Sul 21: ‘A entrega do patrimônio se encaminha para completar o que o governo Britto fez’, com Josué Martins

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Presidente do Sindicato dos Auditores do Tribunal de Contas, Josué Martins afirmou que acordo pode trazer um refresco momentâneo para o Estado, mas no futuro é prejudicial| Foto: Joana Berwanger/Sul21 Jaqueline Silveira

Jaqueline Silveira

O governo do Estado fechou um novo acordo, no dia 20 de junho, com o governo federal para renegociação da dívida do Rio Grande do Sul. Pelo acerto, a União concede carência até o final do ano e prorroga por mais 20 anos o pagamento das parcelas. Presidente do Sindicato de Auditores Públicos Externos do Tribunal de Contas do Estado (Ceape/Sindicato), Josué Martins avalia que o acordo de renegociação selado por José Ivo Sartori (PMDB) é semelhante ao feito pelo governo Antonio Britto (PMDB), em 1998. O contrato, conforme o auditor, inclui redução de investimentos em áreas essenciais, como saúde, segurança e educação, privatizações e limitações de nomeações de pessoal. No ponto de vista do analista, o governo Sartori pode terminar “o serviço que o Brito começou lá atrás.” Martins, que também é membro da coordenação do Núcleo Gaúcho da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, disse que essa conta já foi paga e o acordo, como feito, é para não ser pago. “Não há condições de ser pago”, afirmou ele.

Confira os principais trechos da entrevista ao Sul21 sobre a negociação e suas consequências para o futuro do Estado:
Sul21 – O governo do Estado fechou um acordo com a União, no dia 20 de junho, para o pagamento da dívida. A partir das primeiras informações divulgadas, que avaliação o senhor faz dessa renegociação?

Josué Martins – Por enquanto, o que a gente tem são notícias divulgadas na imprensa. Para ter um parâmetro do que está acontecendo, é importante falar como a gente chegou até aqui. Ou seja, o que que foi o acordo? É em relação à parcela da dívida do Estado com a União, que foi negociada lá em 1998. No final de 2015, a dívida estava em quase R$ 62 bilhões, a dívida total do Estado. Disso, cerca de 83% é a dívida com a União, que são R$ 51 bilhões. É de R$ 51 bilhões que nós estamos falando. No ano passado, nós pagamos R$ 3,7 bilhões de dívida.

Sul21 – Esse valor é referente ao total da dívida do Estado, ou só o montante para a União?

Martins – Não, os R$ 3,7 bilhões são o total do Estado. Para a União, deu R$ 3,2 bilhões, que foi renegociada lá em 1998. Quando aconteceu a renegociação, o Estado tinha uma dívida acumulada com o mercado e com a União. Em 98, foi um momento de crise profunda e autoendividamento dos Estados, essa dívida nos valores da época era em torno de R$ 9,5 bilhões. De lá pra cá, a gente pagou, pelos meus cálculos, R$ 24,8 bilhões e a gente deve R$ 51,6 bilhões. Então eram R$ 9,5 bilhões, pagamos R$ 24,8 bilhões e ainda devemos R$ 51 bilhões. A gente já pagou diversas vezes a dívida, se formos tomar os valores em termos históricos. O que tem tornado a dívida impagável? A forma como é reajustado o valor da dívida.

“A gente já pagou diversas vezes a dívida, se formos tomar os valores em termos históricos.”

Para Josué Martins, contrato da dívida se mostrou oneroso para o Estado | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Para Josué Martins, contrato da dívida se mostrou oneroso para o Estado | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Pesariam mais os juros?

Martins – Os juros e a correção monetária. Mais os juros. Se a gente pegar o indexador, que é o IGP-DI, mais os juros de 6%, de 99 a 2015 deu 1.047%, IGP-DI, que é a correção monetária, mais os juros. Dos 1.047%, a correção monetária deu 315% e o juro deu 839%. O que a Auditoria Cidadã tem dito é que a relação entes federados deveria ser de parceria, de colaboração, de ajuda mútua, não cabe alguém ganhar nessa história. Quando se estabelece um juro por definição, ele é um ganho sobre o capital emprestado, então a gente tem dito que não pode cobrar juro aqui. E o contrato feito lá em 98 foi com essa justificativa: de ajuda, de parceria, de colaboração para os Estados.

