Folha Vitória: “Reforma na previdência destrói direito à aposentadoria, afirma especialista”

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Principal cotado para assumir a presidência da Câmara dos Deputados mais uma vez, Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirma que a reforma da previdência será votada ainda neste primeiro semestre de 2017, assim como as mudanças na legislação trabalhista.

De acordo com o deputado, que promete pela Câmara corrigir possíveis excessos do projeto apresentado pelo governo federal, a medida é necessária para a retomada do crescimento econômico.

Todavia, nem todos estão de acordo com a reforma. Principais aliados de Michel Temer (PMDB) já teriam avisado ao presidente que do jeito que está, a proposta não passa, principalmente por conta de resistências em relação à idade mínima e às regras de transição.

Para falar sobre a reforma, o Folha Vitória entrevista a auditora aposentada da Receita Federal, Maria Lucia Fattorelli – fundadora do movimento nacional Auditoria Cidadã da Dívida.

Convidada por um partido da Grécia para o comitê de auditoria da dívida grega junto a outros renomados 30 especialistas internacionais, Fattorelli defende que o verdadeiro motivo de o governo apresentar a reforma tem origem num esquema controlado por bancos e grandes empresas no que diz respeito ao pagamento dos juros da dívida brasileira.

Assim como outros especialistas em finanças, ela também defende que não há déficit no sistema previdenciário e sim uma maquiagem governamental dos números para que o projeto ganhe respaldo popular. Confira:

Folha Vitória: Em sua opinião, a reforma é necessária? Por quê?
Maria Fattorelli: Da maneira como proposta pela PEC 287, essa não é uma reforma, mas uma contrarreforma. Devemos buscar reformar as coisas para aprimora-las, não para destruí-las. A PEC 287 é um abuso, e está sendo apresentada à população mediante falsa campanha de mídia, paga pelo governo com recursos públicos, para defender opinião contrária aos interesses da população, que arca com essa conta sob todas as formas. Não existe o alegado “déficit”. Deveríamos estar discutindo uma reforma para melhorar as condições dos aposentados do regime geral e beneficiários da Previdência Social. E os recursos para garantir tudo isso já existem e são desviados para o pagamento de juros da dívida por meio da DRU (Desvinculação de Receitas da União), das benesses concedidas por meio de desonerações, anistias e falta de combate à sonegação de contribuições devidas à seguridade social. As contas da Seguridade Social também poderiam estar abundantemente melhores se os 12 milhões de brasileiros e brasileiras desempregados e 64 milhões de desocupados tivessem sendo respeitados em seu direito ao trabalho.Assim, a reforma que precisamos é outra. A PEC 287 é o avesso do que o país precisa.

FV: A auditoria cidadã da dívida pública defende que não há déficit. Seria uma maquiagem governamental? Com que finalidade?
MF: O propagandeado “déficit da previdência” é uma farsa. A conta feita para mostrar o “déficit” é uma conta distorcida. A Previdência Social é um dos tripés da Seguridade Social, juntamente com a Saúde e Assistência Social, e foi uma das principais conquistas da Constituição Federal de 1988. Ao mesmo tempo em que os constituintes criaram esse importante tripé, estabeleceram também as fontes de receitas – as contribuições sociais – que são pagas por todos os setores, ou seja: empresas contribuem sobre o lucro (CSLL) e pagam a parte patronal da contribuição sobre a folha de salários; trabalhadores contribuem sobre seus salários; e toda a sociedade contribui por meio da contribuição embutida em tudo o que adquire (Cofins). Além dessas, há contribuições sobre importação de bens e serviços, receitas provenientes de concursos e prognósticos e outras previstas em lei. A seguridade social tem sido altamente superavitária. Nos últimos 6 anos, a sobra de recursos na Seguridade Social foi de R$ 55,1 bilhões em 2010; R$ 76,1 bilhões em 2011; R$ 83,3 bilhões em 2012; R$ 78,2 bilhões em 2013; R$ 53,9 bilhões em 2014, e R$11,2 bilhões em 2015, conforme dados oficiais segregados pela ANFIP. O reiterado superávit da Seguridade Social deveria estar fomentando debates sobre a melhoria da Previdência, da Assistência e da Saúde dos brasileiros. Isso não ocorre devido à prioridade para o pagamento da dívida mediante a Desvinculação das Receitas (que foi aumentada para 30% em 2016) desses setores para o cumprimento das metas de superávit primário, ou seja, a reserva de recursos para o pagamento da dívida pública. O falacioso déficit é encontrado quando se compara apenas a arrecadação da folha (deixando de lado todas as demais contribuições sociais) com a totalidade dos gastos com a Previdência, fazendo-se um desmembramento que não tem amparo na Constituição e nem possui lógica, pois são os trabalhadores os maiores contribuintes da COFINS. A simples existência do mecanismo da DRU já comprova que sobram recursos na Seguridade Social. Se faltasse recurso, não haveria nada que desvincular, evidentemente.

