“Dívida Pública Ilimitada como Estratégia de Finanças Públicas Desreguladas: Qual é o Sentido?” – Guilherme C. Delgado

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* Guilherme C. Delgado

1 – Introdução

A categoria dívida pública, antes de se constituir, com a modernidade em um importante instrumento de mobilização de recursos econômicos no âmbito dos nascentes Bancos Comerciais; e em especial, destes com relação ao Estado Moderno 1 ; é uma categoria teológica central na Bíblia, tanto do Antigo como do Novo Testamento.

Faço esta observação inicial para chamar a atenção para o título deste artigo:

“Dívida Pública Ilimitada como Estratégia de Finanças Públicas Desreguladas…”, cuja desregulamentação ora (na conjuntura) em processo de aprofundamento, contêm, como pretendo demonstrar, todos os ingredientes à perpetuação e ilimitado crescimento dessa dívida, não obstante todas as declarações em contrário dos protagonistas dessa estratégia financeira.

Vou iniciar este artigo pela explicitação do conceito mais geral de ‘Finanças Públicas’ em processo de desregulamentação crescente, em múltiplos dos seus subsistemas, para então chegar à corroboração ao título deste artigo. No final, nas “Conclusões” a ligação da estratégia da dívida ilimitada com a desregulação financeira ficará mais clara. Mas para entende-la, a chamada racionalidade econômica é insuficiente. Precisaremos recorrer a conceitos teológicos muito antigos, de fundamentos ético-sociais altamente questionáveis.

2- Finanças Públicas como Sistema

Começo este artigo prestando uma merecida homenagem à colega Maria Lucia Fattorelli; batalhadora incansável pela auditoria da Dívida Pública brasileira e que na conjuntura está especialmente empenhada na denúncia de um Projeto de Lei (PLP 459/2017), já aprovado pelo Senado Federal, que dispõe oficialmente sobre “cessão de créditos tributários e não tributários” para cobrança privada, mediante substanciais ganhos financeiros privados no processo de securitização; mas que segundo a pesquisa de Maria Lucia, já vem ocorrendo e vai mais longe ainda, porque envolve cessão de dinheiro público já arrecadado, subrepticiamente desviado aos operadores financeiros.

O que se pretende mostrar neste texto é a estruturação de um aparato de desregulação financeira, onde práticas como as denunciadas pela colega Maria Lucia, vicejam, sob vários formatos. Mas antes, precisamos de uma breve abordagem conceitual das finanças públicas brasileiras; de formal geral, de maneira a tornar inteligível o objetivo deste artigo.

Os vários subsistemas formais estruturadores daquilo que constitui as finanças públicas não se encontram regulamentados, de forma sistêmica, nem mesmo no texto constitucional de 1988, que em seu Capítulo IV (Do Sistema Financeiro Nacional) disso não trata. Irá trata-lo no Título VI (‘Da Tributação e dos Orçamentos), limitando-se a abordar separadamente – o Sistema Tributário (Cap. 1 do Título VI-)’) e Capítulo 2 (‘Das Finanças Públicas’ –desse mesmo Título VI), onde aí se estabelecem conceitos normativos gerais sobre moeda, orçamentos públicos, dívidas e haveres financeiros públicos (créditos públicos inscritos ou não na Dívida Ativa).

Ora, se no próprio marco constitucional o sistema de finanças públicas é mal definido, a legislação complementar, por sua vez é cada vez mais autárquica, cuidando segmentadamente da moeda, da tributação, dos orçamentos, das dívidas e dos haveres, sem explicitar suas conexões sistêmicas. Apenas no Orçamento Geral (Fiscal e da Seguridade), no caso da União, aparecem os resultados do funcionamento do sistema de finanças públicas, durante o ano fiscal, geradores de ‘superavit’ ou ‘deficit’, segundo os conceitos – ‘primário’ e nominal (total). O primeiro conceito –do “orçamento primário” e seu resultado fiscal de “deficit” ou ‘superavit’, é exaustivamente regulamentado; enquanto o segundo praticamente é ignorado Mas esta segmentação do subsistema orçamentário, adicionado da baixa transparência da despesa financeira da União, diferentemente da despesa primária, são uma espécie de véu envolvente de um sistema (de finanças públicas) que revela resultados persistentes de endividamento público, sem que se conheçam os determinantes financeiros da situação. 2 Isto porque o ‘déficit’ orçamentário nominal (total) no final do ano fiscal é expressão temporal do acréscimo das dívidas públicas, subdividida em dívida mobiliária e dívida contratual no caso da União e é fundamentalmente originado por despesa financeira ilimitada Mas o resultado orçamentário de um ano e de um período, marcado por déficit nominal contínuo e ‘alto’, especialmente exacerbado no período crítico 2015/2018, caracterizado por acentuada elevação da despesa financeira pública, pouco atenção têm merecido da análise econômico convencional, relativamente aos problemas estruturais do conjunto do sistema financeiro público, susceptíveis a gerar esses resultados. À falta desse exame, assume-se ‘a priori’ que seriam as “finanças sociais”, instituídas pela Constituição de 1988 a causa eficaz do “desequilíbrio financeiro”, tudo mais aparentemente inócuo. Mas este componente as finanças sociais, não comparece no déficit primário de uma larga série histórica, haja vista conter provisão orçamentária específica, no orçamento da Seguridade Social para supri-la. Diferentemente, a despesa financeira, não comparece por definição no orçamento primário, mas requer “superávit primário’ para equacioná-la, parcial ou totalmente.