Sul21 – Mas o tempo demonstrou que o acordo de 98 não foi de ajuda mútua.

Martins– Ele (contrato) já embutiu um juro ali, que é a maior parcela do contrato. Então, quando você estabelece que vai cobrar pelo dinheiro emprestado, a correção monetária mais o juro, você está dizendo, no mínimo, que a receita dos Estados deve crescer da mesma maneira, correção mais um crescimento real de 6%. Historicamente, isso não aconteceu e nunca vai acontecer. A nossa receita cresceu de 98 pra cá em torno de 2,5%, enquanto que o crescimento real que se previa nesse contrato, para não comprometer o orçamento do Estado com o pagamento da dívida, seria de 6%. A gente não cresceu nem a metade da forma que o contrato feito exigiria para não comprometer outros serviços públicos: saúde, segurança, educação…. O contrato se mostrou bastante oneroso para os Estados, não foi um contrato de parceria. Em 99, um ano depois de ter realizado o contrato, os meus colegas, auditores do Tribunal de Contas do Estado, tinham feito uma auditoria sobre isso.

Lá em 99, eles já diziam que não tinha sido um bom negócio para o Estado, porque esse contrato levou a um aumento dos encargos e, por conta disso, iria reduzir a capacidade de prestação de serviços à sociedade e, ao mesmo tempo, tem um detalhe embutido: o plano de ajuste fiscal, acordado com a União. É um conjunto de metas que estabelece que o Estado tem de cumprir. As três principais metas e que são mais graves definiam um limite de gastos com pessoal, estabeleciam compromissos de privatizações e teto para investimento, um limite para investimento do Estado. Em 1998, quatro anos depois do Plano Real, esses contratos estão na lógica do próprio Plano Real, que tinha embutido, para o controle da inflação, uma grande abertura da economia, atraia capitais externos para o país na forma de investimento real, os estrangeiros compraram várias empresas privadas e várias empresas estatais, que foram privatizadas. Essa compra se deu, muitas vezes, com moeda podre que não valia quase nada, saiu, então, a preço de bananas para eles. A gente vê a Oi, parte da telefonia foi privatizada, agora está quebrando. Ao mesmo tempo em que abria a economia para o investimento direto, também aumentou a taxa de juros básica da economia.
De 95 a 98, que é o período anterior aos contratos dessas nossas dívidas, essa taxa básica de juros foi em média 22% ao ano reais. Isso fez com que nossa dívida tivesse um estouro, cresceu quase R$ 30 bilhões entre 94 e 98, por conta da política do governo federal de elevação das taxas de juros, que estava na base do Plano Real. Então, quando se dizia que tínhamos uma dívida porque gastávamos de forma descontrolada e desordenada, éramos irresponsáveis do ponto de vista financeiro, isso é uma grande mentira, porque nossa dívida cresce essencialmente de 94 a 98 por conta da política de juros do governo federal.

“O contrato (de 1998) se mostrou bastante oneroso para os Estados, não foi um contrato de parceria.”

Sul21 – Ou seja, a questão do descontrole de gastos não era o maior problema que fazia aumentar a dívida?

Martins – Problema sempre teve, mas isso não era o grosso da coisa. De 98 pra cá, tem esses contratos, que vieram, supostamente, para ajudar. Para aquele valor da dívida que estava alto em 1998, a gente imagina uma curva descendo para um nível civilizado, mas não, o contrato permitiu que a dívida ficasse num patamar elevado, muito embora a gente venha pagando todo o ano esse contrato. O que a gente pode concluir é que ele foi feito para não ser pago, não tem condições de ser pago. Ou vai pagar com um alto grau de comprometimento da capacidade do Estado de prestar os serviços à população, de novo: saúde, educação, segurança. Mas não é só isso: atividade da Justiça, atividade de controle que faz o Tribunal de Contas do Estado, atividade fazendária, política agrícola, política industrial, o conjunto das atividades primárias do Estado.
“O que a gente pode concluir que ele (acordo) foi feito para não ser pago, não tem condições de ser pago.”