FV: A previdência está subordinada à PEC do teto? Em que isso implica?
MF: O objetivo da PEC 55 é aumentar a destinação de recursos para o sistema financeiro. Para isso, ela estabelece um teto para todas as despesas primárias por 20 anos! Somente para as despesas primárias! Poucas pessoas sabem que quando se fala em despesa primária estamos nos referindo a todas as despesas de manutenção do Estado (poderes Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) e todas as despesas com os serviços públicos prestados à população. A PEC 55 deixa fora do teto as despesas não-primárias que são justamente as despesas financeiras. Dessa forma, tudo o que o país vier a crescer, arrecadar e auferir em termos patrimoniais ou econômicos somente poderá destinar-se aos gastos financeiros. Isso é um absurdo, pois os gastos que mais precisam ser disciplinados no Brasil são os abusivos gastos com juros, juros sobre juros, swaps cambiais ilegais, remuneração de sobra de caixa dos bancos (disfarçada de operações compromissadas) e demais mecanismos que têm gerado a chamada dívida pública ao longo dos anos. O gráfico do orçamento anual da União, elaborado com dados oficiais extraídos do SIAFI, mostra que, depois dos gastos com a dívida, que em 2015, consumiram 42,43% dos recursos, o maior volume de recursos está na Previdência Social, daí o grande interesse do setor financeiro nesse setor. É infame incluir, no texto da Constituição Federal, o privilégio dos bancos, que são o setor mais lucrativo do país. Adicionalmente, essa PEC deixa fora do teto a garantia de recursos para aumento de capital de “empresas estatais não dependentes”.  Tais empresas são as estatais recém criadas para emitir debêntures, em esquema ilegal que o PLS 204/2016 visa “legalizar”. Assim, a PEC 55 privilegia a destinação de recursos para esse esquema financeiro ilegal enquanto sacrifica a saúde, a educação, a assistência, a segurança e todos os demais gastos e investimentos sociais. A PEC 55 parte de diagnóstico errado e propõe caminho contrário ao que deveria ser feito no país. É por isso que importantes entidades se manifestaram publicamente, por meio de Notas contrárias a essa PEC, como a CNBB, o COFECON, entidades de magistrados e carreiras do Judiciário, institutos de pesquisa etc. A Auditoria Cidadã da Dívida protocolou denúncia em junto ao Senado Federal, requerendo a sustação de sua tramitação a fim de que fossem verificadas as reais consequências e graves danos que essa PEC significará para o país, antes de colocar regra tão abrangente no texto constitucional, e para valer por 20 anos! Infelizmente o Senado ficou completamente surdo a todas essas manifestações, e no dia 29/novembro/2016, a violenta força policial contra estudantes que vieram de todo o país para se manifestar contra essa PEC dos Banqueiros mostrou que grandes interesses estão por trás dessa PEC. A história há de mostrar.

