A pandemia da COVID-19 no sistema da dívida, por Rodrigo Souza
Conjuntura de pandemia em estrutura de poder
* Por Rodrigo Souza
Introdução
O Estado tem diante de si um grande desafio que é o enfrentamento da pandemia da COVID-19. A sua atuação é decisiva para que a sociedade seja protegida dos efeitos causados por essa pandemia. Porém, além das demandas sociais, o Estado é levado a responder pelas demandas dos beneficiários do que se conhece por Sistema da Dívida.
Este sistema tem se mostrado um grande empecilho ao desenvolvimento social e ao bem-estar social, porque utiliza o Estado em benefício dos bancos credores da dívida pública às custas dos indivíduos da sociedade. É em torno desse sistema que o Estado tem funcionado.
Nesse escrito será investigada a atuação do sistema da dívida no contexto da pandemia do COVID-19. Para isso, será feita uma ilustração do que é o sistema da dívida (parte I). Depois será feita uma relação entre a pandemia e o sistema da dívida (parte II). Por fim (parte III), será analisado o teto dos gastos da EC. n. 95/2016 e como ele se relaciona com o sistema da dívida e com a pandemia da COVID-19.
I – Sistema da dívida: aspectos gerais
A dívida pública, formalmente, serve para que o país tenha meios alternativos de financiamento público, como investimento em políticas sociais e outros gastos de interesse público[1]. Assim, pensar no endividamento público sugere um benefício usufruído pela sociedade devedora em função dessa dívida.
Porém, o que se tem observado sobre a dívida pública é a falta de bônus e excesso de ônus contra os devedores, sobretudo desde a hegemonização da filosofia neoliberal nas políticas de Estado. Visualizar essa desproporção entre ônus e bônus exige analisar a dívida pública para além de si mesma e contextualizá-la em relações de poder. Nesse contexto é possível enxergar o que se conhece como sistema da dívida.
Sendo um sistema, o sistema da dívida é composto por engrenagens que giram de maneira interdependente. No Brasil, o movimento social Auditoria Cidadã da Dívida é a principal organização da sociedade civil em oposição ao sistema da dívida. Sua coordenadora, Maria Lúcia Fattorelli, diz que este sistema:
funciona por meio de diversos mecanismos que geram dívidas, na maioria das vezes sem qualquer contrapartida real, seguidos de outros mecanismos que promovem seu contínuo crescimento. Para operar, tal sistema conta com um conjunto de engrenagens articuladas compostas por privilégios legais, políticos, econômicos, em conjunto com a grande mídia, além de determinante suporte dos organismos financeiros internacionais para impor medidas que favorecem a atuação do Sistema da Dívida.[2]
Também é oportuno trazer a definição de dívida pública feita pelo professor da Universidad Autónoma de Barcelona, Francisco Navarro, que embora não se trate de uma definição de sistema da dívida, define dívida pública a partir de uma perspectiva sistêmica:
são direitos que o sistema financeiro possui sobre a riqueza presente e futura da economia real. Por um lado, sobre o valor criado pelos trabalhadores que terão que dedicar parte de sua futura jornada de trabalho ao pagamento de impostos que servirão para cumprir as obrigações da dívida. E, por outro lado, é um direito sobre os recursos naturais do país que serão vendidos para efetivar essa obrigação.[3]
Esta visão sistêmica da dívida pública feita por Navarro dialoga com a definição de sistema da dívida trazida por Fattorelli. E para visualizar o sistema da dívida no tempo histórico, recorremos a Eric Toussaint, conforme a seguir:
As crises da dívida nos países periféricos e as crises dos países capitalistas centrais são meios conjuntos de subordinar os estados à vontade de seus credores. O que se segue é uma perspectiva histórica das crises da dívida nos séculos XIX e XX. Da América Latina à China, Grécia, Tunísia, Egito e Império Otomano, as classes dominantes no norte global usaram a dívida como um meio de acumular riqueza e uma arma de domínio sobre os países devedores. (TOUSSAINT, 2019, n.p )
Esta crise da dívida ocorre quando o país devedor não tem condições de pagar os serviços da dívida ordinariamente, momento em que é levado a reestruturar suas contas em benefício dos credores, como ocorreu na crise da dívida dos anos 1980 na América Latina – conhecida no continente como a década perdida.
