. Os recursos líquidos correspondentes ao serviço da dívida dos Estados se destinam à geração de superávit no orçamento consolidado da República. Estes recursos se destinam ao pagamento da dívida federal, mas não são consideradas “receitas primárias” do governo federal (não compondo, portanto, o superávit primário federal), mas sim, “receitas financeiras”, exatamente para superestimar o chamado “déficit primário” que depois os neoliberais ficam apregoando, para justificar as medidas de ajuste fiscal.

Esse dinheiro, naturalmente, não vai para investimentos. Vai para o pagamento do ajuste fiscal federal. Na prática, todo o esforço fiscal dos governos estaduais é consumido na financeirização da economia, isto é, não para gerar gastos reais e investimentos, mas juros, que não financiam a economia real nem a geração de emprego. A opinião pública, impressionada com o massacre midiático sobre corrupção, pensa que a crise fluminense se deve aos roubos de Sérgio Cabral e de Pezão. É um engano. O que foi desviado por esses meliantes é uma fração mínima do assalto aos cofres estaduais praticados pelo Governo federal no processo de financeirização da dívida, cuja absorção foi imposta aos Estados em 1997.

De uma dívida “nula” de R$ 112 bilhões naquele ano foram pagos até 2017 cerca de R$ 400 bilhões, e restam a pagar inacreditáveis R$ 540 bilhões. Não há esforço fiscal nos Estados que possa suportar essa situação. Mas não é só isso. Além do que tomou dos Estados, o Governo federal se recusou a lhes pagar algo como R$ 637 bilhões por conta da chamada Lei Kandir, como compensação financeira legal pelo que os Estados foram obrigados a deixar de recolher em ICMS sobre produtos primários e semi-elaborados. Essas duas contas, o que deve ser restituído pela imposição de 1997 e o que deixou de ser pago pela Lei Kandir, se elevam a mais de R$ 1 trilhão de reais. Eliminariam a crise fiscal, caso fossem quitadas.

Os principais instrumentos legais usados para escravizar os Estados, liquidando com sua capacidade de investimento em setores prioritários como saúde e educação, foram, inicialmente, o refinanciamento das dívidas estaduais, em 97 (lei 9496), no governo Fernando Henrique, atendendo a ditames do FMI. Seguiram-se em datas diferenciadas o Plano de Recuperação Fiscal, a Lei Kandir, e a Lei Complementar que autorizou, no caso do Rio, uma moratória de 18 meses no serviço da dívida, dos quais todos os valores apartados, cerca de R$ 6 bilhões, foram corrigidos diariamente por índices da legislação em vigor.

Consideramos a dívida refinanciada em 1997 como tecnicamente nula. Seu principal objetivo foi forçar os Estados a “contribuir” com o esforço fiscal destinado a gerar superávits primários exigidos pelo FMI na sua condição de árbitro dos infames acordos da dívida externa. Dívidas dos Estados, principalmente mobiliárias, e que estavam sendo roladas em seus bancos, foram consolidadas em bancos privados e pagas pelo Governo federal com títulos públicos federais, sendo repassadas de volta aos governos estaduais como um passivo explícito. Ora, títulos federais são um passivo potencial de toda a sociedade, do ponto de vista tributário. Incide em tese sobre todos os contribuintes, incluindo os contribuintes dos Estados. Eles não deveriam estar pagando de novo pela mesma dívida, no esquema jurídico considerado “bis in ibidem”.

O total refinanciado da dívida dos Estados atingiu em 1997/98 cerca de R$ 112 bilhões. Destes, cerca de R$ 400 bilhões, quase três vezes mais, foram pagos até 2017. Assim mesmo restavam a pagar R$ 540 bilhões. Além do caráter nulo da dívida, foram aplicadas sobre ela os mais elevados índices de correção monetária e juros, sempre no intuito de esgotar a capacidade de pagamento dos Estados para a consecução de superávits primários. Em qualquer parte do mundo uma relação desse tipo entre União e entes federativos soaria como absurda. E não há nenhuma surpresa em que, como resultado dela, a maioria dos Estados e Municípios está quebrada.

