Auditoria cidadã é a ferramenta para desmascarar a hegemonia financeira obtida com base em exploração e fraudes – Maria Lucia Fattorelli
* Maria Lucia Fattorelli
O capital tem levado vantagem descomunal na apropriação dos recursos financeiros e patrimoniais ao redor do mundo. O avanço da dominância financeira possibilitado por desregulamentação financeira, sigilo bancário, acesso a paraísos fiscais, entre outras benesses, tem utilizado múltiplos mecanismos financeiros que geram obrigações financeiras para Estados, multiplicam a chamada dívida pública e provocam contínuas crises.
Evidentemente, as justificativas para as crises são construídas com base em cenários que não responsabilizam o setor financeiro que as provoca. Responsabilizam a sociedade, para que esta se sacrifique cada vez mais para pagar a conta. O desafio é desmascarar as manobras do setor financeiro e exigir mudança de rumo. A ferramenta para comprovar e documentar tais mecanismos é a auditoria com participação cidadã, cujo relatório fundamentado servirá de instrumento político, jurídico e social que contribuirá para a necessária mudança. É urgente inverter a suicida lógica do modelo vigente.
Desregulamentação Financeira e Crises
A hegemonia do setor financeiro, comprovada pelo estudo acadêmico A rede de controle corporativo global[1], avança a passos largos em todo o mundo. O estudo revelou a impressionante concentração de poder e propriedade de parte relevante da economia mundial em reduzido grupo de instituições bancárias, tais como Citigroup, Morgan Stanley, Merrill Lynch, Bank of America, Barclays, Goldman Sachs, JP Morgan Chase, Deutsche Bank, UBS e Credit Suisse.
Essas mesmas instituições se encontravam ameaçadas de quebra a partir de 2007 e foram “salvas”. Conforme auditoria feita pelo Departamento de Contabilidade Governamental[2] dos EUA, 16 trilhões de dólares foram transferidos, em segredo, pelo Sistema da Reserva Federal (FED) a essas e outras instituições.
A crise de 2008 não ficou marcada por essa verdadeira farra do sistema financeiro, mas sim pelo cenário de financiamentos habitacionais excessivos nos EUA, a crise do subprime… Na Europa, no início de 2009, era público o conhecimento de que o salvamento de bancos empurraria os países para uma profunda crise[3].
Apesar das gigantescas manifestações, a Troika (FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia) alegou necessidade de “preservar a estabilidade financeira na Europa”[4] e impôs a adoção de medidas que resultaram na transferência da crise para os países. O resultado tem sido o esgarçamento social, a deterioração econômica e, logicamente, a privatização do patrimônio estatal.
Pouco ou nada se comenta a respeito das “bolhas” de derivativos sem lastro criadas pelo setor financeiro desregulado, que comprometeram os balanços contábeis dos bancos e inundaram inclusive contas “fora de balanço” [5]. Prevaleceu o cenário do subprime…
Na América Latina, a crise produzida pelos bancos internacionais[6] financiadores de ditaduras militares nos anos 80 ficou conhecida como crise da dívida externa. Tal crise justificou a interferência do FMI, ditando a política econômica e impondo medidas como ajuste fiscal e transformação de dívidas privadas em dívidas a cargo do Banco Central. Na década seguinte, o Plano Brady transformou grandes volumes de dívida externa prescrita em títulos aceitos como moeda no processo de privatizações. O resultado foi desastroso para os países e povos, porém, montanhas de recursos financeiros e patrimoniais têm sido continuamente destinados ao pagamento de dívidas sem contrapartida, e que não param de crescer.
Na década de 90, a dominância financeira avançou ainda mais devido à crescente desregulamentação do setor[7] , garantindo-lhe cada vez mais liberdade e poder, aliados à proteção do sigilo bancário e acesso a paraísos fiscais, possibilitando grandes negócios.
No Brasil, diversas regras de funcionamento do sistema financeiro deixaram de existir, cabendo ressaltar a completa revogação do art. 192 da Constituição Federal e do Manual de Normas e Instruções do Banco Central (MNI) que compilava as normas[8] . O resultado é a proliferação de perversos mecanismos e crise.
Mecanismos financeiros geradores de dívida pública no Brasil
Dentre os mecanismos financeiros, sobressaem os que utilizam o endividamento público às avessas, gerando obrigações para o Estado de forma abusiva e sem contrapartida, pois os recursos beneficiam diretamente o setor financeiro. A isso denominamos Sistema da Dívida. Tais mecanismos decorrem da suicida[9] política monetária exercida pelo Banco Central (BC), de costas para o país e a serviço do setor financeiro privado nacional e internacional, subserviente à influência dos bancos e organismos internacionais (FMI e Banco Mundial), que ainda exigem a independência total do BC[10].
