Dívida externa e fome: rotas estruturais do capitalismo dependente

Compartilhe:

Roberta Sperandio Traspadini*

Segundo os dados da Auditoria Cidadã da Dívida (2016), o orçamento da União realizado foi de R$ 2,572 trilhões de reais. Deste total, 43,94% foram utilizados para pagamento de juros da dívida e amortizações e 22,54% para previdência social, ficando 33,52% para todos os outros compromissos econômicos e sociais do País. O panorama laboral da América Latina, OIT (20172), mostra que a taxa de desocupação em 2016 no continente foi de 8,1%, o que equivale a 5 milhões de pessoas desempregadas. No recorte de gênero/gerações, a desocupação entre as mulheres chegou a 9,8%, e a dos jovens 18,9%. Na crise estrutural do capital no século XXI (Mészáros,20033; Harvey, 20034), o tipo de trabalhador que mais tem sofrido com a retração econômica e os mecanismos utilizados pelo capital para contrarrestá-la, são jovens e mulheres. São 134 milhões de trabalhadores que vivem na informalidade na América Latina, o que impacta diretamente na ausência real de direitos sociais consolidados. A maior taxa de desocupação é do Brasil com 11,3%. Na agricultura, o emprego informal chegou a 46,8% dos sujeitos em idade ativa.

Segundo a FAO, 20155, 793 milhões de pessoas estão subalimentadas no mundo. Na Ásia meridional, são 35,4%; na África Subsaariana, 24,7% e; na Ásia Oriental, 18,3%. Juntas, estas regiões englobam quase 80% do problema da fome no mundo. Para mostrar como dívida e fome, utilizamos o relatório do CADTM, 20166. Este nos mostra que no entre 1980 a 2012 em (mil milhões) a dívida da África subsaariana que era de US$ 61, passou para 331; do sul da Ásia passou de US$ 37, para US$ 501; do Leste da Ásia de US$ 61 para US$1.412; e, da América Latina era de US$ 230 e saltou para 1.258. Mais de 50% do montante destas dívidas são do setor privado.

Pelos números da fome e da dívida verificamos que ambas são oriundas de um modelo de desenvolvimento desigual e combinado (Marini, 20057) que faz com que as mazelas do Sul sejam geradas pelas potências do Norte. Tendo em conta o caráter ilegítimo, imoral e odioso tanto da dívida externa do Terceiro Mundo (CADTM, 2016, como da fome oriunda do mesmo modelo para estes territórios, a questão a saber é: em que medida a dívida externa do Terceiro Mundo e a fome se transformaram em um mecanismo vital para a reprodução ampliada do capital no século XXI, dado sua tendência à queda da taxa de lucro real?

A legítima luta da ACD pelo mundo deve basear-se em uma profunda análise sobre os limites reais da reforma dentro da atual conjuntura estruturante do capital financeiro monopolista.

Na transição da Idade Média para a Modernidade – séculos XIV a XVI – hegemonizada pela vitória na guerra comercial e de domínio dos países europeus sobre outros territórios, as ideias liberais exigiam a construção do Moderno Estado de Direito com um marco jurídico que garantisse, em cada tempo histórico, consolidações formais do poder dos proprietários privados dos meios de produção. O liberalismo clássico de Quesnay, Smith e Ricardo, defendido como princípio democrático. Republicano e igualitário, foi ancorado nas bases jurídicas e políticas da propriedade privada. E, à medida que o capital avançava para seus processos de expansão-crise, o mesmo ia modificando as regras do jogo que lhe interessavam para compensar suas perdas. O regulacionismo burguês de Keynes, foi uma nova faceta das velhas práticas liberais para que o capital saísse da crise ocupando ainda mais os Estados nos territórios onde atuava (in)diretamente. Nos países desenvolvidos o Estado do Bem Estar Social, entre os anos 1930 e 1970, expunha as necessidades do capital financeiro monopolista, em sua fase madura de concorrência intercapitalista atrelada à exportação de capitais e partilhas do mundo (Lênin, 20128) de contar com os recursos públicos como reprodução ampliada de sua própria dinâmica. O individualismo e a ideia de progresso e identidade nacional se apresentavam como marcos de um comércio internacional transversalmente tocado por crises e guerras mesmo quando se construíam discursos de paz. A mundialização do capital propagava assim as ideias dominantes através da aceleração sem precedentes do tempo histórico, advindo do avanço técnico-científico informacional. O principal elemento da guerra deixava de ser a pilhagem de ouro/prata e passava a ser o ferro-dólar-petróleo. Na segunda ode de transição da modernidade à contemporaneidade (pós-modernidade), o neoliberalismo retoma, com base em uma nova fase de automação e de consumismo, premissas antigas em tempos ultramodernos. E exige uma reconstrução do sentido de liberdade, de entidade e serviço público e de igualdade. A pós-modernidade ancorada nas consignas neoliberais hiperdimensiona o que a modernidade constituiu: a naturalização da violência como premissa conservadora na instituição dos estereótipos criados há mais de 500 anos, quando da transição do barroco ao moderno. Ex-colônias se transformaram em Nações; e no contemporâneo as Nações são ressignificadas em blocos regionais-globais pertencentes a algum país hegemônico. O direito internacional-privado subsume o direito público-social em cada um dos territórios e o que antes era tido como identidade nacional, passa a ser transmitido como ideário global, ainda quando a ampla maioria não possa sair ou ficar no território por falta absoluta de recursos para sobreviver.

A história da dívida e a história da fome se mesclam nas raízes da história do capital. As novas fases de concentração e centralização do capital, necessitavam intensificar os extrativismos, a superexploração da força de trabalho e o conservadorismo em especial nos países de Terceiro Mundo. A crise do capital já não pode mais ser projetada como conjuntural, tamanhos os danos estruturais da atual fase de produção material da riqueza capitalista. Processo que se atrofia em suas próprias contradições: meio ambiente esgotado; seres humanos desumanizados; economia mundial com fronteiras e muros bem definidos a partir do aparato militar da guerra.

Se a denúncia da ACD está correta em seus trilhos, isto se ancora no fato de que tal condição expõe as mazelas estruturais do capital e exigem que o debate de reforma dentro da ordem seja a alavanca explicitadora dos próprios limites de dita situação, conformando um debate público da necessidade de revolucionar as bases que nos amarram em uma sociedade desumanamente desigual.

* Trabalho de Conclusão do Curso de Ensino à Distância Dívida Pública Brasileira e suas consequências para os diversos segmentos sociais – Auditoria Cidadã da Dívida: Por quê? Para quê? Como?