FV: O direito à aposentadoria seria restringido caso a reforma seja aprovada?
MF: Sim, será restringido sob vários aspectos. A PEC 287/2016 destrói o direito à aposentadoria para milhões de brasileiros, na medida em que aumenta a idade de fruição desse direito – tanto para homens como para mulheres – para 65 anos de idade. Grande parte da população brasileira, principalmente a população mais pobre, e a que trabalha em condições piores, não chega nem aos sessenta anos. Essa parcela significativa da população irá contribuir a vida toda e não chegará a usufruir de sua aposentadoria, embora tenha pago por ela. Deixam de existir as aposentadorias especiais para servidores sujeitos a atividades de risco, bem como para professores de ensino infantil, fundamental e médio que se aposentavam com menor tempo de serviço. Sempre que a expectativa de vida aumentar, a idade mínima para a aposentadoria também aumentará, ou seja, o direito à aposentadoria pode ser sucessivamente adiado, a partir de mero indicativo estatístico. Essa PEC submete ao limite do regime geral (R$5.531,31 em 2017) também os servidores públicos, apesar de historicamente contribuírem de forma diferenciada (sobre o salário bruto e não apenas até o limite do teto do regime geral), e não possuírem FGTS. Acaba de vez com a paridade entre ativos e aposentados ao vincular os reajustes dos regimes próprios de previdência às mesmas regras do regime geral. Adicionalmente, a PEC 287 elimina as atuais regras que combinavam tempo de contribuição e idade (fórmulas 85/95), e passa a exigir que todos os trabalhadores tenham contribuído durante 49 anos para que possam se aposentar com seus proventos integrais, limitado ao teto do regime geral. A PEC 287 também impede que uma pessoa que já recebe sua aposentadoria venha a receber a pensão de seu companheiro falecido, ainda que esse tenha contribuído para isso durante toda a sua vida. Isso é considerado “acúmulo de benefícios”, apesar de ter havido sempre o acúmulo de contribuições… Uma das alterações mais cruéis é o adiamento, para 70 anos de idade, do direito ao recebimento do benefício assistencial (BPC) por pessoas de renda familiar per capita inferior a ¼ do salario mínimo e que sejam deficientes. A defesa dos interesses financeiros privados é a principal característica dessa PEC 287, na medida em que ela empurra as pessoas para os fundos de previdência privada e insere, no texto constitucional, mecanismos de proteção dos recursos vinculados aos fundos previdenciários.

FV: Que soluções a senhora aponta para resolver o suposto problema de equação entre o número de contribuintes e beneficiários?
MF: Se não faltar emprego para a população, não faltarão recursos para garantir aposentadoria digna aos que já cumpriram o período laboral. Adicionalmente, existem várias outras fontes de financiamento do sistema de Seguridade Social público e solidário que estão sendo desviados (por meio da DRU), ou deixados de ser arrecadados (por meio de benesses tributárias, desonerações, anistias e falta de combate à sonegação fiscal). O cerne das alterações que vem sendo feita ao longo dos anos é a modificação de um modelo de solidariedade – no qual a garantia de emprego e boa remuneração aos jovens garantiria sempre boa remuneração aos aposentados – vem dando lugar a um modelo submetido às regras do mercado e sem qualquer segurança futura, como temos visto atualmente na Europa e Estados Unidos. Planos de previdência privada investiram em derivativos sem lastro e simplesmente quebraram. O mais grave é que os planos no Brasil também podem investir em derivativos (art. 44 da Resolução do CMN no 3792/2009).

FV: Muito se fala que uma das justificativas para o suposto déficit e a necessidade da reforma é o aumento da expectativa de vida do brasileiro, o que não necessariamente implica numa vida saudável. O que acha dos riscos sociais de se aposentar tão tarde?
MF: Na prática, o adiamento do direito à aposentadoria para 65 anos ou mais significa a supressão desse direito para grande parte da população, como mencionei anteriormente. E o mais grave é que o direito à aposentadoria não é simplesmente concedido pelo Estado. Os trabalhadores contribuem durante todo o seu período laboral. Adicionalmente, o adiamento da aposentadoria agravará a abertura de vagas para os jovens, prejudicando o surgimento de oportunidades para as novas gerações e a renovação da força de trabalho. Todos perdem.