Nesta ocasião, o Fundo Monetário Internacional (FMI) concedeu empréstimos aos países endividados para que pudessem pagar os bancos credores dos países do Norte – principalmente os dos EUA -, que haviam emprestado dinheiro às ditaduras militares que se estabeleceram nas décadas de 1960 e 1970.
Para fornecer o socorro financeiro, entretanto, o FMI impôs condições aos países latino-americanos: adoção de medidas de austeridade – aumento de impostos e diminuição dos gastos sociais – e abertura econômica incondicional. O FMI atuou como intermediário na transferência de recursos dos países devedores para os bancos credores.
Assim, três elementos podem ser abstraídos do que foi trazido por Fattorelli, Navarro e Toussaint para construir uma imagem sintética de sistema da dívida. O (i) primeiro elemento é o endividamento propriamente dito, que ocorre de forma contínua e artificial, sem contrapartida aos devedores.
O (ii) segundo elemento trata-se do pagamento aos credores, feito através de recursos orçamentários gerados pela arrecadação de impostos (renda do Estado), bem como por privatizações de empresas estatais e dos recursos naturais que são matéria-prima dessas empresas (patrimônio do Estado).
O Brasil é um país que detêm recursos naturais diversos por toda sua grande extensão territorial. Os recursos naturais representam um grande potencial econômico, sendo por isso objeto de interesse do mercado financeiro – de onde operam os grandes credores da dívida.
A importância dos recursos naturais para o sistema da dívida pode ser ilustrada em Kucinski e Branford (1987), ao destacarem as palavras de Sir Alan Walters, então assessor de Margareth Thatcher, para a conf. Sunday Times, em 25.09.1983:
Não há dúvidas de que os mexicanos podem pagar a dívida, mas eles querem que ela seja paga pelo contribuinte norte-americano. O Brasil também pode pagar a dívida. Há uma enorme riqueza no Mato Grosso. Eles poderiam nos dar uma parte dela. (KUCINSKI; BRANFORD, 1987, p. 47)
Ainda há uma forma de pagamento com recursos imateriais, quando o Estado devedor cede aos credores o poder de decisão sobre os rumos do próprio Estado. Isso ocorre, por exemplo, quando as autoridades do Estado adotam as condições de austeridade que priorizam o pagamento da dívida às custas da sociedade devedora.
É improvável que uma sociedade inteira aceite a condição de devedora em função de uma dívida artificial. A dívida existe em função de si mesma, não de um benefício usufruído pelos indivíduos da sociedade. Aceitar pagar a dívida do sistema significa abrir mão do próprio bem-estar social.
Para que a maioria da população aceite ser sacrificada em benefício dos credores é necessário dissimular este sacrifício. Este é o (iii) terceiro elemento trazido pelos autores: a interpretação narrativa da grande mídia. Diniz (2018) nos ajuda a visualizar o processo de narrativa sistêmica:
E para exercer o poder nada mais adequado à elite do que utilizar-se da mídia para que isso seja exercido sem que o destinatário da mensagem de poder perceba o enredo de dominação em que foi submetido. E o papel do convencimento da maioria no passado era da religião e agora pertence a ciência, aos intelectuais. (DINIZ, 2019, p.9)
A ciência em questão – a tecnocracia financeira – tem espaço nos canais de comunicação da grande mídia para justificar a prioridade da dívida pública. A ciência da dívida se fará presente na relação de poder entre a grande mídia e o grande público. Em outra passagem o autor continua:
O que se vê então é que a mídia comunica com a massa para garantir a aceitação de sua pauta que por sua vez é determinada pela elite do dinheiro (criptogoverno[4]) para garantir que a população aceite de forma passiva a expropriação do produto do trabalho social para as mãos de um pequeno número de pessoas. (DINIZ, 2019, p.16)
Contextualizando a proposta de Diniz (2018) no sistema da dívida, pode-se inferir que cabe à grande mídia ser a porta-voz da narrativa oficial desse sistema. Ela tem acesso às residências dos indivíduos devedores e se empenhará em impor uma visão fragmentada da realidade. O sistema da dívida é quebrado em fragmentos que são narrados a partir de si mesmos. O todo é invisibilizado.