O BC é o responsável pelas abusivas taxas praticadas no país, sem justificativa técnica, política, jurídica ou econômica. As taxas efetivas são ainda mais elevadas, pois os privilegiados dealers que participam dos leilões realizados pelo BC só compram os títulos quando a taxa oferecida alcança o patamar que desejam. Os juros extorsivos têm sido o principal fator de crescimento da dívida pública, devido à emissão de títulos para pagar juros, ao arrepio da Constituição Federal, art. 167, inciso III. Essa façanha tem sido disfarçada pela contabilização de grande parte dos juros como se fosse amortização[11], o que tem provocado crescimento exponencial da dívida. A interna cresceu 700 bilhões só em 2015, fechando o ano com um estoque superior a R$ 3,9 trilhões, enquanto a externa bruta alcançou US$ 545 bilhões.
Contratos de swap cambial oferecidos pelo BC têm gerado perdas, que somaram, no período de setembro/2014 a setembro/2015, R$ 207 bilhões negativos. Esse prejuízo é transferido para a conta dos juros da dívida e, logicamente, para o seu estoque, já que os juros têm sido pagos mediante a emissão de nova dívida. Os bancos lucram e o país registra a dívida, apesar de não ter recebido um centavo sequer.
A geração de dívida tem decorrido também de operações “compromissadas” ou “de mercado aberto”, utilizadas pelo BC sob a justificativa de restringir a base monetária. Títulos emitidos pelo Tesouro são repassados ao BC, que os entrega aos bancos em troca do “excesso” de moeda. O BC acumula cerca de 1 trilhão de reais nesse tipo de operação, que na prática significa a remuneração da sobra de caixa dos bancos privados com os juros mais elevados do mundo. Ademais, esses juros têm que ser pagos em moeda corrente, o que tem pressionado fortemente o arrocho para a realização do ajuste fiscal. Essas operações têm provocado o crescimento exponencial da dívida e ainda contribuem para manter elevados os juros de mercado[12].
Outros mecanismos têm provocado a geração de dívida pública, como a cobertura de bilionários prejuízos operacionais do BC, por exemplo, R$147,7 bilhões em 2009, R$ 48,5 bilhões em 2010.
Recentemente detectamos a geração de dívida em decorrência de mera reclassificação estatística de dívida interna para externa, feita pelo BC[13] em obediência a manuais do FMI. Tal reclassificação renderá adicionalmente aos rentistas estrangeiros a variação cambial dos últimos anos, gerando obrigação financeira e aumento da dívida pública.
Tais exemplos evidenciam a utilização do endividamento público às avessas, funcionando como um grande negócio financeiro que continuamente subtrai e desvia recursos públicos para o setor financeiro privado.
Lucro bilionário dos bancos
O fabuloso lucro dos bancos no Brasil constitui uma evidência da transferência de recursos para o setor financeiro. Enquanto a economia real passa por sérias dificuldades; desindustrialização; queda da atividade comercial; desemprego crescente, arrocho salarial e sucessivos cortes de gastos e investimentos governamentais em todas as esferas (federal, estaduais e municipais) – o lucro dos bancos não para de crescer, em escala exponencial. Em 2014 superou R$ 80 bilhões e cresceu ainda mais em 2015, apesar de provisão de R$ 183,7 bilhões[14]:
Nessa conjuntura, em vez de estancar a sangria de recursos drenados para o setor financeiro por meio do Sistema da Dívida, a economia tem sido orientada para um cenário de escassez, impedindo o desenvolvimento socioeconômico.
É urgente inverter a suicida lógica do modelo vigente, começando pela completa revisão da política monetária exercida pelo BC e pela auditoria da dívida pública com participação cidadã.
* É coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, foi membro da Comissão de Auditoria Oficial da Dívida Equatoriana (2007/2008) e assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010) e integrou a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia (abril a junho de 2015).
[1] S. VITALI, J.B. GLATTFELDER, S. BATTISTON. e network of global corporate control, PLoS ONE 6(10), e25995 (2011). Disponível em: http://arxiv.org/pdf/1107.5728v2.pdf
[2] Disponível em: http://www.sanders.senate.gov/newsroom/news/?id=9e2a4ea8-6e73-4be2-a753-62060dcbb3c3.
[3] Disponível em http://www.telegraph.co.uk/finance/financialcrisis/4590512/European-banks-may-need-16.3-trillion–bail-out-EC-dcoument-warns.html
[4] FATTORELLI, Maria Lucia. Tragédia grega esconde segredo de bancos privados. 2015 – http://www.auditoriacidada.org.br/tragedia-grega-esconde-segredo-de–bancos-privados-2/
[5] “Fora de balanço” significa uma seção à margem das contas normais que fazem parte do balanço contábil, onde ativos problemáticos, tais como títulos desmaterializados,não comercializáveis, são informados.
[6] Logo após o m da paridade dólar-ouro em 1971 e excessivo aumento da liquidez internacional, os bancos privados internacionais incrementaram a oferta de créditos a taxas de juros aparentemente baixas, de cerca de 5% ao ano, porém vinculadas àvariação da Prime estabelecida pelo FED,que era dirigido pelos principais bancos