A Dívida Pública do Estado de São Paulo – Marco Antonio Ferreira e Rafael Pinheiro Machado

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Marco Antonio Ferreira e Rafael Pinheiro Machado

Post original: http://marcopsol.blogspot.com.br/2014/08/a-divida-publica-do-estado-de-sao-paulo.html

 

Pode-se dizer que a situação da dívida pública de São Paulo agravou-se a partir dos anos 70, quando o governo dos EUA rompeu o acordo de Bretton Woods, decretando o fim do chamado “padrão câmbio-ouro”, que materializava o lastro do valor do dólar (uma onça troy (31,104 g) valia US$ 35), e esse era o padrão que regulava o sistema monetário internacional. Ao romper o “padrão câmbio-ouro” durante o Governo Nixon (1971), os EUA ficaram livres para emitir a quantidade que desejassem de moeda através do banco central daquele país (Federal Reserve – FED), o que consequentemente gerou uma abundância de crédito no mercado externo, impondo o esquema das taxas flutuantes de câmbio.

Com o consequente aumento da oferta de créditos no mercado a baixas taxas de juros, o Governo Militar Brasileiro – assim como os governos de diversos outros países (muitos deles também ditatoriais) – incentivou as empresas estatais a contraírem empréstimos no exterior e com esse dinheiro realizar investimentos e executar grandes obras de infraestrutura.

No Estado de São Paulo, o Banco do Estado de São Paulo – Banespa – funcionou como um catalisador desses créditos, tomando recursos emprestados no mercado financeiro internacional e os emprestando para as estatais paulistas. No entanto, as estatais paulistas acumularam dívidas que inviabilizaram a quitação integral de suas dívidas junto ao Banespa, deixando este banco em situação delicada. Diante desta grave crise, o Banespa iniciou a captação de recursos no mercado financeiro internacional, através da emissão de títulos (em nome do Governo de São Paulo) e da rolagem dos serviços da dívida pendente das estatais.

No final da década de 70, o Banespa começa o processo de internalização de sua dívida externa, através da captação de recursos do mercado interno e quitação dos empréstimos externos. No entanto, esse conjunto de operações foi confuso e obscuro, fazendo a sociedade a crer que a dívida do Estado junto ao Banespa tinha se iniciado nos anos 80.

Nos anos 80, com a alta das taxas de juros unilateral (Prime e LIBOR), é iniciada uma crise internacional decorrente do súbito encarecimento dos empréstimos novos e vigentes, forçando os credores a posturas mais duras quanto a rolagem e renovação dos contratos. Nesse contexto, o Banespa ficou entregue a própria sorte no mercado internacional, uma vez que não poderia recorrer ao Banco Central do Brasil – BACEN – e ao Banco do Brasil, visto que ambos também se encontravam em dificuldades.

Em 1983, o BACEN assumiu a dívida externa dos Estados e de suas empresas, tornando-se credor dos mesmos, sendo que os termos da negociação externa foram aplicados nos contratos internos.

Mesmo com a internalização da dívida por parte do Banespa e BACEN, as estatais paulistas seguiam com débitos pendentes junto ao banco paulista, até que o Tesouro Paulista, no início da década de 80, assumiu esses encargos, repassando recursos as estatais, para as empresas quitarem seus débitos junto ao Banespa. No entanto, quando não havia possibilidade da transferência de dinheiro do Estado para as empresas, o banco fazia a rolagem das dívidas. Ainda assim , em 1986 o Governo paulista começa a encontrar dificuldades para saldar os débitos pendentes com o BACEN, e tal situação se agrava durante o Governo Quércia.

Na gestão de Quércia, a prioridade foi o investimento de grandes quantias em obras de infra-estrutura, ao passo que a dívida das estatais com o Banespa crescia. Em 1988, o BACEN regulamentou a rolagem das dívidas estaduais (inclusive das empresas estatais) junto aos bancos estatais, sendo o saldo devedor total o valor apurado em 31 de dezembro de 1987, devendo o valor excedente ser liquidado. No entanto, como as estatais não tinham condições de quitar esse valor excedente, o Tesouro Paulista celebrou acordo com o Banespa e assumiu essa parcela da dívida posterior a 31/12/1987. Com isso, a dívida foi separada em duas partes: a) Dívida das empresas estatais junto ao Banespa e b) Dívida do Tesouro Paulista junto ao Banespa.