FV: Vê prejuízo maior às classes menos favorecidas, que não terão dinheiro para pagar previdência privada?
MF: Os mais pobres são sempre os mais prejudicados. Quanto mais pobre, mais cedo a pessoa começa a trabalhar. Quanto mais pobre, maior a sua carga tributária, segundo estudos do IPEA, que comprovam que essa carga seja a 59% para quem ganha até 2 salários mínimos e destina toda a sua renda ao consumo. A previdência privada não significa garantia alguma, pois ela segue as regras de mercado e pode simplesmente quebrar e desaparecer. O mercado financeiro avança seus privilégios com essa reforma, conforme consta de sua exposição de motivos: “a proposta prevê a edição de uma lei que estabelecerá regras gerais de organização e funcionamento dos RPPS em âmbito nacional, voltadas a garantir a responsabilidade na gestão previdenciária, criando mecanismos de proteção dos recursos vinculados aos fundos previdenciários.” Esses fundos são administrados por instituições financeiras, que realizam aplicações em papéis de alto risco, trazendo prejuízos elevados a esses fundos. Pelo visto, a PEC 287 irá transferir para as contas públicas o ônus de cobrir essas aventuras do mercado financeiro. Trata-se de mecanismo altamente temerário, haja vista a imprevisibilidade quanto ao volume de prejuízos que podem ser gerados por esses fundos. No primeiro semestre de 2016, por exemplo, o prejuízo de fundos de pensão alcançou R$ 84 bilhões. Estamos, portanto, diante de uma grande infâmia: propaganda enganosa paga com dinheiro do trabalhador para incentivar reforma que irá prejudica-lo em seu direito à aposentadoria e, ainda por cima, induzi-lo a investir em fundos privados de risco, e que esses sim, têm acumulado déficits de dezenas de bilhões de reais.

FV: Sindicalistas prometem pressionar parlamentares para que haja mudança na reforma apresentada pelo governo federal. Acredita que essa mobilização surta efeito?
MF: Essa mobilização está crescendo a cada dia, com diversos fóruns se organizando em âmbito federal e nos estados. O grande desafio é conciliar todas essas forças e construir um grande movimento nacional contra essa PEC 287, que na prática favorece ainda mais ao setor financeiro, que já é o mais lucrativo do país.

FV: O TCU anunciou recentemente que fará no primeiro semestre uma fiscalização na Previdência Social para verificar a real situação do sistema. Qual você acha que será o posicionamento do órgão?
MF: A auditoria das contas da Seguridade Social deveria ser uma rotina, assim como a auditoria da dívida pública. A sociedade não aceita mais arcar com carga tributária tão elevada e não ter o retorno em serviços públicos de qualidade, especialmente considerando que o Brasil é um dos países mais ricos do mundo.

FV: Como a Auditoria Cidadã da Dívida tem atuado em relação à reforma?
MF: A Auditoria Cidadã da Dívida é uma associação sem fins lucrativos que conta com o apoio de importantes entidades da sociedade civil e de voluntários em vários estados do País, organizados em núcleos que se dedicam à investigação da dívida federal, dos estados e municípios. Nesses 15 anos de investigações, temos demonstrado a existência de um verdadeiro Sistema da Dívida, isto é, a utilização do endividamento público às avessas, de tal modo que ao invés de representar aporte de recursos tem sido um mecanismo de contínuo desvio de recursos públicos para o setor financeiro privado. Essa contrarreforma da Previdência é mais um mecanismo que faz esse desvio de recursos para o setor financeiro, por meio da DRU e exigência de recursos para o pagamento de juros sobre uma dívida que nunca foi auditada, como manda a Constituição. Nosso papel é mostrar a relevância desse endividamento e popularizar esse debate, pois quem está pagando a conta tem, no mínimo, o direito de saber da existência do Sistema da Dívida

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