O alcance da grande mídia não tem oposição à altura de qualquer outro canal que tenha uma visão crítica, o que denota uma inexistência de uma disputa real de narrativa. Esta narrativa impede que a sociedade devedora questione o sistema da dívida por simplesmente torná-lo invisível. Mesmo a dívida pública isoladamente é um tema de acesso dificultado ao grande público.
Sintetizando os elementos, podemos observar o sistema da dívida como um sistema complexo que tem por objetivo transferir renda, patrimônio e poder decisório da sociedade devedora para grandes bancos credores como forma de pagamento da dívida pública, com a interpretação narrativa dos oligopólios da comunicação, porta-vozes oficiais desse sistema.
II – A Pandemia
O sistema da dívida carrega em si uma atmosfera de profunda vulnerabilidade social dos devedores, e é nesse contexto que o Brasil encara a pandemia da COVID-19. Nessa situação extrema, caberia ao Estado tomar para si a responsabilidade de atenuar os efeitos trazidos pela pandemia – seu poder soberano seria exercido com o objetivo de salvaguardar o bem-estar social.
Esta é a linha trazida pela Teoria Geral do Estado (2000) de Darcy Azambuja, ao se referir sobre o objetivo e a legitimidade do poder do Estado, conforme a seguir:
O objetivo, a causa final do poder é manter a ordem, assegurar a defesa e promover o bem-estar da sociedade; é realizar enfim o bem-público. (AZAMBUJA, 2000, p.95)
Assim, no contexto da pandemia da COVID-19, o Estado, com seus recursos políticos e orçamentários, deve assegurar estabilidade financeira e serviço hospitalar capazes de compensar os efeitos da pandemia na sociedade, sobretudo a parcela mais vulnerável economicamente.
Tendo isso em vista, foi aprovado no Senado o PL 1.066/2020, que fornece auxílio financeiro emergencial no valor de R$ 600,00 para famílias de baixa renda e que sobrevivam do trabalho informal, conforme consta em seu Art. 2º. A estimativa da Instituição Fiscal Independente (IFI) do Senado é que o auxílio emergencial irá atender diretamente 30,5 milhões de pessoas, totalizando R$ 59,9 bilhões em auxilio no ano 2020[5].
Se esta medida é analisada isoladamente, tende-se a entender que o bem-estar social é uma urgência do Estado no enfrentamento da pandemia. Então, divagando sobre as premissas de Pierre Bourdieu sobre o poder do Estado, Dalmo Dallari de Abreu profere a seguinte sentença:
O Estado é poder, e por isso seus atos obrigam; mas ele é poder abstrato, e por isso não é afetado pelas modificações que atingem seus agentes. (DALLARI, 2010, p.90)
O Estado no sistema da dívida é um instrumento de exercício do poder, que através de suas instituições se encarrega de endividar a sociedade (através do Banco Central) e pagar os bancos credores (através do Ministério da Economia). A conjuntura trazida pela pandemia da COVID-19 não dissolveu a estrutura sob a forma de sistema da dívida.
Antes da aprovação do auxilio emergencial, o Banco Central do Brasil havia anunciado um socorro financeiro de R$ 1,2 trilhão aos bancos, com o fim de assegurar liquidez no mercado[6]. Esta justificativa puramente técnica confronta um dado interessante.