Por sua vez, há vários problemas suscitados pela construção da própria institucionalidade das finanças públicas brasileiras Pós-1994 (Plano Real), estes sim claramente incidentes sobre o seu desequilíbrio financeiro estrutural, que, contudo, não comparecem aos muitos diagnósticos da crise fiscal de Estado. Vou diretamente às questões estruturais.

3 – Finanças Públicas e os Principais Focos do seu Desequilíbrio Estrutural.

Didaticamente, vamos às questões que interessam explorar e que se caracterizam todas elas por condições de repercussão geral e contínua sobre o sistema financeiro público; 1) a institucionalização da irresponsabilidade fiscal do ‘serviço da dívida’, conducente a uma ilimitada capacidade de geração de despesa financeira nova e de Dívida Pública; 2) uma gestão frouxa, e igualmente irresponsável do ponto de vista fiscal, dos haveres potenciais da União – Dívida Ativa para com a União, tácita ou explicitamente seguida por previsíveis e contínuas anistias, “perdões” e generosos refinanciamentos (REFIS); e paralelamente – repatriação de capitais evadidos para o exterior, com tratamento parecido; 3) uma combinação de frouxidão e permissibilidade no sistema – fiscal financeiro; susceptível à prática do ilícitos financeiros, destacadamente à sonegação fiscal e à evasão cambial; 4) -privilégios tributários ao capital e 5) a recorrente “engenharia financeira” de reconhecimento dos passivos contingentes (esqueletos financeiros), que combina planejado e desigual tratamento a devedores (inscritos ou não Dívida Ativa) e credores da Dívida Pública.

3.1 – Sobre a Irresponsabilidade Fiscal da Despesa Financeira – O problema é de repercussão geral e se imiscui na regulação das finanças públicas brasileiras desde sua origem – da promulgação constitucional até a EC. 95/2016. É pressuposto à irresponsabilidade fiscal do serviço da Dívida Pública, condição de possibilidade à despesa financeira sem limites. Esse problema, em dose embrionária, se imiscuiu no texto original de 1988 no formato de uma ‘emenda da redação’, não submetida a Assembleia Constituinte, que isentava o serviço da dívida da possibilidade de emenda congressual (Art. 166 § 3º , item b); consolidou-se com a Lei de Responsabilidade Fiscal de março do ano 2000 (Art. 8º § 2º); e concretizou-se na EC 95/2016, que coloca todo o gasto primário do Orçamento Fiscal e da Seguridade, sob restrição do teto da inflação-meta do ano orçamentário, excetuando a despesa financeira, que não tem teto e é estuário de todos os afluentes das arrecadações – tributária e patrimonial da União.

3.2 – O segundo problema das finanças públicas, também de repercussão geral, é a forma assimétrica contra si, com que a União regula dívida pública e haveres públicos financeiros, impondo á primeira (relação com os credores da Dívida Pública) direitos absolutos e formas de remuneração extraordinárias aos credores; enquanto que para os segundos (devedores tributários, previdenciárias e patrimoniais da União), adota regras diametralmente opostas, ainda quando coincidam as titularidades de devedores-credores.

Essas segundas regras, válidas para as anistias, perdões e repactuações sistemáticas da Dívida Ativa para com a União, acrescida das operações de “repatriação de dinheiro do exterior”, nunca se aplicam simetricamente aos credores, da Divida Pública, mesmo quando se tratam de idênticas pessoas físicas ou jurídicas. No limite, a securitização de parcelas da Divida Ativa e até mesmo de produto já arrecadado, é a espécie exacerbada de um gênero de permissividade “naturalizado” no sistema.

