CPI da Dívida – Análise Técnica Preliminar Nº 5 – Dívida Externa – Capítulo 6

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VI – CONCLUSÕES E RECOMENDAÇÕES

VI – Conclusões e Recomendações

 A presente análise preliminar da dívida externa a partir de 1970 demonstrou que a mesma foi, inicialmente, meramente privada, seguida de endividamento de empresas estatais, cujos montantes se multiplicaram em função da alta unilateral das taxas de juros internacionais, sendo posteriormente objeto de recorrentes renegociações e trocas da mesma dívida anterior, sem representar qualquer benefício ao país. Ao contrário, a dívida externa representou uma transferência líquida ao exterior de US$ 144 bilhões e ainda temos uma dívida externa de US$ 282 bilhões

Conforme detalhado nos Capítulos I a V, nos 39 anos analisados, o processo de endividamento externo foi marcado por negociações pouco transparentes, com cláusulas lesivas à soberania nacional e condições financeiras extremamente desfavoráveis ao país, com recorrentes indícios e até evidências de vultosos danos ao patrimônio público, cujos montantes devem ser ressarcidos ao Brasil.

O dano ao patrimônio público brasileiro, estimado em decorrência da elevação unilateral das taxas de juros internacionais nos anos 70, conforme simulação elaborada pela CPI, foi de US$ 223 bilhões. Além desse, há indícios de dano ao patrimônio público decorrente de onerosos acordos realizados na década de 80; na transformação de dívida externa eivada de questionamentos jurídicos e possivelmente até prescrita em títulos Brady em 1994; em resgates antecipados de parcelas da dívida externa com pagamento de ágio que superou o patamar de 50% em algumas operações, dentre outros eventos detalhados nos capítulos I a V.  

A parcela mais relevante do endividamento externo correspondeu à dívida com bancos privados internacionais, cuja contrapartida foi constituída eminentemente por dívida do setor privado no início da década de 70, seguida de endividamento de vários setores, especialmente de empresas estatais que logo foram submetidas à privatização, tendo suas dívidas sido assumidas pela União, o que também representa indício de relevantes danos ao patrimônio público que deve ter sua investigação aprofundada.

A partir da década de 80, a natureza da dívida externa com bancos comerciais passou a ser eminentemente financeira, ou seja, os acordos da década de 80, as conversões em títulos (ou bônus) da dívida externa e as novas emissões da década de 90 e seguinte foram integralmente destinadas ao pagamento de dívida externa e interna, conforme termos dos referidos acordos e atos legais que regem a matéria, fato também apontado em diversos relatórios dos órgãos responsáveis.

Relativamente ao controle do endividamento, as investigações feitas evidenciaram deficiências por parte do Banco Central, comprovadas pela ausência de resposta a requerimentos de informações relativamente óbvios, como os que requeriam estatísticas discriminadas por tipo de dívida; conciliações e destinação dos montantes renegociados nas diversas operações com bancos privados internacionais em que o Banco Central assumiu o papel de tomador; discriminação das dívidas privadas estatizadas; controles das garantias adquiridas pelo Brasil por ocasião do plano Brady, cópia de livro de registro da dívida externa, dentre outras, que demonstraram a inexistência de registros estatísticos adequados, ou arquivos apropriados para documentos tão importantes para o país.

A CPI constatou que grande parte dos fatos relevantes e objeto de investigação não chegaram a ser auditados pelo TCU, tendo constado também a ausência de contabilização detalhada, aliada à insuficiência de documentação, o que prejudicou a comprovação da contrapartida de grande parte da dívida pública, tanto interna quanto externa, o que constitui mais uma prova da necessidade da realização da auditoria da dívida prevista na CF/88.

Ao final do exame que foi possível realizar nesse curto tempo de duração da CPI, a conclusão foi de que nos 39 anos analisados, a dívida externa passou de US$ 5,4 bilhões em 1970 e alcançou US$ 198 bilhões[1] em 2008, representando uma transferência líquida ao exterior da ordem de US$ 144 bilhões[2], conforme dados estatísticos fornecidos pelo Banco Central à CPI, incluídos na Tabela denominada “Dívida Externa Total” que excluiu os empréstimos intercompanhias a partir de 1993[3].