Existe outro R$ 1,2 trilhão dos bancos depositados no Banco Central. É o que aponta Maria Lúcia Fattorelli [7]. Este depósito – chamado de “Operação Compromissada” – coloca seus donos, os grandes bancos, em posição de credores, porque são remunerados com títulos da dívida pública, embora os R$ 1,2 trilhão não possam ser utilizados pelo BC.
O R$ 1,2 trilhão adicional para socorrer os bancos provém principalmente da liberação de depósitos compulsórios, aumento de limites para empréstimo, além da abertura de linhas de financiamento do Banco Central aos bancos. Em síntese: o BC forneceu R$ 1,2 trilhão de socorro financeiro aos bancos, mesmo já tendo guardado R$ 1,2 trilhão desses mesmos bancos. Tanto um quanto o outro trilhão são/serão pagos pelos indivíduos da sociedade, os devedores públicos.
Fattorelli também denuncia a medida que permite ao Banco Central comprar os investimentos falidos dos bancos[8]. Esta medida é trazida na EC 106/2020. Não há uma relação de necessidade pública entre a compra dos investimentos falidos e a pandemia da COVID-19, mas a pandemia é uma grande oportunidade para os bancos se desfazerem desses investimentos. Segundo Fattorelli:
O presidente do Banco Central informou ao Senado que a operação chegará a R$972,9 bilhões, porém, levantamento feito pela IVIX Value Creation já havia revelado que a “carteira podre” dos bancos chegava ao valor de quase R$ 1 Trilhão, sem considerar a correção monetária! Se computada essa correção, chegaremos a vários trilhões, pois esses ativos privados vêm sendo acumulados nos bancos há 15 anos, segundo o levantamento! [9]
A IVIX Value Creation, que fez o levantamento dos valores dos bancos, se define como uma consultoria operacional e financeira com expertise em situações especiais e de complexidade elevada[10]. A carteira podre dos bancos se refere ao conjunto de investimentos falidos – são seus prejuízos. Muitos dos prejuízos da crise de 2008 estão dentro dessa carteira podre.
Este conjunto de prejuízos, segundo Fattorelli, são armazenados pelos bancos em instrumentos chamados ‘’bad banks’’. Ela os define como grandes depositórios de papéis podres. Os bad banks têm sido criados em vários países. Na Alemanha, o Deutsche Bank criou um banco paralelo – um bad bank – e passou para ele 74 bilhões de euros em papéis podres[11].
Ainda segundo Maria Lúcia Fattorelli, a EC 106/2020 não especifica que tipo de papéis o BC precisa comprar, deixando em aberto a possibilidade de resgatar esses investimentos falidos em posse dos bancos[12]. Comprar os prejuízos dos bancos seria arriscado para o BC diante da opinião pública. Por isso, por segurança, a EC 106/2020 vem acompanhada de outro dispositivo: a Medida Provisória 966/2020.
Esta MP afasta a aplicabilidade da Lei de Improbidade Administrativa contra atos motivados pela pandemia da COVID-19. Dentre tais atos, está a compra dos prejuízos dos bancos privados realizada por autoridades do Banco Central do Brasil[13].
A MP serve de escudo para as autoridades do BC contra eventuais responsabilizações no futuro – uma proteção contra a opinião pública. A EC 106/2020 serve como espada contra o público da opinião. Segundo Hely Lopes Meirelles:
O uso do poder é prerrogativa da autoridade. Mas o poder há que ser usado normalmente, sem abuso. Usar normalmente do poder é empregá-lo segundo as normas legais, a moral da instituição, a finalidade do ato e as exigências do interesse público. Abusar do poder é empregá-lo fora da lei, sem utilidade pública. (MEIRELLES, 2016, p.120)
Essa autoridade inclui a autoridade monetária, que é o Banco Central do Brasil. Comprar prejuízos de bancos privados não constitui interesse público. Também não há utilidade desses papéis para os bancos – são investimentos falidos -, porém, ao assumirem os prejuízos contabilizados nos bad banks, os bancos estariam comprometendo seu funcionamento. Daí a necessidade de trocar esses papéis podres por dívida pública com a sociedade.