3.3 – O terceiro problema, que de certa forma se aninha na frouxidão da regulação fiscal e financeira, tem a ver com a manifestação cada vez mais óbvia do ilícito fiscal-financeiro como prática tolerada pelo sistema, a ponto de ultimamente, pela MP 784/2017 3 , transformada em Lei 13.506/2017, blindar-se o sistema financeiro com a pretensão da inimputabilidade criminal, mediante Acordos de Leniência Secretos, “sem necessidade de confissão do crime” – porta aberta aos ilícitos descriminalizados dentro do sistema monetário e do mercado de capitais.

Observe-se que nos três pontos supramencionados, não tocamos em um aspecto, de origem na política monetária, notoriamente conhecido, qual seja o fato de o Brasil ostentar há décadas a condição de garantidor da mais alta taxa de juros do mundo, em média três a quatro vezes mais elevada que a dos países centrais do capitalismo. Desde o Plano Real a taxa média de Juros SELIC em um quarto de século se situa em termos reais, nos limites mínimo e máximo de 5% a 8% a.a. e em média no entorno de 7%a.a., termos em absoluta desconformidade com os países da OCDE no mesmo período, para citar um exemplo didático.

O leitor, mesmo sem formação econômica é capaz de discernir, que um sistema de finanças públicas dessa natureza: a) com finanças sociais praticamente eliminadas; b) com despesa financeira ilimitada e irresponsável; c) com tratamento combinado e desigual a credores e devedores do tesouro público; d) com permissividade, inimputabilidade e até prêmio tributário à livre saída de capital; contêm radicais ingredientes à desigualdade distributiva; mas também ao desequilíbrio financeiro, no sentido da geração líquida do endividamento público.

Finanças públicas com essas características mais se parecem com um sistema de idolatria ao dinheiro, para usar a feliz expressão do Papa Francisco, por ocasião do seu discurso aos movimentos populares em outubro de 2014 4 , ao caracterizar a forte contradição das necessidades vitais de terra, trabalho e teto, face as determinações negativas da apropriação financeira, coordenada pela idolatria ao dinheiro.

3.4 –Dos Privilégios Tributários ao Capital às Engenharias do Reconhecimento de Passivos Contingentes.

No período 1994-2018 há duas orientações continuadas e de repercussão geral sobre o sistema financeiro público, tendentes a um desequilíbrio estrutural do sistema. Mas é preciso puxar a memória histórica para esclarecer.

Houve no imediato período pós-Plano Real duas diretrizes, que pela profundidade e permanência até os dias atuais na estrutura das finanças públicas brasileiras, moldaram-nas. Merecem destaque analítico especial.

A primeira delas tem o nome de ‘reconhecimento de passivos contingentes 5, popularizado na linguagem comum como de absorção de ‘esqueletos financeiros’, não inscritos nas finanças públicas até então; e agora convertidos em aportes de ‘Dívida Pública’ mediante experta operação de ‘saneamento financeiro’, mais adiante descrita.

O esquema aplicou-se primordialmente aos bancos – públicos e privados, como também a algumas Empresas Estatais e Autarquias. Comum a todos, a posse de passivos financeiros, de caráter privado. Os campos afetados são os mais variados: 1) na política agrícola e comercial – os débitos bancários junto a PGPM (Política de Garantia de Preços Mínimos), Conta Trigo, Setor Sucroalcooleiro, Conta-Café; perdas e desvios de estoque agrícolas etc.; 2) no sistema BNH – débitos vinculados ao FCVS (Fundo de Compensações Salariais); 3) capitalização de Bancos Oficiais Federais; 4) saneamento financeiro do setor elétrico; 5) assunção de débitos do antigo IAPAS e de desequilíbrios de Fundos de Pensão Privados; 6) saneamento de débitos da Rede Ferroviária Federal; 7) saneamento financeiro dos Bancos Privados.

A legislação que inclui setores e atividades no ‘saneamento financeiro é variada e detalhada, vai de 1996 a 2003 6, não sendo possível aqui menciona-la.

Mas há algo e comum ao esquema que convém reproduzir.

