“O cavalo de Troia da reforma administrativa”, por Gisella Collares
O cavalo de Troia da Reforma Administrativa
Brasília, 27 de setembro de 2021.
Partindo do ditado “para quem tem em mãos um martelo, tudo parece prego” é comum pensar que o equívoco é ver tudo como um prego. Afinal pode ser um parafuso… Eu acredito que a principal mensagem desta observação está na necessidade de dispor de vários instrumentos e ter o discernimento sobre qual instrumento usar em cada contexto. Isso traz a percepção e o modelo mental para o centro da análise.
Nesta perspectiva é importante compreender qual o modelo mental e a percepção que baseiam a proposta da reforma administrativa. Afirma-se que o texto da PEC nº 32 que irá para votação na câmara de deputados é superior ao proposto pelo ministro Paulo Guedes, que é fruto de um amplo debate, incluindo especialistas. O texto fala da introdução de novos princípios para disciplinar o funcionamento da administração pública, bem como, inovações na forma sua de gestão.
Inicialmente é necessário perguntar qual motivação desta reforma. A motivação apresentada no texto apresentado pelo poder executivo cita a necessidade de modernização com base em pressupostos sem comprovação fática ou com dados distorcidos. Essa motivação não foi questionada no debate, o qual se limitou a balizar o alcance da reforma. Neste sentido, alguns dispositivos foram eliminados, mas a lógica da proposta não foi alterada. Infelizmente o debate legislativo teve a predominância de uma visão mecanicista para a qual a administração pública assemelha-se à uma máquina cujo constituição é a agregação de peças de uma engrenagem e que periodicamente necessita ser consertada. É importante ressaltar que essa visão pressupõe que a operação da máquina é empreendida sobre ela e o controle é exercido de forma unidirecional de cima para abaixo ou de fora para dentro.
Aparentemente o principal objetivo seria melhorar a eficiência da administração pública e torná-la mais fexível. Mas o que será essa eficiência e flexiblidade? Qual sua métrica? Os dispositivos versam principalmente sobre regime de contratação, política de remuneração, progressão e promoção funcional, benefícios, gestão do desempenho e instrumentos de cooperação com órgãos públicos e privados. Pelo volume de dispositivos relacionados ao controle de custos financeiros percebemos qual a percepção subjacente, a de que o Estado gasta mais do que pode ou precisa.
O regime jurídico de contratação deixará de ser único. Será introduzido o contrato temporário por meio de processo seletivo simplificado com prazo de até 10 anos. Na prática, a reforma torna constitucional o contrato temporário hoje regulado pela lei 9745/93 com algumas diferenças. Esse contrato não poderá ter como objeto o exercício de atribuições próprias de servidores investidos em cargos exclusivos de Estado. Prevê avaliação periódica obrigatória com participação do avaliado e dos usuários dos serviços prestados. Cria a possibilidade de perda do cargo por insuficiência de desempenho. Introduz a possibilidade de extinção docargo, não típico de Estado, com reconhecida obsolescência prevendo indenização ao ocupante do cargo.
Muitas são as observações e questionamentos que podem ser feitos acerca destas medidas, de como elas fragilizam o serviço público gerando ainda mais iniquidades do que as que já existem. Porém, darei prioridade a uma abordagem mais sistêmica para compreender esse contexto.
O discurso é que a reforma não atingirá a establidade do servidor já concursado pois se trata de um direito adquirido e que o Importante seria a verificação do servico e não do servidor público. Essa observação demonstra claramente a perspectiva mecanicista na qual o todo é igual ao somatório das partes.
O que deveria ser garantido é não apenas a estabilidade, mas também o aperfeicoamento do serviço público e não do servidor individualmente, assim como preservação do meio ambiente envolve toda a teia da vida e não apenas a preservação de espécies de animais ou vegetais isoladamente.
As medidas citadas acima são um cavalo de Tróia para o dispositivo de criação “instrumentos de cooperação com órgãos e entidades, públicos e privados, para a execução de serviços públicos, inclusive com o compartilhamento de estrutura física e a utilização de recursos humanos de particulares, com ou sem contrapartida financeira”. Apesar da retirada inclusão do princípio da subsidiariedade no Art. nº 37, esse texto garante que a lógica da subsidiariadade permanece nas entrelinhas. Esse dispositivo possibilita a redução do espaço ou a escala de atuação das políticas públicas e significa que a universalização do de muitos serviços públicos estará nas mãos do setor privado que toma suas decisões orientado pela expectativa de cbter lucro e não com o objetivo de atender aos direitos e garantias do cidadão, isto é, em atender o interesse público. Trata-se da percepção e crença de que o mercado é intrinsecamente mais eficiente do que o Estado. Há quem diga que é uma solução para o problema do sucateamento do serviço público. Propor isso depois da pandernia de Covid-19 é no mínimo falta de bom senso, já que foi o Estado, em escala mundial, que teve reais condições de enfrentamento da pandemia. No Brasil, o Sistema Único de Saúde, com todas as suas limitações, admitindo que existem aspectos que precisam ser melhorados, foi essencial para esse enfrentamento. Além disto, sabemos que as causas do sucateamanto não são exclusivamente determinadas por problemas de gestão e sim de captura de recursos financeiros do fundo público. Porque a PEC 32 não alcança os incentivos fiscais e de infraestrutura destinados ao setor privado ou as desonarações de encargos socais, o que podemos entender como uma bolsa empresário. Se o mercado é tão eficiente porque precisa se apropriar desses recursos?
Além disto, nos marcos de uma acumulação rentista, o endividamento público é o principal instrumento de apropriação do fundo público. Isto é o que a Auditoria Cidadã chama de sistema da dívida. Desde a lei de Responsablidada Fiscal (LRF) no ano 2000, permeando a criação da desvinculação de receitas da União-DRU e alcançando as emendas constitucionais 95 e 186, e a legalização das operações compromissadas como depositos voluntários remunerados, os juros e amortizações ds dívida são deixados livres de qualquer limite e tratados como prioridade dentre todos os pagamentos realizados pelos governos. Isto é, se o mercado é mais eficiente do que o Estado porque a acumulação capitalista, hoje predominantemente financeira, necessita de leis que garantam seus privilégios? A reforma administrativa é mais uma que se soma na garantia desse poder, legalizando e diversficando as formas de precarização do serviço público.
Artigo originalmente publicado no site da AGEMPU (Associação Nacional dos Agentes de Segurança Institucional do MPU/CNMP)