Por que os governos não apresentam a dívida pública como parte do deficit financeiro?
Paulo Lindesay – Diretor da Executiva Nacional da ASSIBGE-SN/
Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/ Coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida Núcleo RJ.
Antes de responder a essa pergunta, precisamos responder algumas outras perguntas e esclarecer alguns conceitos básicos fundamentais para o entendimento da situação macroeconômica brasileira.
A maioria das pessoas não faz ideia do impacto da política econômica em suas vidas, pois desconhece que a cada 1% de aumento na taxa básica de juros (SELIC) pelo Comitê de Política Monetária (COPOM) do Banco Central, o Governo Federal gasta mais R$ 53,6 bilhões ao ano somente com juros da chamada “dívida pública”. Essa montanha de dinheiro do povo que poderia estar sendo utilizada para suprir as necessidades básicas da população brasileira tem sido destinada principalmente ao sistema financeiro rentista, ou seja, grandes bancos e investidores.
Atualmente, a taxa básica de juros SELIC está em 13,25% e o IPCA apurado em 2024 foi 4,83%. Isso representa juros reais de 8,42%. A segunda maior taxa de juros real do planeta. Um negócio da China.
A tabela a seguir atualiza as elasticidades da DLSP (“Dívida Líquida do Setor Público”) e da DBGG (“Dívida Bruta do Governo Geral”) a variações na taxa de câmbio, na taxa de juros e nos índices de preços para o mês de dezembro de 2024.
O sistema pode usar os doutores das principais universidades do mundo para garantir os seus argumentos. Doutores, não mentem, e se mentem, não podemos contrariar seus argumentos. Será verdade?
Entre 2015 e 2016, o Brasil teve uma queda no PIB de quase 8%. Isso aconteceu sem nenhuma justificativa plausível. Não houve crise bancária, desemprego em massa, pandemia etc. Em agosto de 2016, aconteceu um golpe de Estado contra o governo da Dilma Rousseff, onde o Vice-presidente, Michel Temer, assume a presidência e coloca em debate o ajuste fiscal num Congresso Nacional reacionário.
Em dezembro de 2016, foi aprovada e sancionada a Emenda Constitucional n0 95. A chamada Emenda do fim do mundo. Colocando uma trava nas despesas primárias por 20 anos, corrigido pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, do ano anterior.
Portanto, o valor do orçamento primário estava rebaixado, com menos investimentos em serviços públicos de qualidade para garantir a “sustentabilidade” da dívida pública. Além das várias vedações aos serviços públicos e ataques aos seus servidores:
- concessão, a qualquer título, de vantagem, aumento, reajuste ou adequação de remuneração de membros de Poder ou de órgão, de servidores e empregados públicos e militares…
- criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa;
- alteração de estrutura de carreira que implique aumento de despesa;
- admissão ou contratação de ..;
- realização de concurso público, exceto para as reposições de vacâncias previstas no
inciso IV;
- criação ou majoração de auxílios, vantagens, bônus, abonos, verbas de representação ou benefícios de qualquer natureza…; e
- Criação de despesa obrigatória.
Temer não parou aí, em 2017 conseguiu aprovar, em conluio com a maior parte do Congresso reacionário, a reforma trabalhista. Criando o trabalho intermitente e reduzindo ainda mais os direitos trabalhistas à classe trabalhadora. Tudo sob o discurso sustentado pelos empresários brasileiros de segurança jurídica para criar mais empregos formais, pura falácia.
A reforma trabalhista e o ajuste fiscal de Temer não resolveram os problemas trabalhistas e financeiros do Brasil. Chegou 2019, eleição do desgoverno de Bolsonaro. Mas uma vez, soluções milagrosas foram arquitetadas pelo então ministro da economia, Paulo Guedes: contrarreforma da Previdência, revogação de vários decretos, leis e portarias aprovadas pelo governo do PT. Um novo arcabouço legal, mas imoral, foi aprovado. Não deu certo.
Entre junho de 2019 (US$ 388 bilhões) e dezembro de 2022 (US$ 324 bilhões), o desgoverno Bolsonaro queimou cerca de US$ 64 bilhões ou mais de R$ 320 bilhões das nossas reservas internacionais, em favor do grande capital financeiro rentista, garantindo lucros crescentes e
vitalícios. Mas isso não colocou a macroeconomia nos eixos.
Quantos países tem no mundo em 2024? Atualmente, existem 206 países no mundo, mas apenas 195 são reconhecidos pela Organização das Nações Unidas. A ONU tem 193 países oficialmente integrantes do organismo e outros dois apenas como países observadores, são eles: Vaticano-Santa Sé e o Estado da Palestina.
Na América Latina, que eu saiba, apenas o Brasil e a Argentina usam o conceito de déficit primário nas despesas do governo. Além disso, a comparação da dívida pública com um pai de família é outra distorção proposital nas análises da Faria Lima e seus asseclas de plantão. O Estado não pode gastar mais do que arrecada, pura mentira. Mas esse é o argumento central usado pelos donos do poder. Só esqueceram de nos dizer que o Estado pode emitir moedas, títulos públicos da dívida e arrecadar outras fontes de receitas, além das receitas primárias. Enquanto o pai de família não tem essas possibilidades.