O esquema geral dessas operações de saneamento financeiro consiste no seguinte: os bancos credores de ‘passivos podres’ são favorecidos com emissão de títulos da dívida pública, liberando-os então de toda a corresponsabilidade com o carregamento desses passivos e passando-os à posição de credores da Dívida Pública Federal. Enquanto isso, os milhares de processos inadimplentes relativos a esses débitos são remetidos à Procuradoria da Fazenda Nacional, que passam a alimentar uma verdadeira pletora de haveres potenciais da União em cobrança judicial, inscritos na
Dívida Ativa.

A consequência imediata dessas medidas de ‘saneamento financeiro’ é a virtual explosão da Dívida Líquida do setor Público, que pula de 34,38% do PIB em 1994 para 49,39% no ano 2000, alimentada preponderantemente por ingresso de esqueletos e capitalização de juros da própria Dívida.

Outra medida do mesmo período é a generosa legislação do Imposto de Renda, editada em 1995 (Lei n. 9.249/95), que passou a partir de então a isentar (alíquota zero), os dividendos pagos aos acionistas, do pagamento do Imposto de Renda pela pessoa física, na contramão do que se faz no mundo inteiro. Essa legislação permite ainda a dedução de juros sobre o capital próprio da renda tributável da pessoa jurídica, reduz substancialmente as alíquotas progressivas, dentre outras medidas. Todas essas alterações da legislação tributária, vigentes a partir de 1995, permanecem no sistema até o presente, configurando uma estrutura tributária altamente desigual em termos comparativos, de taxação de ricos e pobres.

O caráter permanente e desigual do mencionado ‘reconhecimento de passivos contingentes’ e da legislação tributária supracitada, ambos detonados nos primórdios do Plano Real (1995-96), juntamente com outras medidas regulatórias analisadas em sequência, caracterizam uma evidente estruturação de finanças públicas com viés de privilégio aos detentores da riqueza
financeira.

4-Conclusões

As cinco condições permanentes e de repercussão geral, configurantes das finanças públicas brasileiras na atualidade são as seguintes:

1) Institucionalização da irresponsabilidade fiscal do serviço da dívida pública;

2) Gestão frouxa dos haveres financeiros públicos inscritos ou não na Dívida Ativa;

3) Inimputabilidade criminal dos ilícitos financeiros nos mercados monetários e de Capitais;

4) Os privilégios tributários aos rendimentos do capital;

5) A recorrente facilidade ao reconhecimento de ‘passivos contingentes’ e sua engenharia financeira de combinação desigual – dívida pública e dívida ativa; contêm evidentes pressões estruturais para formação da dívida pública, especialmente em circunstâncias da crise fiscal.

Mas esses tópicos mencionados são focos de despesa financeira tácita ou explícita, que em nenhum momento têm sido objeto de tratamento como problemas nas crises fiscais. Ao contrário, os frequentes programas de ‘ajuste fiscal’ nas referidas crises, aprofundam tais características.

Busca-se exclusivamente a mitigação e até exclusão das ‘finanças sociais’ dos orçamentos públicos, alegando necessidades de equação ao superávit primário. Mas não se pode ignorar a magnitude e a autonomia do ‘serviço da dívida’, que consome parcelas ponderáveis do Orçamento – entre 2 a 3 pontos percentuais do PIB de “superávit primário’ em conjunturas de crescimento, mantendo um resíduo de igual proporção de déficit nominal, convertido em dívida nova. Por sua vez, nas crises fiscais, quando cai o ‘superavit’ primário ou mesmo ocorrem pequenos déficits, a despesa financeira se exacerba, puxada por uma estratégia de formação de dívida pública Em tais condições, explode o déficit nominal para algo no entorno de 8 a 10 pontos percentuais do PIB, (período 2015-2017), quando nenhum superávit fiscal houve para absorve-lo, mas ao contrário há déficits primários no entorno de 1 a 1,5% do PIB Em tais condições pode-se dizer, com evidência de forte corroboração empírica para o quarto de século que sucede o chamado Plano Real, que o sistema de finanças pública tem funcionado com toda liberalidade para gerar Dívida Pública sem limites. E isto parece gozar de certa aceitação passiva, como se fora algo ‘natural’.

Há sim uma estratégia financeira para geração da Dívida Pública, espécie de fonte de legitimidade aparente aos capitais detentores da riqueza financeira; não obstante rigoroso discurso em favor do equilíbrio fiscal. Basta ver a trajetória da Dívida Pública Federal como proporção do PIB no período posterior ao Plano Real e principalmente em determinados momentos históricos peculiares – a) operações de passivos contingentes entre 1995 e 2003; b) crise cambial do Real entre 1998 a 2002 e a crise fiscal do período 2015-2017 (em três anos a Dívida Bruta pula de 56,8% para 74,4% do PIB, segundo o ‘Relatório Anual da DPF de 2017” – da Sec. Do Tesouro, disponível na internet).

Observada a história econômica deste quarto de século a partir do Plano Real, porque antes a super inflação realizava caoticamente este resultado, a Dívida Pública se mantem incólume e o sistema de finanças públicas reestruturado neste período, realiza de maneira combinada e desigual sua reprodução ampliada. Mas isto é cada vez mais difícil de se explicar, utilizando de categorias econômicas convencionais, comparações internacionais ou quaisquer argumentos racionais demonstráveis.

A retórica visitada pelos condutores atuais e pretéritos do “ajuste fiscal’ estrutural, na linha do “Programa Econômico do PMDB – Ponte para o Futuro”, ora em execução, é claramente o discurso do sacrifício dos direitos sociais constitucionais, com o que se geraria por 20 anos o superávit primário requerido pelos mercados detentores de títulos da Dívida Pública Federal (ver EC 95-2016). Esse sacrifício, seria uma espécie de castigo social requerido ao ‘espírito animal’ dos empresários detentores da riqueza financeira, que ao fim de certo tempo lhes despertaria o ânimo empreendedor, com que os ‘mercados’ voltariam a reiniciar um ciclo de expansão real da economia. E aqui teríamos o terceiro elemento dessa teologia econômica – o prêmio da prosperidade.

A dívida social auto reproduzida é apresentada como culpa da sociedade, que a honraria mediante sacrifício e castigo dos pagamentos compulsórios, requeridos pelo ‘espirito animal dos empresários’, condição imprescindível à quitação dos devedores, a que sucederia em algum futuro – o prêmio da prosperidade.

Esse discurso teológico idolátrico é apresentado subliminarmente todos os dias para justificar os chamados ajustes fiscais sucessivos. Não é novo, mas infelizmente goza de certo prestígio do senso comum, impregnado por uma cultura do sacrifício resignado, que nada tem de religioso, mas provavelmente de memórias atávicas dos quatro séculos de escravismo.

Finalmente, para o que importa neste artigo destacar, o formato das nossas finanças públicas desreguladas precisa ser politicamente problematizado. Sua reprodução há um quarto de século em governos do PSDB e PT e agora exacerbado no governo Temer, é causa eficaz da reprodução ampliada de uma dívida pública insustentável. Reforma profunda desse sistema reclama enfrentamento, sob pena de reproduzirmos para as próximas gerações do próximo quarto de século os dilemas insolúveis que vimos postergando desde os primórdios do Plano Real.

Notas e Referências. Bibliográficas

1-Para uma análise histórica sobre as origens da dívida pública na Europa ver:
Giovani Arrighi – O Longo Século XX – Dinheiro, Poder e as Origens do Nosso Tempo (Capítulo 2) – São Paulo, Ed. Contrasponto-UNESP, 1ª edição – 1996; pp. 87-162.

2-A Lei Orçamentária Anual vigente (Lei 13.857, de 01/01/2018) carrega uma despesa pública prevista de 52,5% (1, 84 trilhões de reais) do total; e como de regra nenhum anexo detalhado e explicativo, ao contrário da despesa primária, que é detalhada por Ministério em nível projeto e subprojeto.

3-A Medida Provisória 784/2017, já transformada em Lei (Lei 13.506/2017), praticamente blinda as instituições geridas pelo Banco Central e pela CVM à imputação de ilícitos financeiros com efeitos criminais, oferecendo-lhes em contrapartida Acordos de Leniência secretos, apenas com sanções pecuniárias de natureza administrativa.

4-Os vários discursos do Papa Francisco dirigidos aos Movimentos Populares entre 2024 e 2016, na linha de defesa dos direitos sociais ao tríplice ‘T’ (Terra, Trabalho e Teto), fazem recorrentemente a advertência da antinomia relativamente à idolatria ao dinheiro.

5-Para uma análise específica do tema dos “Passivos Contingentes”, ver:
Bolivar P. Filho e Maurício M. Saboya Pinheiro

“Os Passivos Contingentes e a Dívida Pública no Brasil Recente (1996/2003 e Perspectivas (2004-2006” in Texto para Discussão n. 1007- Brasília; IPEA – 2004.

6- Cf. Bolívar P. Filho e Maurício Saboya – op. cit

* Professor-doutor em Economia pela Unicamp e membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz (CNBB)