A Fraude do 166

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Guilherme Rosa Thiago*

A Dívida Pública brasileira vem consumindo quase metade do Orçamento da União, ano após ano, e mantém-se crescente através dos mecanismos do “Sistema da Dívida”. Tal Sistema encontra amparo legal em nosso país, envolto em um conjunto de normas que garantem a prioridade absoluta à remuneração dos detentores de títulos da crescente dívida brasileira.

Todavia, este aparato legal que favorece o sistema financeiro nasceu de maneira, no mínimo, curiosa. A Assembleia Nacional Constituinte (ANC), eleita em 1987, definiu em seu Regimento Interno três etapas como regras para condução dos debates, elaboração, votação e promulgação do texto da constituição Federal de 1988.

Primeiramente, seriam votados em primeiro turno o Projeto de lei constitucional, as emendas e os destaques propostos por parlamentares constituintes. O resultado dessa etapa era chamado de Projeto nos documentos do Diário da Assembleia Nacional Constituinte (DANC).

Após aprovação em primeiro turno, o Projeto seria submetido a um processo de sistematização, antes da votação em segundo turno. A sistematização visava corrigir inconsistências e erros na indexação e nas referências internas dos dispositivos no Projeto.

Por fim, o resultado dessa sistematização seria encaminhado para votação em segundo turno. No segundo turno só poderiam ser apresentadas e votadas alterações no vencido através de emendas supressivas ou corretivas, relativas a omissões, erros ou contradições.

Importante ressaltar que, segundo o art. 29 do Regimento Interno da ANC, as  omissões e erros sanáveis em segundo turno seriam as de natureza que não de mérito.

Dito isso, a ilegalidade surgiu no momento em que ocorreu alteração de mérito no Projeto, em artigo que tratava das diretrizes orçamentárias. A transcrição da redação aprovada em primeiro turno foi alterada com a adição de dispositivos inexistentes no texto constitucional e submetida a votação em segundo turno sob pretexto de reunir emendas supressivas e sanativas, embora tal dispositivo sequer tenha sido objeto de qualquer emenda apresentada.

Além de violar o art. 29 do Regimento Interno ao inovar no mérito, não consta no requerimento de fusão votado em plenário a assinatura, ou qualquer manifestação, do autor da proposta de Emenda onde foram adicionados os dispositivos ilegalmente propostos, tampouco rubricas dos autores das propostas de Emenda citadas para fusão e de 12 dos 14 líderes partidários, que comprovariam a autenticidade do que foi lido e votado em plenário.

Estas supramencionadas ilegalidades regimentais da Constituinte resultaram no art.166, § 3º, II, b, da Constituição da República:

“Art. 166. Os projetos de lei relativos ao plano plurianual, às
diretrizes orçamentárias, ao orçamento anual e aos créditos
adicionais serão apreciados pelas duas Casas do Congresso
Nacional, na forma do regimento comum.
(…)
§ 3º As emendas ao projeto de lei do orçamento anual ou aos
projetos que o modifiquem somente podem ser aprovadas caso:
(…)
II – indiquem os recursos necessários, admitidos apenas os
provenientes de anulação de despesa, excluídas as que incidam
sobre:
(…)
b) serviço da dívida;”

Desse modo, a “Constituição Cidadã” foi promulgada com esta exceção, isentando os gastos com a dívida pública de indicar sua fonte de recursos. Ao redor deste privilégio Constitucional o restante do arcabouço jurídico que blinda o serviço da dívida foi tomando forma e dando respaldo para que, por exemplo, hoje o Banco Central possa elevar as taxas de juros (alegando ser medida necessária para conter a inflação) sem se preocupar de onde sairão os recursos para o pagamento de tais juros sobre a dívida.

Ademais, o art. 166, § 3º, II, b, conflita com o art. 167, III, também da Constituição da República, conhecido como “Regra de Ouro”, que autoriza emissão de dívida apenas para o pagamento de despesas de capital (dentre elas, amortização da dívida), vedando, deste modo, a emissão de dívida para o pagamento de despesas correntes (por exemplo, juros nominais da dívida pública). Este conflito veio à tona durante a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010, onde as investigações apontaram a contabilização ilegal de grande parte dos juros nominais como se fossem amortizações, burlando a Constituição.

Adriano Benayon e Pedro Antônio Dourado de Rezende denunciam no artigo “Anatomia de uma Fraude à Constituição”, que a adição desse dispositivo de mérito que causa imensas consequências ao País, sem ter ele sido discutido durante o processo legislativo, configura estelionato, tipificado no Art. 171 do Código Penal, além de contrariar o art. 37 da própria CR/1988:

“Art. 171 – Obter, para si ou para outrem, vantagem ilícita, em
prejuízo alheio, induzindo ou mantendo alguém em erro,
mediante artifício, ardil, ou qualquer outro meio fraudulento”.

“Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer
dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (…)”.

Para os autores o ato, além de ilegal, acarretou imensuráveis danos materiais e morais ao País, foi praticado sem publicidade, gerou vantagens para os “especuladores mundiais e locais”, e induziu a erro os constituintes, que assinaram o texto final da Constituição sem perceber a introdução do dispositivo jamais discutido durante seus trabalhos. Entendem ainda que o dolo, inerente ao crime de estelionato, é agravado por não ter sido a matéria trazida a público em nenhum momento pelos interessados no conteúdo “contrabandeado para dentro da Carta Magna” durante os dois anos da Constituinte.

Todavia, cabe destacar que esse tratamento diferenciado que o Sistema da Dívida recebe não se iniciou com esse privilégio inserido na Constituição de 1988 e tampouco será corrigido por via política, jurídica ou legislativa. Apenas a união da sociedade civil será capaz de pressionar e subjugar o Sistema da Dívida, como ocorreu recentemente na Islândia, que se recusou a pagar a dívida dos bancos que quebraram na crise de 2008, prendeu os banqueiros responsáveis e elaborou uma nova constituição através de um conselho popular, seguido de perto pelas redes sociais.

* Trabalho de Conclusão do Curso de Ensino à Distância Dívida Pública Brasileira e suas consequências para os diversos segmentos sociais – Auditoria Cidadã da Dívida: Por quê? Para quê? Como? 

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Bibliografia
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm;

BENAYON , Adriano ; REZENDE, Pedro Antonio Dourado de. Anatomia de uma fraude à Constituição. Brasília/DF, 2006.

Disponível em: http://www.cic.unb.br/~rezende/trabs/fraudeac_files/fraudeac.pdf. Acesso: 30 jun. 2017;

FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados. 1a. ed. Brasília/DF: Inove, 2013. 387 p.;