III – Tempestade de pandemia em teto de gastos
A pandemia da COVID-19 requer uma atuação incisiva do Estado na promoção de políticas públicas que tenham por objetivo salvaguardar o bem-estar social – sobretudo a saúde pública. Porém, desde 2016, com Emenda Constitucional n. 95, o Estado está com sua capacidade de atuação comprometida. Esta é a emenda do teto sobre os gastos sociais para os próximos 20 anos.
Embora nesta Emenda haja exceções para períodos de calamidade pública, tais exceções são bastante limitadas (apenas para despesas imprevisíveis e urgentes), e impedem a possibilidade de um desenvolvimento amplo de longo prazo em setores como ciência e tecnologia, medicina de família, saneamento básico, equipamentos e insumos hospitalares, etc, que agora se mostram completamente insuficientes no período de Pandemia.
Segundo o Art. 6º, Constituição/1988:
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. (BRASIL, 1988)
Para converter o plano abstrato dos direitos sociais em políticas públicas concretas, é necessário financiamento por parte do Estado, destacadamente na esfera da Administração Pública. Nesse caso, a instituição responsável pelos gastos do país é o Ministério da Economia, através da política fiscal. Esta política atua por meio da arrecadação de tributos e outras fontes que formarão o orçamento público. E deste orçamento o Ministério tira os recursos para efetuar seus gastos.
A prioridade da ação do Estado – de suas políticas públicas – pode ser abstraída do Art. 3o, Constituição /1988, que descreve os objetivos do Estado. Estes são os objetivos: I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Analisando o juízo de constitucionalidade das políticas públicas, Fábio Konder Comparato (1997) diz que:
O Estado Social é, pois, aquela espécie de Estado dirigente em que os Poderes Públicos não se contentam em produzir leis ou normas gerais, mas guiam efetivamente a coletividade para o alcance de metas predeterminadas. (COMPARATO, 1997, p.5)
Todos os incisos do Art. 3º têm afinidade com os preceitos do Estado Social. E se o Art. 6º da Constituição – dos direitos sociais – é lido com as lentes do art. 3º, pode-se entender que o objetivo maior das políticas públicas é a promoção dos direitos sociais.
O financiamento dos gastos sociais é o meio de se concretizar os direitos sociais. E a política de Estado mais importante no financiamento de políticas públicas é a política fiscal. Ela é voltada ao chamado superávit primário, de acordo com os mandamentos do tripé macroeconômico, trazido pelo Decreto n. 3.088/1999.
Se faltam recursos, tem-se um déficit, se sobram, tem-se um superávit, então, seguindo a diretriz do tripé macroeconômico, o Ministério da Economia deverá buscar superávit ao descontar os gastos públicos primários da receita gerada pela arrecadação de impostos.
Os gastos primários são em síntese aqueles trazidos sob a forma de direitos sociais no Art. 6º, Constituição /1988 – saúde, educação, ciência e tecnologia, cultura, também repasse de verba aos estados e municípios, dentre outros. O que sobra da receita após ter-se efetuado os gastos primários é chamado de superávit primário, que serve pagar a dívida pública.
No sistema da dívida há um avanço implacável dos credores sistêmicos sobre o orçamento público, que é uma limitada fonte de financiamento. Isso torna insustentável financiar simultaneamente os gastos sociais e os gastos com os credores, motivo pelo qual foi necessário escolher entre a continuidade do pagamento da dívida e os gastos sociais.[14]
Segundo o discurso oficial do sistema da dívida, o Estado inevitavelmente ficaria numa situação de insolvência diante de seus credores caso não ajustasse suas contas. Os porta-vozes do sistema da dívida alegavam que nos governos anteriores – do Partido dos Trabalhadores – houve muitos gastos irresponsáveis.
