A Lei da Usura no país da agiotagem financeira
Por Glísia Mendes Tavares Gomes
Tecnologista em Saúde Pública, aposentada.
No Brasil vivemos uma discrepância econômica e social que não condiz com a nossa realidade de riqueza em recursos naturais, humanos e em termos de investimentos.
Somos um país rico com uma população extremamente pobre. A nona economia do mundo1, mas com um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) lastimável. Ainda que tenha havido uma redução da desigualdade segundo o IBGE nos últimos 11 anos, continuamos no topo da concentração de renda no mundo. Comparando com dados mais recentes relativos ao índice de Gini, que aponta a diferença entre os rendimentos dos mais pobres e dos mais ricos, em comparação a outros países,o Brasil aparece como o décimo pior em desigualdade, apenas países africanos, como a África do Sul, se saem pior, encabeçando a lista. 2
Aliado a uma dívida pública nunca auditada e com indícios de inúmeras irregularidades como mostrou a CPI da Dívida (2009-2010)3,4, somos oprimidos pelos juros mais estratosféricos do planeta. E aí vem a pergunta: Cadê a Lei da Usura (Decreto-Lei 22.626/33)? Onde fica o artigo 406 do Código Civil que diz: Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional. (Vide ADIN 5867) (Vide ADC 58) (Vide ADC 59) (Vide ADPF 131).5
“De acordo com o Novo Código Civil na ausência de estipulação entre as partes, foi estabelecida uma taxa de juros legais moratórios, equivalente à taxa de juros decorrente da mora no pagamento de impostos à Fazenda Nacional (art. 406). Em qualquer caso, a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional é definida pelo art. 161, § 1.°, do Código Tributário Nacional “Se a lei não dispuser de modo diverso, os juros de mora são calculados à taxa de 1% (um por cento) ao mês” e art. 5.° do Decreto 22. 626/33, o que se afirma na exata medida em que a taxa Selic, instituída por leis ordinárias (Leis 9.065/95 e 9.779/99), não pode ser aplicada em detrimento do art. 161, § 1. °, do CTN, em razão do princípio da hierarquia, vez que o Código Tributário Nacional foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988 como lei materialmente complementar (art. 34 do ADCT)”.6
Tentando se “ajustar” ao cenário caótico brasileiro, sem deixar de fazer as vezes do mercado financeiro, reduziu-se os juros do cartão de crédito de taxas que chegavam a 1000%7, aos agora 100%8, ainda absurdos, tendo-se como parâmetros inúmeros países com taxas bem mais condizentes com a civilidade. Grande parte dos países, incorpora o limite de juros à legislação – em 28 deles existem as chamadas “leis de usura” e em 24 há leis específicas de taxas de juros.9“Os juros do rotativo eram maiores do que os que qualquer consumidor de baixa renda pagaria a um agiota do bairro onde mora, por exemplo. Sei que a frase é forte, mas é uma verdade absoluta. Não tinha nenhum modelo de empréstimo que cobrava mais juros do consumidor e acredito que o crédito rotativo é o verdadeiro responsável pela inadimplência”, ressalta o fundador do Data Favela, Renato Meirelles.
Toda essa farra do sistema bancário se torna ainda mais nauseante quando nos damos conta que o Banco Central realiza operações chamadas “compromissadas” e “depósitos voluntários remunerados” com essas instituições, esterilizando, ou seja, deixando parados cerca de 1,4 trilhão de reais, que poderiam estar sendo investidos no país, mas que têm servido apenas para remunerar a sobra de caixa.11 Essas operações chegam a consumir quase 25% do PIB do país12com a falácia de enxugar a liquidez em um país onde não há circulação excessiva de moeda na economia, pelo contrário, o que existe é uma imensa escassez e também com o pretexto, já desmascarado, de controlar a inflação que advém de preços definidos pelo próprio governo (combustíveis, plano de saúde, escola, luz, água, aluguel, entre outros) e não de uma suposta demanda aquecida.
Não podemos viver subjugados a um sistema que só tem retirado recursos do país e dos indivíduos de formas que parecem não estar relacionadas para a maioria das pessoas mas sim, estão. Uma apenas diz respeito à macroeconomia (ex.: operações compromissadas, depósito voluntário remunerado, swap cambial) e outra à microeconomia (ex.: os altos juros que você paga e a carestia de tudo como resultado desse sistema de expropriação).
O artigo 192 da Constituição diz: O sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 40, de 2003) (Vide Lei nº 8.392, de 1991).13 E, ainda que o parágrafo terceiro tenha sido retirado do artigo 192, não há matemática ou economês que comprove que não existe limite, para além do interesse da banca financeiraque dita as regras da política econômica do país.
Se em 1988, taxas acima disso já eram consideradas usura, imagine agora num país de população de maioria assalariada, alguns com desconto de imposto de renda de 27,5% na fonte, enquanto uma minoria é isenta (conforme Tabela 1)14, pois a regressividade do sistema tributário brasileiro tem beneficiado rendimentos isentos e não tributáveis como lucros e dividendos. Citando um exemplo prático, quem declarou mais de 320 salários-mínimos mensais em rendimentos totais, aproximadamente 68% correspondem aos rendimentos isentos e não tributáveis e apenas 6,68% correspondem aos rendimentos tributáveis brutos. 15
Tabela 1- Nova tabela de dedução do IR
Fonte: Valor Econômico Brasil
É inadmissível conceber juros abusivos como os adotados no Brasil com a grande maioria da população ganhando de 1 salário (agora, R$ 1.421,00) a 2 salários e ainda segurando todo o peso da tributação que incide, principalmente, sobre o consumo.16
As taxas de juros impostas à população brasileira são simplesmente aviltantes e não têm parâmetros, teóricos, técnicos e econômicos, no planeta.
