Transcrição da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 59/2004, impetrada pela OAB, que pleiteia a Auditoria da Dívida

Compartilhe:

A seguir, a íntegra da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) que o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil deu entrada no Supremo Tribunal Federal:

“O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, serviço público dotado de personalidade jurídica, regulamentado pela Lei 8906, com sede no Edifício da Ordem dos Advogados, Setor de Autarquias Sul, Quadra 05, desta Capital, por meio de seu Presidente (doc. 01), vem, nos termos do artigo 103, VII, da Constituição Federal, deduzir arguição de descumprimento de preceito fundamental, em face do descumprimento, pelo Congresso Nacional, do artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal, cuja redação é a seguinte:

“Art. 26 No prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.

§ 1º A Comissão terá a força legal de Comissão parlamentar de inquérito para os fins de requisição e convocação, e atuará com o auxílio do Tribunal de Constas da União.

§ 2º Apurada irregularidade, o Congresso Nacional proporá ao Poder Executivo a declaração de nulidade do ato e encaminhará o processo ao Ministério Público Federal, que formalizará, no prazo de sessenta dias, a ação cabível.”

Do preceito fundamental violado

O artigo 26 do ADCT, na medida em que se imbrica com dispositivos que cuidam da soberania do país, da dignidade da pessoa humana e outros aspectos inseridos na Constituição Federal, configura-se como preceito fundamental e enseja a propositura da presente demanda.

Trata o comando normativo do endividamento externo brasileiro existente até a data em que entrou em vigor a Constituição Federal de 1988.

Pretendeu o dispositivo fosse instaurada comissão, com força de CPI, para examinar, na íntegra e sob todos os aspectos, o endividamento pátrio e para propor, apurada irregularidade, a declaração de nulidade do ato por meio do qual houve aumento da dívida externa.

Do artigo, pois, decorreria análise da dívida e seu eventual repúdio.

A natureza de preceito fundamental do comando normativo decorre do grau do endividamento externo pátrio, da possibilidade de seu repúdio, das repercussões desse endividamento e repúdio na soberania do Brasil, na dignidade da pessoa humana e na pretensão de erradicação da pobreza (artigos 1o e 3o da C.F.) e ainda da possibilidade de aplicação de sanções aos responsáveis pelo endividamento irregular, preservando-se em seu aspecto mais amplo o sentido de república (artigo 1o).

O endividamento pátrio penhorou o futuro da nação. Restringiu-lhe a soberania, atingiu a dignidade da pessoa humana, dos brasileiros, e ainda impediu fossem realizadas ações capazes de erradicar a pobreza.

A dívida externa brasileira total do ano de 1970 a 1991 apresentou, segundo Vânia Lomônaco Bastos, professora do Departamento de Economia da Universidade de Brasília, in “Para entender as Economias do Terceiro Mundo”, editora UnB, 2a edição, pág. 82, a seguinte evolução:

Dívida externa total
1970 – 5,1
1980 – 71,0
1991 – 122,8

Em US$ bilhões

Para que se possa aquilatar o dano que representou para o país tal endividamento, atente-se para o quanto restaram comprometidas as receitas de exportação para fins de pagamento de juros e amortização da dívida no período. Segundo a autora citada, o percentual comprometido, ano a ano, foi o seguinte:

Anos – Amortização + juros/receita das exportações dos bens

1968 – 33,4
1969 – 29,2
1970 – 33,1
1971 – 39,7
1972 – 39,1
1973 – 35,3
1974 – 32,5
1975 – 42,3
1976 – 47,4
1978 – 63,4
1979 – 69,3
1980 – 56,2
1981 – 66,2
1982 – 90,7
1983 – 75,0
1984 – 61,7
1985 – 70,8
1986 – 93,4
1987 – 86,2
1988 – 79,7
1989 – 70,3
1990 – 59,1
1991 – 52,0
1992 – 43,5

O brutal endividamento levou a estagnação econômica da década de 80, a década perdida. São lições de Hélio Jaguaribe, Ex-professor das Universidades de Harvard, Stanford e do MIT, in “Alternativas do Brasil”, editora José Olympio, 3a edição, 1990, págs 93 e 94:

“A despeito de sua excepcional propensão para um rápido crescimento, a economia brasileira entra em estagnação, de um modo geral na década de 1980. (…)
Em termos per capita, que exprimem o enriquecimento ou empobrecimento médios da população, os anos 80 situam o Brasil, até 1988, em posição inferior à que atingira em 1980. (…)

Por que entrou em estagnação uma economia tão dinâmica quanto a brasileira ? As circunstâncias condicionadoras desse resultado são diversas, avultando o peso da dívida externa, cujo serviço foi exorbitantemente majorado por um coeficiente de 400%, de 1979 a 1983, em virtude de decisões unilaterais do Sistema Federal de Reserva, dos Estados Unidos.”

O quadro de estagnação, por sua vez, determinou significativa deterioração do incremento do salário mínimo, segundo dados de Werner Baer, mestre e doutor por Harvard, professor das universidades de Harvard, Yale e Vanderbilt, atualmente professor titular da Universidade de Illinois, in “A economia brasileira”, editora Nobel, 2a edição, pág. 489:

Ano – Salário mínimo real, taxa de crescimento
1980 – 2,5 %
1981 – -1,90 %
1982 – 0,70 %
1983 – -10,20 %
1984 – -8,80 %
1985 – -10,10 %
1986 – -0,40 %
1987 – -18,50 %
1988 – 0,06 %

A dívida externa comprometeu o crescimento brasileiro, permitiu a perpetuação da miséria e atingiu a própria soberania do país.

A análise integral da dívida, com seu eventual repúdio, e a responsabilização daqueles que a promoveram irregularmente, determinadas pelo artigo 26 do ADCT, ante sua vinculação com os princípios da soberania, da dignidade da pessoa humana, com o objetivo de erradicação da pobreza e o próprio princípio da coisa pública, com a obrigatoriedade dele decorrente de sua boa gestão, conformam o preceito apontando como violado em preceito fundamental, cujo descumprimento autoriza o ajuizamento de argüição de descumprimento. O dispositivo, dada a magnitude da dívida, se vincula ao fundamento constitucional da soberania e da dignidade da pessoa humana (art. 1o , I da C.F.), do objetivo fundamental da erradicação da pobreza (art. 3o, III da C.F.) e também do próprio princípio republicano em sentido de adequado trato da coisa pública pelos agentes do Estado (art. 1o da C.F.). A relevância instrumental do preceito, apontado como violado por inação, no âmbito da soberania, da dignidade da pessoa humana e da erradicação da pobreza, com a possibilidade de repúdio da dívida espúria e resgate da soberania, com a promoção de atos tendentes à erradicação da pobreza com os recursos que sobrarem de tal repúdio, dão-lhe feição de preceito fundamental.

Em sendo assim, resta patente o cabimento da presente demanda, ante a lição de Alexandre de Morais, in “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99”, editora Jurídico Atlas, pág. 17:

“Os preceitos fundamentais englobam os direitos e garantias fundamentais da Constituição, bem como os fundamentos e objetivos fundamentais da República, de forma a consagrar maior efetividade às previsões constitucionais.”

De fato, na medida em que o artigo 26 do ADCT integra-se aos comandos constitucionais dos artigos 1o e 3o, consubstanciando-se como um meio para serem atingidos aqueles fins; na medida em que tais preceitos são fundamentais (como também entende Daniel Sarmento: “entre os preceitos fundamentais situam-se, sem sombra de dúvidas, os direitos fundamentais, as demais cláusulas pétreas inscritas no art. 60, § 4o , da Constituição da República, bem como os princípios fundamentais da República, previstos nos arts. 1o e 5o do Texto Magnos” in “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99”, editora Jurídico Atlas, pág. 91); na medida em que a dívida externa pátria consubstanciou e consubstancia empecilho concreto e real ao pleno desenvolvimento da soberania, da dignidade da pessoa humana e da erradicação da pobreza, resta evidente, patente, que o descumprimento do dispositivo permite a dedução da presente ação. A propósito, merece citação lição do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, in “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99”, editora Jurídico Atlas, pág. 129:

“… a lesão a preceito fundamental não se configurará apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, tal como assente na ordem constitucional, mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado específico a esse princípio…”

O ato questionado e sua prova

O ato questionado na presente ação consiste no ato omissivo do Congresso Nacional em promover, através de comissão mista, exame analítico e pericial, sob todos os aspectos, dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro até a edição da Constituição de 1988, apurando eventual irregularidade e propondo ao Poder Executivo a declaração de sua nulidade, com encaminhamento ao Ministério Público da notícia de eventuais vícios.

Como demonstram documentos em anexo, o Congresso Nacional jamais chegou a concluir, por ter cumprido na íntegra o mandamento constitucional do artigo 26 do ADCT, qualquer uma das comissões mistas que instalou para dar plena eficácia ao referido comando da Lei Fundamental.

A Comissão que se iniciou nos idos de 1989 (doc. 02), apesar de ter tido seu relatório aprovado em plenário, não procedeu ao exame analítico e pericial sob todos os aspectos de todos os atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro.

Com efeito, do teor do relatório aprovado (doc. 03), da lavra do Senador Severo Gomes, percebe-se que não houve em momento algum tal exame. O relatório, destaque-se, se diz expressamente parcial e se limitou à análise exclusivamente do ponto de vista jurídico da contratação da dívida, como assevera:

“a Comissão decidiu, na reunião que aprovou o roteiro preliminar, manifestar-se através de relatórios parciais ao término do exame de cada um dos fatos que são objeto do inquérito. Essa é a razão de ser relatório sob os aspectos legais da contratação.”

A aprovação de tal relatório aliás, na mesma sessão, em 04 de outubro de 1989, de requerimento para o fim de que fosse criada comissão mista temporária com o mesmo objeto, comprova que o Congresso não cumpriu aquilo que fora determinado pela Constituição.

Por sua vez, a tal comissão mista temporária (doc. 04) concebida em 1989 em face do malogro da comissão anterior, restou encerrada por decurso de prazo, sem apresentação de relatório final, merecendo arquivamento em 13 de março de 1991 (doc. 05).

Por derradeiro, Comissão Parlamentar Mista de Inquérito com o mesmo objeto da anterior, cuja concepção se deu em junho de 1991, foi também arquivada, em 1993, em virtude do término de seu prazo (doc. 06 e 07).

O descumprimento ao citado preceito fundamental da Constituição, pelo Congresso Nacional, autoriza o ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental, segundo lição de André Ramos Tavares, in “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99”, editora Jurídico Atlas, pág. 63, posto que o ato, na espécie omissivo de execução, não precisa ter cunho normativo; verbis:

“Tendo em vista o conceito amplo de ‘descumprimento’ (na Constituição), já abordado anteriormente, vale apenas observar, aqui, qual o objeto admissível para argüição autônoma pela legislação.
Embora pudesse a argüição, em tese, prestar-se ao controle de qualquer ato contrário aos preceitos fundamentais da Constituição, o certo é que houve um redimensionamento legal dessa concepção constitucional extremamente generosa.

Verifica-se, nesta linha de considerações, que a Lei trata de admitir a argüição apenas quando o descumprimento for ‘resultante de ato do Poder Público’.

Nessa expressão, menos lata que aquela desenhada com base no texto puro da Constituição quando trata da argüição, mas mais abrangente que aquela destinada para os casos da ação direta de inconstitucionalidade, incluem-se: os atos normativos estatais e os atos não normativos estatais.

Em outras palavras, a única ressalva é a de que os atos sejam estatais. Nada mais se exige. (…)”

No mesmo sentido, na mesma obra, às págs. 91, Daniel Sarmento também se manifesta:

“Pela própria redação do caput do art. 1o, é possível notar a enorme abrangência da ADPF, que pode ser utilizada não apenas com o objetivo de censurar atos normativos, mas também atos administrativos e até mesmo atos juridicionais, agora sujeitos também ao crivo do controle concentrado de constitucionalidade. As hipóteses são as mais diversas: contratos administrativos, editais de licitação e de concurso, decisões de tribunais de contas, entre inúmeros outros atos estatais.”