Porém, a verdadeira irresponsabilidade não foi a suposta “gastança” em áreas sociais – que na verdade estava sendo fortemente contraída no ajuste fiscal de Dilma/Levy em 2015 – mas a verdadeira gastança com os beneficiários da dívida, em meio a um violento aumento na taxa de juros, que jogou o país em uma severa crise que deprimiu fortemente a arrecadação tributária. O orçamento estava danificado e uma crise econômica fora gerada.
Segundo a visão da grande mídia, um ajuste fiscal precisava ser feito pra que o Brasil recuperasse a confiança de seus credores. Daí a necessidade de dar proteção constitucional aos gastos com a dívida pública. Esse é o papel da Emenda Constitucional n. 95/2016.
Priorizar o interesse dos credores sistêmicos na Constituição, mesmo em situações ordinárias, já causaria prejuízos sociais profundos no país – marcado por profundas desigualdades sociais. No contexto extraordinário da pandemia da COVID-19 esses prejuízos tendem a ser agravados, porque limita a capacidade de atuação do Estado.
IV – Conclusão
A pandemia da COVID-19 exige do Estado uma atuação ativa para proteger a sociedade dos efeitos trazidos por essa pandemia. Medidas como o auxílio emergencial no valor de R$ 600,00 reais foram implementadas pelo governo a fim de atenuar esses efeitos.
O governo é o braço administrativo do Estado. Este por sua vez é estruturado sob a forma do sistema da dívida, que utiliza a dívida pública para transferir renda, patrimônio e poder decisório da sociedade devedora para bancos credores. Essa transferência é dissimulada pela narrativa dos oligopólios da comunicação, que vende ao grande público a ideia de que se trata de um conjunto de processos técnicos e necessários.
Dentre esses processos estão o socorro financeiro de R$ 1,2 trilhão aos bancos e a possível compra de quase R$ 1 trilhão em prejuízos dos bancos – valor sem 15 anos de atualização monetária. Estas somas de dinheiro transferidas aos bancos acompanham o fato de já terem R$ 1,2 trilhão depositado e remunerado no Banco Central do Brasil. É a “operação compromissada”, que é denunciada por Maria Lúcia Fattorelli.
A compra dos prejuízos dos bancos é amparada pela MP 966/2020, para proteger as autoridades do Banco Central contra a Lei de Improbidade Administrativa. Assim, apesar da conjuntura de pandemia da COVID-19, a estrutura do sistema da dívida continua operando.
Por fim, a EC n. 95/2016 – que congela os gastos sociais por 20 anos – torna o Estado incapaz de enfrentar a pandemia com eficiência, porque requer uma atuação ativa a qual essa emenda não permite. O teto dos gastos privilegia a dívida pública em detrimento das demandas sociais. Dentre essas demandas está o acesso a saúde pública, principal alvo da pandemia da COVID-19.
Rodrigo Souza
Graduando de direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
E-mail: [email protected]
18 de maio de 2020 – atualizado em 4/6/2020
Rio de Janeiro, RJ
Revisado por Rodrigo Avila – Economista da Auditoria Cidadã da Dívida
NOTAS:
[1] Ver definição do Governo Federal em: http://www.tesouro.fazenda.gov.br/conceitos-basicos-faq. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[2] Disponível em: http://www.ceapetce.org.br/uploads/documentos/5492e3c34d01b1.21996769.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[3] Disponível em: https://www.celag.org/la-deuda-publicayel-sistema-fiscal-como-mecanismo-de-desposesion-en-america-latina/. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[4] Esta é uma categoria de Noberto Bobbio, descrita por Diniz (2018, p.8) em nota de rodapé da seguinte maneira: ‘’O autor define o quem tem o poder de governar ‘com base no critério de diferentes graus de visibilidade, três faixas que chamarei de poder emergente ou público, que é a do governo propriamente dito, a faixa do poder semi-submerso ou semipúblico, que é a do subgoverno, e a faixa do poder submerso, oculto ou invisível, que não tem ainda nome (mas existe, e como!) e poderia ser chamada de criptogoverno’. BOBBIO, Norberto. As ideologias e o poder em crise. Tradução de João Ferreira; Revisão técnica Gilson César Cardoso. 4 ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999. p. 204.’’