Cabe observar que no cálculo da transferência líquida de US$ 144 bilhões não foram computados os onerosos pagamentos decorrentes de comissões diversas (de compromisso, de agente, de negociação, de facilidade, dentre outras), taxas e gastos com o Comitê de Bancos, com os bancos privados, organismos internacionais e gastos de emissão de bônus. O Banco Central apresentou à CPI apenas informações parciais referentes a comissões e gastos com endividamento externo que foram contabilizados no SIAFI, no período de 1987 a 2008, totalizando US$ 6,31 bilhões no período. Somando-se tais gastos, verifica-se que foi feita uma transferência líquida de US$ 150,31 bilhões, e ainda devemos US$ 282 bilhões[4] ao exterior.

Essa transferência líquida de recursos teve forte impacto social no país, que vem acumulando histórica dívida social, com grande parte da população excluída do acesso aos direitos sociais básicos, em flagrante desrespeito ao art. 6º. da Constituição Federal. Ao mesmo tempo em que transferimos grandes somas de recursos para pagamento de dívida externa eivada de ilegitimidades, indícios de irregularidades e até de ilegalidades, convivemos com mais de 10 milhões de brasileiros que passam fome, 46 milhões em condição de pobreza e milhões de desempregados, desamparados, sem acesso a serviços de educação, saúde, moradia, alimento, trabalho, ou seja, sem as mínimas condições para uma vida digna.

 

Além dos aspectos financeiros, a dívida externa foi também o pano de fundo para as mais relevantes alterações econômicas das últimas décadas. O endividamento foi usado como justificativa para as privatizações, para a abertura comercial e financeira, para ausência de controle de capitais, aumento da carga tributária, prática de juros excessivamente elevados, arrocho salarial e enxugamento de gastos e investimentos públicos.

 

Quando comparamos todos esses impactos sociais e econômicos com a natureza estritamente financeira do endividamento externo com bancos privados (que representa a parcela mais relevante de toda a dívida externa) desde a década de 80, evidencia-se o brutal equívoco desse modelo que tem privilegiado a política de endividamento.

 

O setor financeiro tem sido altamente beneficiado com a política de endividamento brasileiro, enquanto a sociedade arca com a subtração de direitos sociais além da elevada carga tributária, a fim de garantir o cumprimento das metas de superávit primário e o pagamento dos elevados compromissos decorrentes do endividamento interno e externo.

 

 

Face aos inúmeros indícios e até evidências de dano ao patrimônio público, é necessário o aprofundamento das investigações por parte do Ministério Público e a realização de auditorias permanentes e transparentes, por parte do Congresso Nacional, com participação popular, tendo em vista que o ônus da dívida tem sido arcado pela Nação como um todo.

Os danos ao patrimônio público devem ser ressarcidos ao país, especialmente diante do elevado custo social do processo de endividamento externo com bancos comerciais, cuja contrapartida real demonstrou ser meramente financeira, sem benefícios que justificassem esse endividamento ao longo dos 39 anos analisados.

Considerando que a dívida externa tem historicamente subtraído recursos que deveriam se destinar ao atendimento das necessidades sociais prioritárias da sociedade, o que caracteriza desrespeito a fundamentos constitucionais da República Federativa do Brasil: a soberania (Art. 1º, I) e a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), devem prosseguir as investigações a fim de apurar as responsabilidades pela violação de objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: a erradicação da pobreza (art. 3º, III) e, adicionalmente, representa a violação do próprio princípio republicano no sentido do adequado trato da coisa pública pelos agentes do Estado, violando ainda o disposto no artigo 6º. da Constituição Federal.

É evidente a conexão entre as ilegitimidades apontadas na presente análise preliminar sobre a dívida externa e seus impactos à sociedade, decorrentes das medidas econômicas adotadas para permitir o cumprimento das obrigações do endividamento externo, gerando importantes restrições no cumprimento do papel do Estado e na garantia dos direitos sociais à população.

 

 

Diante das diversas ilegitimidades, indícios de irregularidades e até de ilegalidades constatadas nesse curto período de duração da CPI, é recomendável o aprofundamento das investigações, especialmente face às evidências de danos ao patrimônio público, à necessidade de buscar ressarcimentos financeiros devidos ao Brasil e, adicionalmente, dada a relevância dos fatos para a evolução do processo de endividamento externo brasileiro, que tem historicamente provocado graves conseqüências sociais e ofensa aos direitos humanos fundamentais da sociedade brasileira.