Sul21?- Isso quer dizer que, momentaneamente, esse acordo vai trazer alívio para as finanças do Estado?

Martins – Ele realmente dá um refresco.

24/06/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com Josué Martins. Foto: Joana Berwanger/Sul21
‘O que as pessoas precisam entender é que a dívida se baseia em critérios extremamente onerosos e injustos’, diz Martins | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Mas esse acordo dá mais um refresco porque não precisa pagar a parcela até o final do ano ou pelo fato de o Estado ter mais 20 anos para pagar a dívida com a União?

Martins – As duas coisas. A dívida era inicialmente para ser paga em 30 anos e quando você alonga por mais 20 anos, você diminui a prestação, aquele montante é diluído no tempo, mas o que as pessoas precisam entender é que a dívida se baseia em critérios extremamente onerosos e injustos para os Estados. Ela não tem nenhuma relação com aquilo que deveria ser a regra numa relação entre Estado e União. Não tem isso por causa do sistema da dívida, que se baseia em mecanismos de opressão financeira sobre o devedor para que ele execute políticas, de acordo com o interesse do credor. Foi assim na relação do Brasil com o FMI na década de 80, quando estourou a crise externa da dívida brasileira. O Brasil se submetia às cartas de intenções do FMI. Esses programas de ajuste fiscal que mencionei tem a mesma sistemática daquelas cartas de intenções do FMI. O governo federal vem aqui e diz para o Estado como ele deve gerenciar a sua política econômica. De 98 pra cá, depois que a gente começou a assinar esses programas de ajuste fiscal, e já são onze, a gente pode dizer que a gestão financeira do Estado teve a participação da Secretaria do Tesouro Nacional, portanto da União. Essa participação veio limitar os gastos com pessoal, privatizar os setores que eram possíveis privatizar, que o Britto fez lá atrás com a ajuda do Sartori, na época seu líder na Assembleia Legislativa, e conter a capacidade do Estado de investir na economia.

Isso do ponto de vista econômico é muito grave, porque o investimento público é uma variável importante na dinâmica do crescimento econômico, quando o investimento público não acontece, a economia tem dificuldade em crescer. Em geral, a dinâmica é assim: o Estado vai e investe e o setor privado vem atrás e complementa. No ano passado, quando estourou a Lava Jato, a Petrobras teve bastante dificuldade para funcionar, o setor de óleo e gás do país era responsável por, praticamente, um terço do investimento no país em 2014, isso é muito! Quando esse setor se retrai, deixa de investir, gera um efeito em cadeia na economia e que dificulta o crescimento do conjunto de atividades que está no entorno do setor de óleo e gás.

“(…)Essa participação veio limitar os gastos com pessoal, privatizar os setores que eram possíveis privatizar, que o Britto fez lá atrás com a ajuda do Sartori, na época seu líder na Assembleia Legislativa, e conter a capacidade do Estado de investir na economia.”

Martins alertou também sobre a PEC 241 | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Martins alertou também sobre a PEC 241 | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – O senhor afirmou que boa parte da dívida se deve aos juros elevados. A mudança de indexador do IGP-DI para IPCA ajuda a dar um alívio?

Martins – Muda um pouco. E isso é uma mudança boa, porque o IPCA é um indexador que mede a inflação oficial do governo. É feito por uma entidade pública, que é o IBGE. O IGP-DI mede a inflação mais no atacado, ou seja, no consumo intermediário do atacado para o varejo, não vai para o consumidor final. E esse indexador tem uma influência muito importante das variações cambiais. Quando dá uma desvalorização muito forte do Real, o IGP-DI tem uma influência grande e o IPCA nem tanto. Nesse período, enquanto o IGP-DI, de 1999 a 2015, cresceu 315%, o IPCA cresceu 208%, então já tem uma diferença de mais de 100%.

