AUDITORIA DA DÍVIDA: 30 anos de descumprimento da Constituição Federal A Constituição “Cidadã” vem dando lugar à Constituição “do mercado”

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Maria Lucia Fattorelli 1

A Constituição de 1988 foi promulgada em plena “crise da dívida externa”.
Em 1982, o Brasil, o México, a Argentina, entre outros países, foram fortemente atingidos pela elevação unilateral das taxas de juros internacionais, de cerca de 5 para mais de 20,5%, por ato unilateral dos mesmos grandes bancos privados internacionais que controlavam o FED (banco central norte-americano) e a associação de bancos de Londres que ditavam o patamar das taxas Prime e Libor que
regiam os contratos de empréstimos externos.

Após provocar a crise, os grandes bancos privados internacionais foram extremamente beneficiados pelo FMI, que interviu em diversos países, inclusive o Brasil, a partir de 1983, e exigiu que dívidas externas tanto do setor público como do setor privado junto a tais bancos fossem transformadas em obrigações do Banco Central de cada país.

Não foi à toa que a década de 80 ficou conhecida como “década perdida”. O Banco Central passou a pagar por uma dívida que nunca havia recebido, extraindo recursos que provocaram impressionante retrocesso socioeconômico devido ao sangramento de recursos orçamentários destinados ao pagamento do serviço da dívida externa.

O Brasil se transformou em exportador de capitais, ao mesmo tempo em que aprofundaram-se as desigualdades sociais, o desemprego, a paralisação da economia real e a completa subserviência aos interesses financeiros privados que ignoram flagrantemente a soberania nacional, sob a regência do FMI, que passou a reger todas as decisões econômicas do país de forma explícita.

Nesse clima, foi promulgada a Constituição de 1988, que incluiu, no Art. 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a obrigatoriedade de realização de uma auditoria da dívida.

De lá prá cá, a maior parte da dívida “externa” foi transformada em dívida “interna”, apesar de suspeita de prescrição no início da década de 90, seguida de transformação em títulos em operação realizada em Luxemburgo (Plano Brady), dos quais uma parte foi utilizada como “moeda” na compra de empresas privatizadas, outra parte foi transformada em dívida interna no início do Plano Real, quando se
praticava juros exorbitantes “para controlar a inflação”, e outros seguiram sendo reciclados em outros títulos da dívida externa e interna.

Embora existam diversos indícios de ilegalidades e até fraudes nas negociações da dívida externa com bancos privados internacionais e na dívida interna gerada por mecanismos sem contrapartida alguma à sociedade que paga a conta, a auditoria oficial nunca foi realizada, e a Constituição vem sendo modificada para garantir cada vez mais os privilégios financeiros em detrimento dos direitos sociais.

Mas o controle cidadão inaugurou, a partir de grande plebiscito popular que envolveu mais de 6 milhões de pessoas no ano 2000, a Auditoria Cidadã da Dívida, cujas descobertas têm inspirado mobilizações no país e exterior, mostrando a cada dia que a prática da cidadania de forma ativa e persistente pode fazer diferença no curso da história.

Temos denunciado desde 2010, quando foi concluída a CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados, a burla ao art. 167, inciso III, da Constituição, conhecido como “regra de ouro”, que proíbe a emissão de títulos da dívida pública para o pagamento de despesas correntes, tais como juros, salários e gastos para a manutenção do Estado. O pagamento dos juros abusivos pagos pelo governo brasileiro tem sido possibilitado mediante a emissão de novos títulos da dívida, que são contabilizados como se fosse amortização. Dessa forma, o volume de
amortizações anual é de centenas de bilhões de reais e a dívida cresce na mesma proporção!

Denunciamos também o sigilo das operações da dívida pública brasileira: não sabemos que são os credores dos mais de R$ 5 bilhões de dívida interna e mais de US$150 bilhões de dívida externa pública, em flagrante afronta ao princípio constitucional da transparência que deve reger todo ato público.

Em linha com a desregulamentação financeira que ocorre em todo o mundo, inaugurada com o fim da paridade dólar ao ouro decidida pelo FED em 1971, e aprofundada principalmente a partir dos anos 90, o art. 192 da nossa Constituição foi praticamente apagado, pois todos os seus incisos e parágrafos foram sumariamente revogados pela Emenda Constitucional 40/2003, e substituídos por apenas uma frase genérica, aprofundando a liberdade de ação do mercado financeiro.

Essa desregulamentação, juntamente com o privilégio do sigilo bancário, a liberdade de movimentação de capitais, o acesso livre a paraísos fiscais onde são escondidos lucros e operações, tem aumentado ainda mais o poder do insaciável setor financeiro, que quer ainda mais: deseja modificar a Constituição para garantir a completa independência do Banco Central, para que seus diretores sejam indicados
pelo mercado e não possam ser demitidos pelo presidente da República.

O falso discurso de que os gastos sociais seriam os responsáveis pelo déficit das contas públicas não resiste a 5 minutos de argumentação fundamentada em dados oficiais. Na verdade, a gastança financeira com a chamada dívida pública é que tem sido a responsável pelo déficit nominal decorrente principalmente do alto custo da política monetária do Banco Central.