Vale lembrar que em 1986 o Estado não possuía nenhum débito junto ao Banespa, e ao final do governo Quércia (03/1991), a dívida total era de aproximadamente US$ 2,8 bilhões, sendo 48% das estatais, 30% da parte assumida pelo Estado e os 22% restantes são operações ARO Adiantamento de Receita Orçamentária (ARO), que consistem em antecipações de receita do ano seguinte, dando como garantia a arrecadação de IPVA ou ICMS.

Essas operações de ARO (2 ao todo), somaram cerca de US$ 600 milhões,sendo que a primeira delas correspondia a quase 60% do patrimônio líquido do Banespa, contrariando resolução do Banco Central que limitava os empréstimos a 30% do patrimônio líquido dos bancos estatais. Ainda assim foi solicitada uma outra antecipação, desta vez não foi aprovada pelo BC. No entanto, a legislação previa que decorridos 5 dias do pedido da operação, na ausência respostas, ela poderia ser efetuada.

O pedido foi feito em 26 de novembro de 1990 e a negativa do BCB foi emitida 17 dias depois (13 de dezembro do mesmo ano). As duas operações representavam quase 100% do patrimônio líquido do Banespa, em flagrante desrespeito a legislação vigente. Ressalta-se que boa parte das rolagens de dívida e novos empréstimos foram feitos em total desacordo com as resoluções do Banco Central. Portanto, O BCB foi conivente com as irregularidades.

Estas operações deveriam ter sido pagas no ano seguinte (1991). No Governo de Luiz Antônio Fleury (iniciado em 03/1991), a dívida não foi paga. Um acordo foi feito para o pagamento dessas dívidas, com a primeira parcela vencendo em abril daquele ano. Entretanto, apenas a primeira parcela foi paga. Em 1992, houve novo acordo com o BCB, e essa dívida também foi rolada junto ao Banespa.

Também em 1992, houve nova renegociação da dívida do Estado e estatais com o Banespa, que já alcançava cerca de US$ 3,4 bilhões , sendo US$ 2,3 bilhões relativos a assunção de dívidas e US$ 1,1 bilhões referentes as operações de ARO. Mas os termos da negociação não amortizavam sequer o spread de 6% cobrados pela Banespa, o que fez o saldo da dívida explodir, chegando em final de 1994 a US$ 11 bilhões, sendo 30% desse valor refere-se as operações de ARO.

Na gestão do Governador Mário Covas (1995-2001), foram iniciadas negociações para efetuar o saneamento do Banespa e assunção das dívidas pela União do Estado e das empresas estatais paulistas junto ao banco. Ressalta-se que o Estado também possuía dívida mobiliária, apesar da restrição de emissão de títulos para pagamento de novas dívidas, determinada pela Proposta de Emenda Constitucional – PEC no 3/1993. Por esta PEC, os Estados poderiam pedir permissão para lançar títulos a serem utilizados na rolagem dos encargos e amortizações da dívida mobiliária feita inclusive para saldar precatórios judiciais.

Em janeiro de 1996, foi feita a primeira tentativa de assinar um protocolo de assunção da dívida, que estava em cerca de R$ 15 bilhões , no entanto não houve acordo e somente em maio de 1997 é que houve a celebração do acordo e nesse momento a dívida de São Paulo chegava ao montante de pouco mais de R$ 50 bilhões, um aumento de aproximadamente 230% em 16 meses. O acordo foi baseado na Lei Federal 9.496/1997. A seguir é apresentado o quadro-resumo da dívida Mobiliária do Tesouro do Estado de São Paulo.

Figura 1 – Composição da Dívida Mobiliária do Estado de São Paulo em 23/12/1997.

Em relação a dívida paulista, R$ 22,8 bilhões eram referentes a parte da dívida mobiliária. Desse montante, cerca de R$ 1,5 bilhão corresponderia ao pagamento de precatórios judiciais. Entretanto, os recursos foram utilizados para outras finalidades , como ficou constatado na CPI dos Títulos Públicos no Senado (CPI dos Precatórios). Quanto ao restante, R$ 24,395 bilhões são dívidas junto ao Banespa (estatais e operações de ARO) e ainda cerca de R$ 5,9 bilhões são dívidas junto ao Banco Nossa Caixa, como pode ser visto, respectivamente, nas figuras 2 e 3 a seguir.