 

 

É recomendável o aprofundamento das investigações relacionadas aos diversos temas mencionados na presente análise preliminar, que abrangeu o período de 1970 a 2008, realizando-se a AUDITORIA DA DÍVIDA PREVISTA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988, tendo em vista a necessidade de elucidar os aspectos fundamentais do endividamento público que não puderam ser desvendados pela atual CPI, dado o exíguo prazo de seu funcionamento e as diversas limitações indicadas.

 

É recomendável que os parlamentares da CPI proponham alterações legais a fim de evitar a continuidade de práticas lesivas ao patrimônio público, como as verificadas na presente análise preliminar, especialmente relacionadas às transformações de dívidas privadas em dívidas públicas; às justificativas para emissões de dívida externa quando acumulamos reservas tão elevadas e emprestamos até ao FMI; à exigência de controle individual de cada operação autorizada pelo Senado Federal, impedindo-se o estabelecimento de elevado limite que significa um “cheque em branco” ao Executivo, bem como medidas efetivas ao controle do endividamento público, à manutenção de arquivos públicos sobre o endividamento, com ampla transparência sobre cada operação.

 

É recomendável a revisão da Cláusula de Ação Coletiva – inserida em todas as emissões de títulos da dívida externa a partir de 2003 – e dos programas de resgate de títulos da dívida externa com ágio no mercado secundário, realizando-se auditorias integrais sobre todas as operações de resgate antecipado que resultaram em prejuízo financeiro às contas públicas.

 

É urgente a revisão da política de acumulação de reservas cambiais via endividamento interno, dado seu elevado custo e utilização para a transformação de dívida externa em interna, como se evidenciou por ocasião do pagamento antecipado ao FMI, bem como a criação de mecanismos de controle de capitais que inibam o ingresso de capitais voláteis, que tem provocado volumosos prejuízos ao Banco Central.

É recomendável a criação de uma Comissão Permanente de Auditoria da Dívida no Congresso Nacional, conforme proposto por integrantes da CPI da Dívida Pública durante os debates. Tal medida se justifica pelo fato de que a dívida tem sido permanente e os órgãos de controle demonstraram grande fragilidade no trato do tema, conforme detalhado no item das limitações da presente análise preliminar.

É recomendável o aprofundamento das investigações por parte do Ministério Público, especialmente diante das evidências de danos ao patrimônio público, e ao flagrante desrespeito aos direitos humanos decorrente da priorização de gastos financeiros.

É urgente a priorização dos recursos para as áreas sociais, revisando-se os dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal que promovem a priorização da formação do superávit primário e o pagamento da dívida.

É necessária a criação da “Lei de Responsabilidade Social”, que obrigue os governos a priorizarem os investimentos nas áreas sociais e a preservação da vida humana em detrimento do pagamento da dívida financeira.

 

 

Brasília, 25 de março de 2010

 

Maria Lucia Fattorelli Carneiro

Auditora Fiscal da Receita Federal do Brasil

Requisitada para Assessorar a CPI da Dívida Pública

 

 

Aldo Olmos Molina Júnior

Auditor Interno da Caixa Econômica Federal

Requisitado para Assessorar a CPI da Dívida Pública

 

 

 

 

 

 

[1] O saldo de US$ 198 bilhões ao final de 2008 exclui os empréstimos intercompanhias. Se incluídos os empréstimos intercompanhias, o saldo da dívida externa em 31.12.2009 foi de US$ 282 bilhões.

[2] Tomando-se os dados da Tabela Dívida Externa Total proporcionada pelo Banco Central e considerando-se todos os ingressos e todas as saídas indicadas na referida tabela, foi calculada a Transferência liquida da seguinte forma: Empréstimos recebidos – Amortizações – Juros pagos e refinanciados + líquido de curto prazo.

[3] Tabela da Dívida Externa Total enviada à CPI juntamente com a Nota Técnica Depec-2009/248, de 30/10/2009, enviada com Ofício 898/2009-BCB/Secre, de 03/11/2009. Conforme informado pelo Banco Central, esta Tabela não incluiu os “empréstimos intercompanhias” a partir de 1993.

[4] Considerando a dívida externa total informada nas séries temporais do Banco Central, que inclui os empréstimos intercompanhias.