Sul21 – Apesar de as informações serem, ainda, preliminares sobre o acordo, um dos principais problemas seria o fato de os Estados ficarem vinculados a uma PEC (241) que já está na Câmara dos Deputados, e que, justamente, limita o aumento de gastos públicos e exige privatizações do patrimônio estadual?

Martins – É a mesma lógica do (acordo) anterior, está dentro do marco de continuidade da política, não quebrou a política. Nada melhor do que o tempo para mostrar o que está certo e o que está errado nas avaliações, em economia tem muito disso. Meus colegas, auditores do TCE, podiam estar errados lá em 99, mas o tempo mostrou que eles estavam certos. Essa PEC, que está proposta pelo governo federal, ela muda realmente o cenário que o governo está chamando de um novo regime fiscal. Na verdade, ele não tem nada de novo. Isso que o governo federal está chamando de novo é a continuidade do que já existia aprofundado. Ou seja, é mais opressão sobre a sociedade para garantir rentabilidade do sistema financeiro. Quando a gente mostra que a dívida cresce, não há contrapartida financeira para os Estados, não houve lá em 98, o que aconteceu lá em 98 é que tinha uma dívida e a União assumiu, ela não botou dinheiro novo aqui e não está havendo agora, os caras não estão botando dinheiro, não estão sequer emprestando. Se fez uma construção para dar sequência à situação anterior, que já estava esgotada, dando uma sobrevida para esse sistema, que limita a capacidade dos Estados de prestar serviço.

“Isso que o governo federal está chamando de novo regime fiscal é a continuidade do que já existia aprofundado. Ou seja, é mais opressão sobre a sociedade para garantir rentabilidade do sistema financeiro.”

Sul21 – Um acordo com um preço mais alto em relação às consequências?

Martins alertou também sobre a PEC 241 | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Martins alertou também sobre a PEC 241 | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Martins – Pelas consequências, com certeza, porque os orçamentos dos Estados chegaram num limite para dar conta de assumir aquele compromisso firmado lá atrás. Agora, vai ser dado um refresco para continuar pagando. Não vamos matar a galinha dos ovos de ouro, essa é a ideia. Vamos deixar que ela continue colocando ovos, se não acaba a capacidade de extrair recursos dali. Essa PEC estabelece um teto para os gastos públicos, eliminando aquelas vinculações constitucionais, que tinham em educação, saúde, por 20 anos. O Conselho Nacional de Secretários de Saúde de Estados e o Conselho Nacional de Secretários de Saúde de Municípios editaram uma nota mostrando que, se vigorar essa PEC, em 2017 e 2018, a área da saúde vai perder R$ 12 bilhões. O Andes-Sindicato, o Sindicato Nacional das Instituições de Ensino Superior, publicou uma nota que essa perda na área de educação deve ser em torno de R$ 30 bilhões. Para que isso? Para seguir abastecendo o sistema da dívida, porque a economia que se pretende com esse novo regime fiscal não é para reverter em mais serviços à população. Pelo contrário, é para mandar esse recurso para o sistema financeiro, que é o que tem dominado a lógica de funcionamento da sociedade mundialmente. Não é só no país, não é só do Estado. É uma lógica mundial.

Sul21 – Então, se a PEC for aprovada, Estados e municípios ficam desobrigados de aplicar os percentuais constitucionais em educação e saúde, já que os orçamentos ficarão vinculados à reposição da inflação?

Martins – A PEC ainda não abrange Estados e municípios, diz respeito só à União. Como a gente não conhece exatamente os termos do acordo feito na última semana, podem ocorrer duas coisas: ter uma alteração na PEC para que ela alcance Estados e municípios, ou apenas um compromisso dos governadores de alterar as Constituições Estaduais da mesma forma que a Federal vai ser alterada.

Sul21 – O senhor disse que áreas essenciais, como saúde e educação, irão perder recursos. Nesse sentido, representantes de sindicatos de servidores públicos (Ugeirm e Sindjus) se manifestaram sobre os prejuízos ao serviço público, inviabilizando investimentos, já que não haverá vinculação dos orçamentos à receita e sim à reposição da inflação. O serviço público ficaria muito limitado?