Figura 2 – Relação dos Contratos do Governo do Estado de SP junto ao Banespa

Figura 3 – Relação dos Contratos do Governo do Estado de SP junto ao Banco Nossa Caixa

 

Da dívida Estadual total, a União assumiu R$ 3,8 bilhões. O saldo de R$ 46,2 bilhões foi financiado em 30 anos, com parcelas mensais, e o compromisso de amortizar 20% do principal em até 30 meses, dos quais R$ 6,25 bilhões viriam de ativos privatizáveis, e assim, foram “doadas” as nossas estatais e começou o desmonte do patrimônio do Estado.

Outros termos da negociação são: a) taxa de juros de 6% ao ano; b) correção monetária pelo IGP-DI; c) utilização de no máximo 13% da Receita Real Líquida – RLR para pagamentos das parcelas, as quais deverão ser calculadas pelo Sistema Price; d) aumento da alíquota previdenciária dos servidores estaduais de 6% para 11%, e e) redução do gasto com pessoal ativo e inativo. Pode-se afirmar que a assinatura deste acordo foi uma maneira de introduzir algumas diretrizes do Consenso de Washington no âmbito do Governo Estadual de São Paulo.

Os governadores de diversos estados do Brasil que renegociaram suas dívidas afirmavam que, após a assinatura do acordo, os Estados aumentariam a capacidade de realizar investimentos em áreas sociais e, assim, a administração seria mais eficiente e voltada para o bem estar do cidadão paulista.

Entretanto, decorridos quase 17 anos da assinatura do contrato, tais objetivos não foram alcançados. Os serviços públicos pouco melhoraram em alguns casos, piorando em outros casos; servidores públicos estaduais assistiram a um decréscimo do poder de compra; hospitais e escolas estão são precarizados; foram construídos menos de 80 km de metrô; não foram realizados os investimentos necessários para garantir a segurança hídrica; houve significativo aumento do déficit habitacional; rodovias pedagiadas cobram tarifas abusivas etc.

Apesar da enorme quantidade de recursos destinada a pagamento dos serviços dessa dívida e o consequente sacrifício do povo paulista, o saldo devedor desse contrato com a União já passa dos R$ 192 bilhões (Dez/2013), conforme pode ser visto através da figura 4.

Figura 4 – Evolução da Dívida do Estado de São Paulo com a União (1998 a 2013)

A dívida do Estado de São Paulo também inclui diversos empréstimos com organismos financeiros internacionais, agravando ainda mais a situação. A figura 5 apresenta a dívida total consolidada, incluindo o valor dos precatórios , que em dezembro de 2013 totalizavam mais de R$ 12,2 bilhões.

Figura 5 – Evolução da Dívida Total do Estado de São Paulo (1998 a 2013)

Deve-se considerar também a situação da dívida ativa do Estado de São Paulo, que consiste no montante referente a tributos não pagos pelos contribuintes (Pessoas Físicas e Jurídicas). A figura 6 apresenta um trecho do relatório do Balanço Geral das contas do Estado para o exercício de 2013, segundo a própria Procuradoria Geral do Estado – PGE, onde destaca-se que somente 50% desse total poderá ser recebido, tendo em vista que parte da dívida é muito antiga ou de empresas que já foram extintas ou que se beneficiaram de outros artifícios tributários.

Figura 6 – Estoque da Dívida Ativa do Estado de São Paulo- Exercício de 2013

É preciso suspender o pagamento dessa dívida e recalcular os valores retroativamente, dado que no artigo 192 da Constituição Federal promulgada em 1988 é vedada a cobrança de juros superiores a 12% ao ano nas operações de crédito, sendo que esta limitação foi retirada apenas em 2003, com a Emenda Constitucional no 40. Portanto, na época das negociações ela estava em vigor. Além disso, o cálculo das prestações é feito pelo sistema Price, baseado na capitalização composta dos juros, contrariando a Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal, onde é estabelecido que “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”.

É inadmissível que o povo paulista continue a pagar por gestões irresponsáveis dos administradores de empresas estatais e de governadores do Estado.

Referências  Bibliográficas

– SANTOS, Gilton Carneiro dos. A dívida dos estados: composição, evolução e concentração. Brasília : ESAF, 1998. 29 p. Monografia agraciada com menção honrosa no III Prêmio de Monografia – Tesouro Nacional, Dívida Pública : dívida dos estados , ago ,98..
– DALL’ACQUA, Fernando Maida. Crise dos bancos estaduais : o caso do Banespa. Relatório de Pesquisa FGV – NPP, São Paulo, n. 7, 1997
– PELLEGRINI, Josué Alfredo. Dívida estadual; Texto para Discussão nº 110 do Núcleo de Estudos e Pesquisa do Senado Federal, março de 2012