Voltando ao Rio, o então governador Pezão assinou o Plano de Recuperação Fiscal em setembro de 2017, com o serviço da dívida atualizada de R$ 9,4 bilhões, rigorosamente impagável. Em outubro de 2019, o saldo do serviço da dívida já era de R$ 34 bilhões, que continuará a sofrer atualização com juros e correção monetária até 2023. Esses valores devidos e não pagos durante a vigência do Regime, bem como inadimplências em operações de crédito garantidas pela União, contratadas em datas anteriores à homologação da adesão, serão controladas, com encargos financeiros de adimplência, por meio de Contas Gráficas.

A Lei Complementar 159/2017, do governo Temer, criou a instância mais poderosa de controle pelo Governo federal do Plano de recuperação Fiscal imposto aos Estados em troca de migalhas. A Supervisão do Plano, exercida pelo Governo, tem poderes para barrar qualquer investimento ou gasto do governador, notadamente de pessoal, que na verdade deve ser enquadrado em disposições draconianas. Além disso, impõe, mediante condicionalidades para rolagem de dívidas, a privatização de estatais estaduais, valendo-se de prerrogativas estabelecidas no Plano em nível acima dos governadores e das assembleias estaduais.

Conta Gráfica é o registro dos débitos incorridos nos contratos dos Estados administrados pela Secretaria da Receita Federal, em operações de créditos garantidos pela União e não pagas durante o Plano de Recuperação Fiscal. O saldo atual do Rio, da ordem de R$ 34 bilhões, deve ser corrigido e pago, como dito, até 2023. Sua origem, pela Lei 9496/97, era cerca de R$ 15 bilhões, dos quais foram pagos à vista cerca de $ 2 bilhões. Dos R$ 13 bilhões restantes, refinanciados, foram pagos mais de R$ 29 bilhões, portanto mais do dobro da dívida original. Não obstante, restam a pagar cerca de R$ 78 bilhões. É literalmente impagável. Na verdade, do ponto de vista político, o que foi pago indevidamente terá que ser restituído, talvez num processo constituinte.

A distorção financeira constatada na relação entre Governo federal e Estados e Municípios deve ser entendida como ato de subordinação do Estado ao sistema financeiro global. O que sempre esteve em jogo, desde o início desse processo, foi a
financeirização da economia brasileira mediante a ampla bancarização e a securitização de dívidas bancárias. Em 1996, o então governador Marcelo Alencar tomou emprestado junto a CEF duas linhas de crédito no valor total de R$ 180 milhões, sob garantia federal, uma no valor de R$ 120 milhões para pagar décimo terceiro a servidores estaduais, em 1995,e a segunda no valor de R$ 60 milhões para cobrir demissão voluntária (PDV) imposta pelo FMI, e outras condicionantes de enxugamento forçado do Estado.

Por aí se previam as condicionalidades futuras, sobretudo no terreno da privatização do saneamento e da água, hoje um dos principais projetos de vampirização do país por parte de Paulo Guedes. De fato, junto ao contrato de empréstimo, nº 121.146, da Caixa, vieram 44 condicionalidades, incidindo, sobretudo, duramente, sobre direitos dos servidores e de serviços públicos: perda de todos os benefícios e direitos, como Sistema de Progressão Funcional, e privatização de todo o parque empresarial estadual. Como nem toda essa agenda foi cumprida, a perspectiva é uma radicalização desse processo, para o Rio e para os demais Estados endividados, sobretudo Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Quanto aos servidores estaduais e municipais, intimidados e desalentados, que tudo isso sirva ao menos para que entenda quem é o inimigo. Não é o Governo estadual, diretamente, mas sobretudo o federal. E nem é mesmo o governo, mas o neoliberalismo que ele representa. É aí o ponto do ataque.

*Economista e professor

** Especialista em Dívida Pública – Coordenador do Núcleo da Auditoria Cidadã RJ

[1] Este valor de R$ 34 bilhões se refere à parcela da dívida que deixa de ser paga em razão do Plano de Recuperação Fiscal, mas que será paga futuramente com juros e correção monetária.