Martins – Vai limitar, porque ele não está mudando a lógica. O governo federal, e não é só o Temer, a Dilma também, entraram nessa lógica da expansão financeira global e aprofundaram a inserção do país nela, isso não tem futuro. Aliás, o futuro disso, a história nos mostra lá atrás: foram duas grandes guerras mundiais, quando o capital financeiro dominou o mundo e o fascismo se instala em algumas nações, guerras imperialistas por conquistas de espaço no mundo. O capital financeiro só foi aplacado, sua ânsia por ganhos, com duas grandes guerras mundiais, conflitos abertos muito grandes. Os colegas fazendo uma análise mais simples, focada na questão local, têm toda a razão. A Ugeirm, que é vinculada à segurança, e o Sindjus, que é vinculado à Justiça, estão corretos na avaliação que fazem: o que está se propondo é mais do mesmo piorado.

“A Ugeirm, que é vinculada à segurança, e o Sindjus, que é vinculado à Justiça, estão corretos na avaliação que fazem: o que está se propondo é mais do mesmo piorado.”

Sul21 – Isso quer dizer que investimentos, por exemplo, em segurança, que é uma das principais reclamações da população diante do aumento da criminalidade, não acontecerão?

Martins– Não vai ter. A permanecer essa lógica, a capacidade do Estado de prover segurança vai ser cada vez mais difícil, não só porque não tem mais recurso financeiro, mas porque o conflito vai aumentar. Com 11 milhões de desempregados e uma política econômica que gerou uma queda no PIB (Produto Interno Bruto) de 3,8%, a violência só tende a aumentar. Nós somos a terceira população carcerária do mundo, olha o que é isso? Daqui a pouco, vai ter mais gente na cadeia do que solta e não tem política de segurança que dê conta disso. No ano passado, quando o Estado congelou a contratação de pessoal, já havia um déficit importante na Susepe, como já havia de brigadianos e na Polícia Civil. Do ano passado pra cá, só aumentou, porque aumentaram as aposentadorias, o governo do Estado resolveu implantar uma previdência complementar, que limita bastante as aposentadorias ali na frente e que vai precarizar o serviço público também, porque uma das coisas que trazia as pessoas para o serviço público era a estabilidade e a garantia de ter uma remuneração no fim de sua vida ativa no mesmo nível em que estava prestando o serviço.

Sul21 – Diante do acordo e suas consequências, o senhor diria que instituições rentáveis como Corsan e Banrisul estão ameaçadas de privatização?

Martins – Eu diria, inclusive, a CEEE.

Sul21 – A parte da CEEE que sobrou.

Martins – A energia move o mundo. Sem energia elétrica, a gente está lascado, é uma área extremamente lucrativa. A água é um bem essencial à vida, você vai botar isso na mão da iniciativa privada, que tem responsabilidade – como gosta de dizer seu (Jorge) Gerdau – com o lucro e com seus acionistas, e não com os consumidores. Então, quando você pega bens essenciais à vida que devem estar sob a gestão da sociedade e entrega para a iniciativa privada, você está colocando em risco a vida, é isso que acontece. O Banrisul é o sistema financeiro, é o que tem de mais lucrativo hoje. No ano passado, quando a economia caia 3,8%, um decréscimo real de 3,8%, o setor financeiro apresentou taxas de lucro elevadíssima, Itaú, Bradesco, Santander, apresentando lucro entre 22% e 18%, o próprio Banrisul. Não é pouca coisa numa conjuntura dessas. É possível, com a visão que tem o atual governo estadual é privatizar o que sobrou, terminar o serviço que o Britto não conseguiu concluir lá atrás, e não terminou porque não deu tempo.

A ameaça é real, não só dessas empresas, mas do próprio serviço público. Está tramitando na Assembleia Legislativa o PL 44, das organizações sociais (OS). O que é isso, senão passar para a iniciativa privada a responsabilidade de prover educação, prover saúde, ciência e tecnologia, cultura, meio ambiente? O que aconteceu no município de São Paulo, por exemplo? A área da saúde está bastante comprometida pela iniciativa privada e lá no município, quando uma OS entrou, pegou todos os equipamentos da área da saúde de uma região inteira: pegou hospital, unidades básicas de saúde. E se constatou uma série de irregularidades nisso, porque o governo repassa as atividades, repassa recursos e repassa pessoal sob o argumento que o setor privado gerencia melhor. Mas, você vai olhar, tem compras superfaturadas, tem pessoal fantasma, tem uma série de irregularidades.