Ao longo de duas décadas – de 1995 a 2014 – produzimos mais de R$ 1 trilhão de Superávit Primário, ou seja, o volume de “receitas primárias” (principalmente os tributos) superou em mais de R$ 1 trilhão a soma de todas as “despesas primárias” (que compreende os gastos sociais e investimentos em todas as rubricas orçamentárias, exceto os gastos financeiros com a dívida pública). Portanto, durante esses 20 anos, gastamos menos com as áreas sociais do que arrecadamos em tributos!

Apesar dessa economia forçada de mais de R$ 1 trilhão, que absorveu recursos que deveriam ter financiado o desenvolvimento socioeconômico, ainda assim, ao longo desses 20 anos, o estoque de títulos da dívida interna saltou de R$ 85 bilhões para R$ 4 trilhões em 2015. E continua crescendo exponencialmente, tendo superado R$ 5 Trilhões em Dezembro/2017.

Toda essa sobra de recursos que superou R$ 1 trilhão serviu para garantir o pagamento de parte dos juros da dívida pública (despesa não primária), porém, não foi suficiente para cobrir todo o déficit nominal gerado pelos gastos financeiros decorrentes dos abusivos juros e demais mecanismos de política monetária também praticados pelo Banco Central, geradores de grandes volumes de dívida pública.
Portanto, o déficit nominal histórico 2 tem sido provocado pelas despesas financeiras e não pelo gasto social.

Ao longo dos anos, a Constituição “Cidadã” vem dando lugar à Constituição “do mercado”.

Com a aprovação da Emenda Constitucional n o 95 em 2016 – que estabeleceu teto somente para as despesas primárias, para que sobrem ainda mais recursos para os gastos financeiros com a chamada dívida pública – o ajuste fiscal ganhou status constitucional e vigorará por 20 anos, a não ser que a sociedade se mobilize para derrubar essa verdadeira excrecência!

A referida emenda 95 amarrou toda e qualquer possibilidade de avanço no atendimento dos direitos sociais, ainda que a arrecadação dobre (!), a Constituição “modificada para atender ao mercado” proíbe aumentar investimentos em saúde,
educação etc.

Porém, a EC-95/2016 deixou fora do teto os gastos com a dívida pública, que poderão crescer sem controle ou limite, e também as despesas com o aumento de capital das “empresas estatais não dependentes”, dentre as quais sobressaem as que estão operando o fraudulento esquema da “Securitização de Créditos”.

A chamada “Securitização de Créditos” é a nova modalidade de geração de dívida pública disfarçada, a qual é paga por fora, com recursos arrecadados de contribuintes, desviados durante o seu percurso pela rede arrecadadora, de tal forma que sequer alcançarão os cofres públicos.

Tal esquema possibilita que o mercado se aproprie diretamente do fluxo de arrecadação tributária, antes que os recursos alcancem o orçamento público, o que fere a Constituição e toda a legislação de finanças do país, que é estruturada no
princípio do orçamento único.

Apesar de vergonhosamente desmascarado por uma CPI realizada pela Câmara Municipal de Belo Horizonte, que contou com a colaboração da Auditoria Cidadã da Dívida (ver relatório fundamentado e respectivo adendo 3 ), e apesar de contestado por diversos órgãos de controle, o esquema da chamada “Securitização de Créditos” segue se alastrando.

A Câmara dos Deputados está para votar o PLP 459/2017, que visa legalizar tal esquema, mas a Auditoria Cidadã da Dívida entregou Interpelação Extrajudicial 4, tendo em vista que o texto do projeto de lei está redigido de forma cifrada, não permitindo o completo conhecimento do imenso dano econômico, patrimonial, financeiro e moral que ele esconde.

Estamos vivendo no avesso do país que poderíamos ter, considerando as nossas imensas riquezas continuamente entregues (e nem falei do pré-sal sendo rifado a preço vil…), nosso orçamento público sangrado para pagar juros e amortizações da chamada dívida pública, repleta de ilegalidades, que nunca foi objeto de uma auditoria integral, comprometendo o atendimento aos direitos sociais previstos no Art. 6 o da Constituição.

A saída está na participação social e no exercício da cidadania ativa, exigindo que a Constituição Cidadã seja recuperada e aprimorada para garantir a democracia e a vida digna para todas as pessoas, como deve ser em um país marcado pela abundância, como o Brasil.

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1 Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida <www.auditoriacidada.org.br> e <https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina>. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida
da Grécia (2015).

2 Em raros momentos, chegamos a produzir Superávit Nominal, conforme notícia disponível em: http://clicrbs.com.br/especial/sc/rbs30anos/19,0,1903447,

3 Relatório apresentado pela Auditoria Cidadã da Dívida à CPI da PBH Ativos S/A, e respectivo Adendo 1 disponível em https://goo.gl/7TsT13

4 Texto da Interpelação Extrajudicial disponível em https://auditoriacidada.org.br/wp-
content/uploads/2018/07/Interpelac%CC%A7a%CC%83o-extra-judicial.pdf