Para concluir, coloco um parágrafo do livro em pdf do Professor Ladislau Dowbor, “Juros extorsivos no Brasil: como o brasileiro perdeu seu poder de compra”, página 94: “Os juros elevados alimentam os intermediários financeiros, segundo os vários mecanismos que vimos acima. Manter os juros elevados em nome da proteção do povo contra a inflação gera ao mesmo tempo o elevado fluxo de recursos para os intermediários financeiros, e uma segunda fonte de recursos que é a própria inflação, já que os bancos ganham no “float”(denomina o prazo existente entre o dia do depósito de um pagamento ou cheque e a recepção deste valor no banco ou entidade financeira) de recursos não aplicados pelos clientes. A inflação em si constitui um poderoso instrumento de transferência de recursos dos que têm renda fixa, como os assalariados, aposentados ou até pequenos empresários que não têm como influenciar os preços, para os grandes grupos financeiros que fazem aplicações financeiras e escapam da erosão da capacidade de compra. O rentista tem o dinheiro aplicado e que rende muito, enquanto o assalariado espera a renegociação do salário a cada ano, e o que ele perde é indiretamente apropriado pelo sistema financeiro.”17Vale acrescentar que, além de “indiretamente apropriado”, poderíamos dizer imoralmente e injustamente e, o que tem sido feito, ainda é pouco diante da imenso deslocamento de renda de um grande estrato da população para um pequena parte que ganha apenas especulando.
Referências
1- “Brasil salta duas posições e se torna a nona economia do mundo em 2023”. 2023. Agência Brasil. https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2023-12/brasil-salta-duas-posicoes-e-se-torna-nona-economia-do-mundo-em-2023 (3 de janeiro de 2024).
2– Mali, Tiago. 2023. “Desigualdade do Brasil está a décadas de distância da Europa”. Poder360. https://www.poder360.com.br/economia/desigualdade-do-brasil-esta-a-decadas-de-distancia-da-europa/ (3 de janeiro de 2024).
3- https://www.auditoriacidada.org.br/wp-content/uploads/2012/08/Principais-Investiga%C3%A7%C3%B5es.pdf
5- “Art. 406 do Código Civil”. Jusbrasil. https://www.jusbrasil.com.br/busca?q=art.+406+do+c%C3%B3digo+civil (3 de janeiro de 2024).
6- “Limites legais da cobrança de juros – Gilberto Melo”. https://www.gilbertomelo.com.br/limites-legais-da-cobranca-de-juros/
7- “Por que juros do cartão chegam a 1.000% mesmo com a Selic em 13,75%?” 2023. Estadão E-Investidor – As principais notícias do mercado financeiro. https://einvestidor.estadao.com.br/educacao-financeira/juros-cartao-de-credito-com-selic-a-13-75/ (3 de janeiro de 2024).
8- Dhiego. 2024. “Juros do rotativo passam a ser limitados a 100% da dívida a partir de hoje; veja simulação”. InfoMoney. https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/juros-do-rotativo-passam-a-ser-limitados-a-100-da-divida-veja-simulacao/ (3 de janeiro de 2024).
10- “Teto do rotativo reduz endividamento, mas juros continuam altos”. https://www.folhape.com.br/economia/teto-do-rotativo-reduz-endividamento-mas-juros-continuam-altos/309482/ (3 de janeiro de 2024).
11-“Capítulo 2 – POR QUE AS OPERAÇÕES COMPROMISSADAS ESTÃO TÃO ELEVADAS?” Auditoria Cidadã da Dívida. https://auditoriacidada.org.br/conteudo/capitulo-2-por-que-as-operacoes-compromissadas-estao-tao-elevadas/
12- “Depósito voluntário remunerado é Bolsa Banqueiro sem limite e sem causa’, por Maria Lucia Fattorelli”. Auditoria Cidadã da Dívida. https://auditoriacidada.org.br/conteudo/deposito-voluntario-remunerado-e-bolsa-banqueiro-sem-limite-e-sem-causa/
13- “Art. 192 da Constituição Federal de 88”. Jusbrasil. https://www.jusbrasil.com.br/topicos/10655792/artigo-192-da-constituicao-federal-de-1988.
14- “Veja nova tabela do Imposto de Renda e entenda o que mudou”. 2023. Valor Econômico. https://valor.globo.com/brasil/noticia/2023/08/28/veja-a-nova-tabela-do-imposto-de-renda.ghtml
15- Palermo, Luiza. “Milionários pagam menos IR que classe média, enquanto também ficam mais ricos”. CNN Brasil. https://www.cnnbrasil.com.br/economia/milionarios-pagam-menos-imposto-de-renda-que-classe-media-enquanto-tambem-declaram-mais-lucros-e-dividendos/
16- “As distorções de uma carga tributária regressiva”. https://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&id=3233
17- “Juros Extorsivos No Brasil: Como O Brasileiro Perdeu O Poder De Compra | Dowbor.org”. 2016. https://dowbor.org/2016/06/l-dowbor-juros-extorsivos-no-brasilcomo-o-brasileiro-perdeu-o-poder-de-compra-etica-sao-paulo-2016-108p.html