A área de educação nós temos um exemplo aqui em Porto Alegre, não precisamos ir longe. Não tem OS, mas o município há um bom tempo vem contratando na rede privada vagas para a Educação Infantil. Nós fizemos uma auditoria há pouco tempo e constatamos, primeiro, que essas vagas são mais caras do que o usual, segundo, as crianças são extremamente mal atendidas e os equipamentos dessas creches terceirizadas, vamos dizer assim, são muito ruins. Tanto que o nosso relatório indica que o município traga para si a responsabilidade e vá saindo gradativamente desse tipo de política, de contratar na iniciativa privada.

“É possível, com a visão que tem o atual governo estadual, que tente privatizar o que sobrou, terminar o serviço que o Britto não conseguiu concluir lá atrás.”

Para Martins, há muitas semelhanças entre o acordo de agora e aquele firmado por Britto | Foto: Joana Berwanger/Sul21
Para Martins, há muitas semelhanças entre o acordo de agora e aquele firmado por Britto | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – O senhor disse que esse acordo é muito parecido com o que foi feito pelo governo Britto em 1998. Numa comparação entre os dois, a atual renegociação seria ainda mais prejudicial ao Estado?

Martins – Estão em páreo duro. Num determinado aspecto, a gente pode dizer que sim, de 98 a 2015, passados esses 17 anos e com tudo isso que eu falei, dá pra ter muito claro que a gente seguir o mesmo rumo, é o buraco. Não tenha dúvida disso. Quem conhece, quem estuda um pouco mais, quem tem uma honestidade intelectual em torno do tema, não tem compromisso com o rentismo, com o sistema financeiro, tem essa conclusão. Olha, seguir nesse rumo é o buraco. Esse acordo dá um fôlego financeiro para o Estado, ele não resolve o problema, ele, digamos assim, viabiliza essa gestão do Sartori, de alguma maneira, até junho de 2018. Depois, ele tem seis meses de fim de governo para sabe-se lá o que vai acontecer. Ele está pegando o que deram. Vai entrar outro governo e o problema é do outro. Ele está com discurso falso, dizendo que está procurando aprovar medidas estruturais para o Estado sair da crise. Não é verdade, não tem isso. É mais discurso e menos efetividade, então eu diria o seguinte: sobre esse aspecto, é pior, porque hoje está muito claro que seguir nessa trilha só aprofunda as dificuldades financeiras do Estado.

O que se fez em 98 foi muito grave, ele entregou patrimônio público, limitou muito a capacidade do Estado de intervir na economia e promover o crescimento econômico e, portanto, o bem estar social. Na semana passada, quando o atual secretário do Planejamento foi depor na Comissão de Finanças, apresentando a LDO, ele disse uma coisa que me chamou muito a atenção: ‘o RS tem a maior dívida em relação a sua receita de todos os Estados na nação’ e, é verdade. Se você considerar, a dívida consolidada líquida, em relação à receita corrente líquida, a razão é de 2,17, ou seja, deve mais de dois orçamentos anuais.

A média dos outros Estados é 1,6. Ele disse que: ‘nós chegamos nessa condição, porque o Rio Grande do Sul implantou o bem estar social primeiro.’ Ora, primeiro que a gente não completou o Estado de bem estar social. Segundo, que a afirmação me leva a crer com segurança que esse governo abre mão de buscar, de obter o bem estar social. Se não for essa a função do Estado, qual é? O que sobra? É garantir o rentismo, que é o que está acontecendo. O Estado tem uma opção de classe, o resto é balela, o resto é falsear o que tem sido o Estado em si. A entrega do patrimônio se encaminha para completar o que o governo Britto fez. E aí: ou a sociedade se dá conta disso e faz a resistência, ou então não vai sobrar nada.

“Ele está com discurso falso, dizendo que está procurando aprovar medidas estruturais para o Estado sair da crise. Não é verdade, não tem isso.”

Sul21 – O senhor disse que essa dívida já está paga, então qual seria a solução para colocar um fim nessa discussão? Seria a auditoria da dívida?

Martins – Nós temos dito muito isso. Duas coisas: uma é a sociedade se empoderar, ou seja, se dar conta e fazer a pressão política necessária para suspender essa sistemática que está nesses contratos. Uma coisa possível, que ajuda o empoderamento, é a auditoria, porque ali você faz um exame profundo do que aconteceu, verifica as causas do endividamento, expurga dali o que tem de irregularidade e verifica então a legalidade ou não da dívida constituída. A Constituição Federal tem um dispositivo que mandava fazer uma auditoria da dívida externa. Essa auditoria nunca foi feita. O Congresso Nacional chegou a fazer uma comissão mista e fez uma avaliação que não foi concluída, mas na avaliação que foi feita, lá em 99, constatou-se que a nossa dívida externa já tinha um crédito de R$ 13 bilhões da dívida que existia, que, na verdade, não é dívida, é crédito que a gente tinha pago a mais. O que aconteceu com esse relatório? O então presidente do Senado, Nelson Carneiro, mandou arquivar o processo.

24/06/2016 - PORTO ALEGRE, RS - Entrevista com Josué Martins. Foto: Joana Berwanger/Sul21
erspectivas para o Estado não são positivas, segundo analista | Foto: Joana Berwanger/Sul21

Sul21 – Não há um interesse em se fazer uma auditoria, ao contrário do que foi feito no Equador pelo presidente Rafael Correa, apesar da resistência?

Martins – Você vai contrariar os interesses dos mais poderosos na nossa sociedade se fizer isso aqui. Lá atrás, se voltou atrás e arquivou. Agora, neste ano, havia uma emenda na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) da União para 2017, que a gente previa uma auditoria da dívida, mas essa emenda foi vetada pela Dilma e foi mantida pelo atual Congresso. A Dilma vetou lá atrás. Mudou o governante, entrou o Temer, mas o grande interesse permanece. Há uma linha de continuidade em relação aos grandes interesses dominantes. Aqui, no Rio Grande do Sul, havia uma emenda para fazer uma auditoria na dívida do Estado, na LDO que estava em discussão nesta semana. Na quinta-feira (23), foi votado na comissão e a emenda foi afastada. Ela era do vice-presidente da comissão, o Luís Augusto Lara. Tinha duas medidas importantes do Lara: essa para fazer a auditoria da dívida e outra auditoria da renúncia fiscal do Estado, que é aquilo que o empresariado deixa de pagar em impostos, o que não é pouca coisa.

Os conflitos vão aumentar. A pressão social vai aumentar. Esse é um dos papéis que a gente tenta cumprir aqui na auditoria cidadã da dívida e no Sindicato de Auditores do Tribunal de Contas, é ajudar a sociedade a apontar seus esforços no rumo certo para resolver os seus problemas. Quando a gente diz que o problema maior é financeiro e não fiscal, o que isso quer dizer? É de dívida e não de orçamento primário do Estado, receita e despesas, a gente está dizendo que o grande enfrentamento que tem que ser feito é em relação ao sistema financeiro. É em relação aos rentistas, que não produzem nada e que não têm tido um papel importante no sentido de ajudar a produzir.

Feita a auditoria da dívida lá no Equador, constatou-se que a dívida em títulos do Equador já estava quase toda paga, praticamente paga. E como é que faz isso: com uma série de relatórios, de exames, você faz, documenta, mostra. A auditoria serve para isso, para provar. É um documento. Nisso, o Rafael Correa disse que, se declarasse toda a dívida nula, já teria problema político. Declarar toda nula não dá. Mas eu vou chamar os detentores dos títulos da dívida e vou pagar os 30% do valor dos títulos, 98% dos detentores aceitaram esse negócio. Eles sabiam que estavam pagos. Os restantes estão até hoje discutindo na Justiça.

Esta matéria pertence ao SUL21.