Desmontando argumentos equivocados contra a Auditoria Cidadã da Dívida – Por Dr. Miguel Bruno
Miguel Bruno
Dr. em Ciências Econômicas pela EHESS-Paris e pelo IE-UFRJ
ENCE-IBGE e FCE-UERJ
Estudo a financeirização da economia brasileira desde minha tese defendida em 2005. Já ouvi de algumas pessoas que se consideram de esquerda que “não há necessidade de se auditar a dívida pública interna porque todos os dados sobre ela são sempre publicados com transparência pelo Banco Central do Brasil.” Ora, que tipo de esquerda é essa que acredita que o Estado burguês-capitalista possui transparência total em tudo o que faz e por isso disponibiliza seus balanços fiscais e financeiros completos a todos os seus cidadãos interessados? E por esta razão, não há nenhuma necessidade de se auditar a dívida pública, basta analisar os dados do Banco Central e do Tesouro Nacional.
Além disso, o argumento de que a auditoria da dívida provocaria aumento das taxas de juros não se sustenta, pois há sempre a possibilidade de o BCB agir seja emitindo moeda, seja desfazendo grande parte das chamadas “operações compromissadas” e até reativando controles de capital para evitar a saída de dólares do país. Para isso que também serve uma política monetária expansionista que tenderia a reduzir as taxas usurárias de juros praticadas pelos grandes bancos.
Além do impacto político positivo, pois conscientizador da população brasileira que desconhece os processos institucionais de reprodução da dívida pública interna como principal eixo da acumulação rentista-financeira, a auditoria seria capaz de mostrar como a emissão de títulos da dívida pública interna brasileira tornou-se um eficiente mecanismo de captura do Estado nacional, em conformidade com a lógica da financeirização da economia.
A posse de títulos da dívida pública permite às elites rentistas e proprietárias de bancos controlar a política fiscal e monetária, o que reduz drasticamente a autonomia do Estado para implementar políticas econômicas contracíclicas e de desenvolvimento econômico.
Por outro lado, se toda dívida é passível de auditoria, por que a dívida pública brasileira não o seria? Ser contra a auditoria é já assumir uma postura tendenciosa. E do meu ponto de vista como economista e estudioso da financeirização da economia brasileira há mais de 20 anos, lamento as posturas que negam a pertinência dos trabalhos da Auditoria Cidadã da Dívida (ACD), pois seriam capazes de expor ao povo brasileiro o significado do endividamento público interno capitalizado e reproduzido com base na maior taxa real de juros do mundo.
Conheço os argumentos que se opõem aos trabalhos da ACD, e nenhum deles até agora me convence e assumi-los como corretos e pertinentes sem que se compreenda o significado da financeirização usurária da economia brasileira conduz, ainda que involuntária ou tacitamente, a posições que interessam apenas ao mercado financeiro e aos grandes bancos e ao atual governo petista, pois este último é incapaz de assumir qualquer posição crítica ao setor bancário-financeiro brasileiro, hoje disfuncional e altamente concentrador de renda e riqueza, portanto, se constitui num obstáculo estrutural ao desenvolvimento.”
A questão de que o governo não precisa arrecadar para gastar (argumento correto que encontra fundamento teórico numa abordagem keyensiana e de MMT das finanças públicas) e por isso não haveria necessidade de se auditar a dívida pública interna seria pertinente se a dívida pública interna brasileira existisse realmente para cumprir suas duas funções primordiais:
- a) a gestão da liquidez da economia.
- b) o financiamento do investimento do governo.
A dívida pública interna tornou-se essencialmente um instrumento de acumulação rentista com taxas de juros anômalas para transferir recursos do orçamento público para as elites rentistas e proprietárias dos grandes bancos. Com esse objetivo rentista, o endividamento público interno brasileiro tem mantido a liquidez da economia muito baixa, o que encarece o crédito para consumo e para investimento produtivo (formação bruta de capital fixo, isto é, máquinas, equipamentos, instalações e infraestruturas). Trata-se, portanto, de uma dívida estritamente financeira com objetivos de reproduzir a acumulação rentista obstaculizando o desenvolvimento brasileiro. A população precisa ter consciência disso e a ACD certamente contribuiria para revelar e denunciar esse processo.
Por fim, soa como muito estranho que haja um verdadeiro cerco de marxistas, heterodoxos, keynesianos e vertentes que se autodenominam de esquerda se posicionando contra os trabalhos da ACD. Essa resistência e oposição deveriam ser esperadas por parte da direita que se beneficia de uma dívida cujo caráter é essencialmente financeiro e sem nenhuma contrapartida com o capital produtivo de nosso país, a não ser para mantê-lo em níveis reduzidos e muito aquém das necessidades do desenvolvimento brasileiro.