Evidenciado que o Congresso Nacional não deu cumprimento ao artigo 26 do ADCT, posto que não procedeu, como manda a Constituição, exame analítico e pericial na íntegra dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro, evidenciado que o ato omissivo impugnado detém a natureza de ato sindicável por meio da presente medida, mostra-se cabível o ajuizamento de argüição de descumprimento de preceito fundamental.

Quanto à subsidiariedade

Cabe destacar a ausência de qualquer outro meio eficaz para o fim de dar cumprimento aos comandos do artigo 26 do ADCT (art. 4o, § 1o da Lei 9.882).

Ações em geral e mandados de segurança esbarram na falta de interesse de agir. Habeas corpus ou data não servem para tanto. Mandado de injunção pressupõe ausência de norma regulamentadora, o que não se debate na espécie. Ação popular tem por escopo anular ato. Ação direta de inconstitucionalidade por omissão exige ato normativo. Ação civil pública requer dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bem e direito artístico, histórico, turístico ou paisagístico e infração à ordem econômica, como assinala Hely Lopes Meirelles, in “Mandado de Segurança”, 25 edição, Malheiros editores, 2003, pág. 161/162: “a ação civil pública, disciplinada pela Lei nº 7347, de 24.7.85, é instrumento processual adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bem e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico e por infrações de ordem econômica (art. 1o ), protegendo, assim, os interesses difusos da sociedade. Não se presta a reparar direitos individuais, nem se destina à reparação de prejuízos causados a particulares pela conduta, comissiva ou omissiva, do réu.”).

Não há outro meio, senão a presente ação, para o fim de dar cumprimento ao preceito fundamental descumprido pela inércia do Congresso Nacional.

Houvesse outro meio, e não há, é certo que ainda assim não deteria ele a marca da eficácia buscada para se dar pleno cumprimento ao preceito fundamental descumprido. Leciona Walter Claudius Rothenburg, in “Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental: Análises à Luz da Lei nº 9.882/99”, editora Jurídico Atlas, pág. 225:

“… a argüição de descumprimento de preceito fundamental não deve substituir outras ações ou “saltar” os recursos judiciais (no sentido de graus de jurisdição), em princípio. Contudo, o caráter subsidiário haverá de ser avaliado em função não apenas da inexistência, mas também da ineficácia de outros meios de controle judicial: o fator “tempo” podendo recomendar “a antecipação de decisões sobre controvérsias constitucionais relevantes” (Gilmar Ferreira Mendes) …”

Seja porque não há outra ação, seja porque não há outra ação eficaz, patenteia-se que a condição restritiva do art. 4o, § 1o da Lei 9.882, não incide na espécie.

Em conclusão

Havendo preceito fundamental descumprido por ato omissivo do Congresso Nacional e não havendo outro meio eficaz para coarctar a violência, resta evidente que o manejo da presente medida mostra-se adequado e cabível, permitindo-se desse modo a dedução de pedido que tenha por escopo afastar o estado de descumprimento.

Pedido

Por todo o exposto, pede o autor seja julgada procedente a presente argüição de descumprimento de preceito fundamental, determinando-se ao Congresso Nacional que promova e ultime, através de comissão mista, exame analítico e pericial integral, sob todos os aspectos, de todos os atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro, cumprindo-se na integralmente as prescrições do artigo 26 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que se vincula com preceitos fundamentais, tais como a soberania e a dignidade da pessoa humana (art. 1o , I da C.F.), a erradicação da pobreza (art. 3o, III da C.F.) e também o próprio princípio republicano, no sentido de adequado trato da coisa pública pelos agentes do Estado.

Requer sejam solicitadas informações ao Presidente do Congresso Nacional, na forma preceituada no artigo 6º da Lei 9882/99, ouvindo-se, em seguida, o Procurador-Geral da República.

Dá à causa o valor de R$ 1.000,00.”

Roberto Antônio Busato
Presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil