As considerações do Papa sobre o sistema econômico-financeiro, por Pedro Pinho

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O Papa Francisco pede atenção à influência do mercado, para a ausência de bem-estar material e para a ausência de fundamentação ética que domina o mundo atual.

São, portanto, dois temas que são tratados: a promoção integral da pessoa humana, onde se encontra o bem-estar real do homem, e a expressão ética, que se traduz na dignidade humana, chaves de um autêntico desenvolvimento.

As ausências são reveladas quando se observa a falta de uma justiça, a ausência da verdade, que faz sucumbir o interesse de todos em proveito do interesse de uma parte, a liberdade dos homens e mulheres, dominados por abusos, práticas iníquas e grandes sofrimentos, em especial para os mais indefesos e os mais fracos.

Trataremos, portanto, de analisar as Considerações, aprovadas pelo Santo Padre, sobre as medidas que, numa rapidez jamais vista, cresceu ao longo da segunda metade do século XX, aumentando a desigualdade, entre Países e entre pessoas, acentuada pelas crises. Tratando da ausência de princípios éticos e de regulamentações que neutralizem os aspectos predatórios e especulativos, desvalorizando o trabalho, a produção e o desenvolvimento integral do ser humano.

Estas Considerações se dirigem à necessidade de reflexão ética sobre a intermediação financeira, sobre a desvinculação de fundamentos antropológicos e morais, que produz abusos e injustiças, criando crises sistêmicas e de alcance mundial.

Considerações Elementares de Fundo

Cada atividade humana, orientada para o bem comum, fundada na ética da dignidade e na liberdade do homem singular e do homem na sociedade, é legítima e contribui para o avanço civilizatório.

Sem a visão do ser homem integral, não é possível fundar nem ética nem práxis. Tem-se a visão reducionista do individualismo, do consumidor, da busca pelo ganho pecuniário.

Há a busca perene pelo bem-estar integral, não reduzível à lógica do consumo, à mera troca de coisas. O ser humano necessita confiança, equidade, cooperação, reconhecimento e valores imateriais.

As pessoas nascem num ambiente que precede sua própria existência – o âmbito familiar – sem o qual se torna impossível sua própria existência. É esta ligação originária que o católico chama comunhão. É o traço de afetividade que nos liga a Deus e a todas as pessoas. O que nos permite a construção da sociedade ao invés de ver cada ser humano como potencial concorrente.

Esta antropologia relacional que nos ajuda a reconhecer a precedência da qualidade de vida ao aumento indiscriminado dos ganhos.

O sistema econômico se legitima pela capacidade de produzir desenvolvimento para todos os homens e para cada um, com perspectivas sustentáveis e para além do breve prazo. Para tanto é necessário que as instituições, as escolas, os currículos, tratem a visão completa do homem como algo fundamental, como principal, e não como secundário, marginal, acessório, que tratem os sistema econômicos como formadores do progresso da humanidade e da expressão ética e não para o egoístico enriquecimento individual.

O crescimento do “capital humano” – sua vida confortável e segura, sua compreensão social e realização espiritual, sua participação livre e consciente na sociedade – deve prevalecer sobre o reducionismo do crescimento do produto interno bruto (pib) de um País, dos resultados de curto prazo.

E, pior ainda, quando se objetiva o ganho a qualquer custo, resultado da totalizante ação financeira. Ao invés do círculo virtuoso entre ganhos e solidariedade, em liberdade e no emergir das potencialidades humanas.
É a regra de ouro do evangelho: fazer aos outros aquilo que gostaríamos que nos fosse feito.

É sempre mais fácil ver a desorientação e a impotência dos governantes, dos políticos, do que as ações das grandes redes supranacionais dos voláteis capitais financeiros, usando seu poder contra a dignidade humana e com práticas moralmente inadmissíveis.
Também é evidente que os mercados não são capazes de se regularem, nem de construirem pressupostos de desenvolvimento – coesão social, honestidade, confiança, segurança, leis – nem da correção das externalidades prejudiciais à sociedade – desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, fraudes.

Além do mais, ainda que alguns operadores do mercado sejam animados por boas e retas intenções, é impossível ignorar que as finanças dominam a economia real, e são um lugar de egoísmos, imoralidades, imposições violentas e violentadoras, causando excepcional dano à coletividade humana.

A complexidade de numerosos produtos financeiros resulta em tal assimetria entre os participantes, um verdadeiro elemento intrínseco ao próprio sistema financeiro, que não se pode falar em risco do comprador, pois se instaura uma verdadeira relação hierárquica, sem capacidade do comprador ou usuário ou contraente de tutelar seus próprios interesses.

Outro elemento de fundo é a virtualidade desta economia financeira que se concentra em ações especulativas e negociações com excessivas quantidades de capital, subtraídas dos circuitos virtuosos da economia.

O trabalho, nesta voragem financista, perde sua qualidade de bem para o homem e se transforma em mero instrumento de troca em relações assimétricas. Esta inversão entre meio e fim torna um bem em instrumento e o dinheiro em fim, levando, inconscientemente, à cultura do descartável, onde grandes populações ficam sem perspectivas e sem vias de saída. Os excluídos não são explorados, transformam-se em resíduos, sobras descartáveis.

As elevadas taxas de juros representam não apenas uma operação eticamente ilegítima como disfuncionais à própria saúde da economia. O fenômeno inaceitável não é o simples ganhar, mas se aproveitar de uma assimetria para notáveis ganhos e gerando dano ao bem-estar coletivo.

A intenção especulativa coloca em risco a estabilidade econômica de milhões de famílias, a alteração artificiosa do sistema político e arrisca suplantar a substância da liberdade humana. Palavras como “eficiência”, “competição”, “liderança”, “mérito” perdem seu significado cultural para empobrecer e reduzir a meros coeficientes numéricos as ações humanas.

Algumas Pontualizações no Contexto Contemporâneo
A globalização e a digitalização fizeram do mercado um organismo onde correm grandíssimas quantidades de capitais financeiros. Compreende-se a exigência de introduzir uma certificação das autoridades públicas, em relação a todos os produtos desta inovação financeira, para preservar a saúde do sistema e prevenir efeitos colaterais. Esta exigência mostra a urgência de uma coordenação supranacional, entre as diversas arquiteturas dos sistemas financeiros.

A experiência dos últimos decênios mostrou ingênua a confiança na presumida autossuficiência da capacidade funcional dos mercados, independentes de qualquer ética, e na imperiosa necessidade de regulação dos mesmos. A constatação das condutas imorais dos expoentes do mundo financeiro, a dimensão supranacional do sistema, a extrema volatilidade e mobilidade, contornando regras nacionais para a vantagem imediata, os riscos para toda economia e pessoas obrigam que os operadores aceitem os freios que o bem comum exige.

Há também a necessidade de se compartilhar, em caráter supranacional, as tempestivas providências diante do perigo comum. É importante a coordenação estável, clara e eficaz entre as várias autoridades nacionais de regulação dos mercados. É uma exigência da globalização do sistema financeiro.

Para evitar crises sistêmicas, é de grande ajuda delinear a clara definição e separação dos intermediários bancários de crédito dos recursos destinados ao investimento e aos negócios.

Cada empresa constitui importante rede de relações e representa verdadeiro corpo social com sua cultura e prática. Tal cultura e prática influenciam também o tecido social na qual a mesma age. Isto significa colocar claramente a pessoa e a qualidade das relações entre as pessoas no centro da cultura empresarial.

A criação de títulos de crédito de alto pode enriquecer aqueles que os intermedeiam, mas cria facilmente insolvência em prejuízo de quem deve recebê-los. Isto vale ainda mais se o peso da criticidade destes títulos é transferido ao mercado, no qual são espalhados e difundidos, em vez de ser colocado sobre o instituto que os emite (securitização dos empréstimos subprime). Assim pode-se criar intoxicação de grande alcance e dificuldades potencialmente sistêmicas. Uma tal contaminação dos mercados contradiz a necessária saúde do sistema econômico-financeiro e é inaceitável do ponto de vista de uma ética respeitosa do bem comum.

Alguns tipos de derivados (particularmente as chamadas securitizações) observou-se que, a partir das estruturas originárias e ligadas a investimentos financeiros individuais, foram construídas estruturas sempre mais complexas (securitizações de securitizações) nas quais é sempre mais difícil – quase impossível depois de várias destas transações – estabelecer em modo racional o valor fundamental delas. Isto significa que, cada passo na compra e venda destes títulos, para além da vontade das partes, opera de fato uma distorção do valor efetivo daquele risco que, ao contrário, o instrumento deveria tutelar. Tudo isto tem favorecido o surgimento de bolhas especulativas, que foram importantes nas crise financeira. A falta de transparência das operações e dos mercados são uma bomba relógio pronta a detonar e a contaminar a saúde dos mercados e das economias nacionais.

As taxas de juros deixaram de ser a remuneração ética do capital. Os empréstimos interbancários, que servem de guia ao mercado monetário, transformou-se num jogo, onde a manipulação das taxas constitui um caso grave de violação ética com danos a toda economia e às pessoas.

O aspecto moral dessas “apostas”, causadoras de danos a países e milhões de famílias, tornam oportunas as proibições e as sanções já presentes em algumas nações e aplicando às infrações com máxima severidade.
As ocorrências destas ações impunemente por diversos anos mostra quão frágil e exposto está o sistema financeiro, tomado por verdadeiros cartéis, associações para delinquir, causando ferida na saúde do sistema econômico e com prejuízo para o bem comum.

Deveria se estabelecer no interior das empresas financeiras um sistema robusto e autônomo de permanente vigilância para que estas ações contrárias ao interesse das sociedades e da própria economia não prosperassem e fossem punidas.
Tem-se favorecido de maneira desconsiderada, o uso da chamada finança criativa, cujo motivo de investimento dos recursos financeiros é de caráter especulativo, se não predatório. Por exemplo, muitos concordam que a existência de tais sistemas “sombra” seja uma das causas que favoreceram o desenvolvimento e a difusão global da recente crise econômico-financeira, iniciada nos Estados Unidos, com a crise dos empréstimos subprime em 2007.

O mesmo desígnio especulativo nutre o mundo das finanças offshore, que, oferecendo serviços lícitos, mediante muitos e difusos canais de elisão fiscal, quando não de evasão e de lavagem de dinheiro fruto do crime, constitui um ulterior empobrecimento do sistema de produção e distribuição de bens e de serviços. E é inegável que as carências éticas exacerbam as imperfeições dos mecanismos do mercado.

Na segunda metade do século passado, nasce o mercado offshore dos eurodólares, lugar financeiro de trocas fora de qualquer quadro normativo oficial. Mercado que, a partir de um importante país europeu, difundiu-se em outros países do mundo, dando lugar a uma verdadeira e própria rede financeira alternativa ao sistema financeiro oficial e às jurisdições que o protegiam.

Hoje mais da metade do comércio mundial é efetuado por grandes empreendimentos que reduzem a carga tributária transferindo os lucros de uma sede para outra, segundo as suas conveniências, transferindo os ganhos para os paraísos fiscais e os custos para os países de elevada imposição tributária. Parece claro que tudo isto subtraiu recursos decisivos para a economia real e contribuiu a gerar sistemas econômicos fundados na desigualdade. Além do mais, não é possível calar que aquelas sedes offshore tornaram-se lugares habituais para a lavagem de dinheiro, isto é, dos resultados de receitas ilícitas (furtos, fraudes, corrupção, associações para delinquir, máfia, saque de guerra…). O fato, que as chamadas operações offshore não ocorram nas sedes financeiras oficiais, levou Estados a consentirem que se tirasse ganho mesmo com o crime, sentindo-se todavia desresponsabilizados porque os ganhos não eram realizados, formalmente, sob a jurisdição deles. Isto representa, do ponto de vista moral, uma evidente forma de hipocrisia.

A tributação, quando é equitativa, desenvolve uma fundamental função de justiça e de redistribuição da riqueza, não somente em favor daqueles que necessitam de oportunos subsídios, mas também para sustentar os investimentos e o crescimento da economia real. Entretanto a manipulação fiscal dos principais atores do mercado, em especial dos grandes intermediários financeiros, representa uma injusta subtração de recursos da economia real, é um dano para toda a sociedade civil. Considerada a não transparência daqueles sistemas, é difícil estabelecer com precisão a quantidade de capitais que transitam nos mesmos; todavia foi calculado que bastaria uma mínima taxa sobre as transações realizadas offshore para resolver boa parte do problema da fome no mundo: porque não tomar com coragem a direção de uma semelhante iniciativa?

Tudo isto constitui um grave dano à boa funcionalidade da economia real, representa uma estrutura que, assim como hoje é configurada, resulta de todo inaceitável do ponto de vista ético. Portanto, é necessário e urgente que a nível internacional sejam estabelecidos oportunos remédios a tais iníquos sistemas: primeiramente praticando em cada nível a transparência financeira (por exemplo, com a obrigação da prestação de contas públicas pelas empresas multinacionais, das respectivas atividades e dos impostos pagos em cada país onde operam através de próprias sociedades subsidiárias); e também com sanções rígidas a serem impostas em relação aqueles países que repetem as práticas desonestas referidas acima (evasão e elisão fiscal, lavagem de dinheiro).

Conclusão
Diante da imponência e difusão dos contemporâneos sistemas econômico-financeiros, poderemos ceder ao cinismo e a pensar que com as nossas pobres forças podemos fazer bem pouco. Na realidade, cada um de nós pode fazer muito, especialmente se não permanece só.

Numerosas associações provenientes da sociedade civil representam neste sentido uma reserva de consciência e de responsabilidade social das quais não podemos prescindir.

Hoje, mais do que nunca, somos todos chamados a vigiar como sentinelas por uma vida de qualidade e a tornar-nos intérpretes de um novo protagonismo social, orientando a nossa ação na busca do bem comum e fundando-a sobre os sólidos princípios da solidariedade e da subsidiariedade.

* Publicado originalmente pelo site da AEPET