Outra análise errônea é comparar a dívida pública dos EUA e Japão com a dívida pública do Brasil, em relação ao PIB. Em 2024, a relação dívida pública – PIB do Japão foi de 217%. Nos EUA – 122%. No caso do Brasil, essa relação foi de 76,1% do PIB. Apesar de a relação dívida X PIB, no Brasil, ser a menor, o que não nos contaram é que o Japão e os EUA não usam o conceito de déficit primário. Isso faz uma grande diferença. Eles não são obrigados a fazer uma poupança forçada nas despesas primárias, onde reside verdadeiramente o Estado Social. Tudo para garantir a sustentabilidade da dívida pública.
Anos após anos, o fundo público federal é sangrado em quase 50%, em benefício do pagamento do serviço da dívida (juros + amortização). A previsão da PLOA/2025 ao Orçamento Geral da União é de cerca de R$ 5,699 trilhões. Desse total, cerca de R$ 2,528 trilhões ou 44,36% da Despesa Geral da União serão destinados ao pagamento do serviço da dívida pública. Somente um país com a economia do tamanho da brasileira suporta essa sangria no seu orçamento dessa monta.
Quando apareceu o conceito de déficit primário nas despesas da União? Em 2000, após a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, no artigo 31, parágrafo 10, inciso II – obterá resultado primário necessário à recondução da dívida ao limite, promovendo, entre outras medidas, limitação de empenho, na forma do art. 90. Se for verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subsequentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.
O que é superavit primário? Superávit primário é o resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros. Já o déficit primário ocorre quando esse resultado é negativo. Ambos constituem o “resultado primário”.
Outra coisa importante, para ser chamada de dívida pública, deve existir a contrapartida em serviços públicos e investimentos diretos na infraestrutura do Estado. Entre dezembro de 2018 e dezembro de 2024, o estoque da dívida bruta do governo geral cresceu, cerca de R$ 3,712 trilhões. No mesmo período, não houve grandes melhorias nos serviços públicos federais, efetivados pelos governos federais de plantão no Palácio do Planalto.
No relatório do FMI também há uma discussão sobre conceitos de dívida pública, notadamente a diferença entre a dívida bruta pelo conceito do Banco Central e do FMI. Em resumo, a dívida bruta do conceito do FMI é a dívida bruta (conceito BCB) mais os títulos emitidos pela STN que estão na carteira do Banco Central e os débitos de responsabilidades das empresas estatais dos três níveis de governo (federal, estadual e municipal, excluindo a Petrobras e Eletrobras).
Quais as receitas compõem as receitas federais?
- Receitas
- Receitas de
- Receitas correntes intra-orçamentárias.
- Receitas de capital intra-orçamentárias.
O que são receitas correntes?
A Lei no 4.320/1964, art. 11, § 10, definiu o que é receita corrente. Receitas arrecadadas no exercício financeiro que aumentam as disponibilidades financeiras do Estado, em geral, com efeito positivo sobre o Patrimônio Líquido. São exemplos de receitas correntes: a receita tributária, a receita de contribuições, a receita patrimonial, a receita agropecuária, a receita industrial, a receita de serviços e outras.
O que é Receita de Capital e quais são as principais?
São receitas provenientes de operações de crédito, da alienação de bens, da amortização de dívida, das transferências destinadas ao atendimento de despesas de capital, ou ainda, de outros ingressos de capital.
O que são Receitas Correntes INTRA-ORÇAMENTÁRIAS?
São receitas correntes de órgãos, autarquias, fundações, empresas dependentes e de outras entidades integrantes dos orçamentos fiscal e da seguridade social, quando o fato que originar a receita decorrer de despesa de órgão, autarquia, fundação, empresa dependente etc.
O que são Receitas de Capital INTRA-ORÇAMENTÁRIAS?
São receitas de capital de empresas estatais dependentes integrantes do orçamento fiscal, quando o fato que originar a receita decorrer de despesa de órgão constante desse orçamento, no âmbito da mesma esfera de governo.
Como é composto o orçamento da despesa geral da União?
As despesas da União são compostas por despesas financeiras (Amortização/Refinanciamento da Dívida, Inversões Financeiras, Outras Despesas Correntes e Juros e Encargos da Dívida) e despesas não financeiras, compostas por 27 funções primárias e despesas com Pessoal e Encargos Sociais.
O setor público consolidado registrou em 2024 déficit primário de R$ 47,6 bilhões. (0,40% do PIB). Mas o governo federal excluiu gastos com enchentes no RS, incêndios no Pantanal e na Amazônia e valores destinados ao Judiciário e ao CNMP, resultando um déficit primário de cerca de R$ 11 bilhões – o equivalente a 0,09% do PIB.
Após entendermos que o orçamento público é composto por despesas financeiras e não financeiras (27 despesas primárias e despesa com pessoal). Podemos avaliar que os cálculos do déficit brasileiro não podem desconsiderar as despesas financeiras do governo federal. Principalmente, o pagamento da dívida pública. Somente em 2024, o pagamento ao serviço da dívida pública federal representou uma sangria de mais de R$ 1,996 trilhão.
Na série histórica do déficit primário, apresentado pelos governos, consideram-se apenas as despesas na metade do orçamento da União. Só se os governos não consideram a dívida pública federal como despesa de governo. Somente o pagamento de juros nominais consolidados do setor público, em 2024, alcançou a cifra de R$ 952 bilhões. Por que esse valor não entra na conta de deficit público?
Como podemos observar, não existe falta de recursos. O problema financeiro está na destinação do dinheiro. Políticas públicas ou sustentabilidade da dívida pública?