[5] Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/03/30/coronavirus-senado-aprova-auxilio-emergencial-der600. Acesso em: 16 de maio de 2020. Posteriormente, tais estimativas foram alteradas conforme a quantidade de beneficiários. (https://www.poder360.com.br/coronavirus/ifi-estima-que-ao-menos-80-milhoes-receberao-auxilio-emergencial/ )
[6] Ver: https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostosegestao-pública/2020/03/banco-central-anuncia-conjunto-de-medidas-que-liberamr1-2-trilhao-paraaeconomia. Acesso em:16 de maio de 2020.
[7] Ver: https://revistaforum.com.br/debates/carta-aberta-sobreaindependencia-do-banco-central-por-maria-lucia-fattorelli/. Acesso em: 17 de maio de 2020.
[8] Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/golpe-de-trilhoes-em-plena-pandemia/. Acesso em 16 de maio de 2020.
[9] Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/golpe-de-trilhoes-em-plena-pandemia/. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[10] Disponível em: https://www.ivixvaluecreation.com/. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[11] Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=i1hDnJTCu1g. Acesso em: 15 de maio de 2020.
[12] Disponível em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/golpe-de-trilhoes-em-plena-pandemia/. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[13] Ver artigo de Maria Lúcia Fattorelli em: https://auditoriacidada.org.br/conteudo/mp-966-quer-livrar-da-cadeia-os-operadores-do-golpe-de-trilhoes/. Acesso em: 16 de maio de 2020.
[14] Alguns integrantes da uma corrente de pensamento denominada “Teoria Monetária Moderna” alegam que não haveria uma competição entre recursos para as áreas sociais e para o pagamento da dívida pública em moeda nacional, pois esta última poderia ser emitida pelo Estado. Porém, contraditoriamente, segundo estes mesmos integrantes, existe limite para a emissão de moeda, que seria a capacidade instalada da economia, ou seja, caso a emissão de moeda gere demanda acima de tal capacidade, o resultado seria inflação. Além do mais, defender o pagamento de dívidas (em grande parte ilegítimas) significa aumentar ainda mais a concentração de renda no país.
REFERÊNCIAS
AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 40o Edição. São Paulo. Editora Globo, 2000.
COMPARATO, F. K. Ensaio sobre o juízo de constitucionalidade de políticas públicas, 1997. Revista de informação legislativa, Brasília, ano. 35, n. 138, p. 39-48, abr./jun, 1998.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 30o edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2011.
DINIZ, Carlos Augusto de Oliveira. Análise do poder como êxito no processo de comunicação. In Revista de Sociologia, Antropologia e Cultura Jurídica. Vol. 5, n. 1, Goiânia: Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Direito (CONPEDI), 2019. p. 23-42.
FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida. O sistema da dívida no Brasil e no mundo, 2017. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/orcamentopublico/pages/arquivos/II%20Simposio/TEXTO%20FATORELLI.pdf. Acesso em: 16 de maio de 2020.
KUCINSKI, B.; BRANFORD, S. A Ditadura da dívida: causas e consequências da dívida latino-americana. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro / Hely Lopes Meirelles, José Emmanuel Burle Filho. – 42. ed. / atual. até a Emenda Constitucional 90, de 15.9.2015. – São Paulo: Malheiros, 2016.
TOUSSAINT, Eric. The Debt System: A History of Sovereign Debts and their Repudiation. Chicago. Haymarket Books, 2019. N.P.