Le Monde Diplomatique: A inflação e a dívida pública, por Maria Lucia Fattorelli

Compartilhe:

A inflação e a dívida pública

Maria Lucia Fattorelli[1]

Devido à marca negativa deixada pela inflação galopante dos anos 80 e até início dos anos 90, não foi difícil convencer população, parlamentares e poderes constituídos de que o país necessitava de um “Regime de Metas de Inflação”.

Na realidade, tal regime foi imposto pelo FMI, em ambiente econômico afetado por crises financeiras que abalaram diversas economias no final da década de 90.

A opção do governo brasileiro por recorrer ao FMI em 1998 abriu o caminho para a interferência do Fundo em diversos assuntos internos do país, dentre eles a exigência de que a definição de metas inflacionárias deveria ser uma das principais diretrizes da política monetária brasileira. Colocando em prática o compromisso assumido junto ao Fundo, foi editado o Decreto 3.088, em junho de 1999, estabelecendo a sistemática de “metas de inflação” como diretriz para fixação do regime de política monetária.

Na mesma época, o Banco Central editou a Circular 2.868/99, por meio da qual criou a taxa Selic e, desde então, tem utilizado a referida taxa de juros como instrumento de controle da inflação, forçando sua elevação toda vez que a expectativa de inflação ameaça superar as metas estabelecidas.

Outro instrumento colocado em prática pelo Banco Central para controlar a inflação tem sido o controle do volume de moeda em circulação, realizando as chamadas “operações de mercado aberto”, por meio das quais entrega títulos da dívida pública às instituições financeiras em troca de eventual excesso informado pelos bancos, de moeda nacional ou estrangeira.

No presente artigo, dados oficiais demonstram o equívoco dos dois instrumentos utilizados pelo Banco Central:

1 – A elevação da taxa Selic não ajuda a controlar o tipo de inflação de preços existente no país. Tal medida tem servido para elevar continuamente as já elevadíssimas taxas de juros, impactando no crescimento acelerado da dívida pública, além de prejudicar a distribuição de recursos para todas as áreas do orçamento e impedir investimentos na economia real.

2 – As operações de mercado aberto estão servindo para trocar dólares especulativos que ingressam no país, sem controle, por títulos da dívida pública que pagam os juros mais elevados do mundo. Tal mecanismo tem provocado mega prejuízos operacionais ao Banco Central – R$ 147 bilhões em 2009 e R$ 50 bilhões em 2010 – o que representa significativo dano ao patrimônio público.

É evidente que toda a sociedade apóia um controle da inflação, porém, os instrumentos que vem sendo utilizados pelo Banco Central não estão de fato combatendo a inflação, mas se prestam a promover brutal transferência brutal de recursos públicos para o setor financeiro privado – nacional e internacional – a elevadíssimo custo interno tanto financeiro como social, e por isso precisam ser revistos.

A elevação da Taxa Selic não tem servido para controlar a inflação

A teoria ortodoxa que defende a elevação da taxa de juros como remédio para controlar a inflação se aplicaria somente quando a inflação decorresse de excesso de demanda. Em tese, a elevação dos juros tentaria dificultar o consumo e frear a demanda, buscando conter a elevação de preços provocada pelo excesso de procura dos produtos e serviços.

Essa teoria não é unânime, pois mesmo diante de processo inflacionário causado por excesso de demanda, a solução recomendável não seria a elevação dos juros, pois essa elevação provoca aumento dos custos financeiros das empresas, que são repassados aos preços dos produtos que ficam sujeitos a sucessivos aumentos. Além disso, juros altos provocam a queda dos investimentos de longo prazo em novas plantas produtivas, o que reduz a oferta futura de produtos e serviços, dando margem a leituras equivocadas de que a demanda estaria mais alta que a oferta, o que justificaria novas elevações de juros em um círculo vicioso e danoso para a economia.

No Brasil, ao contrário do que alegam governo e rentistas, a inflação atual não á causada por suposto excesso de demanda, mas tem sido provocada por contínuos e elevados reajustes dos preços de alimentos e preços administrados, tais como combustíveis, energia elétrica, telefonia, transporte público, serviços bancários.[2] Esses itens afetam todos os preços de bens e serviços vendidos no país, pois fazem parte da composição de seus custos. Adicionalmente, o preço dos alimentos e demais preços administrados não são reduzidos quando o governo promove uma elevação da taxa de juros Selic.

Para combater esse tipo de inflação – denominada inflação de preços – o remédio adequado é o efetivo controle de tais preços, o que poderia ser feito pelo governo sem grandes dificuldades, já que estamos falando justamente de preços administrados – que em tese devem ser administrados pelo poder público.

O problema é que a maioria desses setores passou pelo processo de privatizações – cuja justificativa, na década de 90, era o pagamento da dívida externa. Em mãos privadas, a reivindicação de lucros cada vez maiores leva ao fornecimento de serviços cada vez mais caros. É o caso, por exemplo, dos serviços de telefonia no Brasil, que após a privatizações passaram a ser os mais caros do mundo, ao mesmo tempo em que são os campeões de reclamações dos consumidores. As empresas de telefonia auferem lucros espantosos anualmente e não realizam os investimentos necessários. O mesmo ocorre com empresas de energia elétrica e transportes públicos, serviços altamente lucrativos, devido ao alto preço das tarifas cobradas. A elevação contínua desses preços tem pesado no cômputo da inflação, e não sofrem redução alguma quando os juros sobem.

O preço dos combustíveis então nem se fala: exerce influência direta na composição de todos os preços e serviços vendidos no país. O preço da gasolina praticado no Brasil é um dos mais elevados do mundo, apesar de nossa auto-suficiência, das recentes descobertas de imensas jazidas e significativos lucros da Petrobrás. Recentemente o preço do litro chegou a superar a cifra de R$ 3,00 em diversas cidades, provocando onda de protestos, ao mesmo tempo em que a Petrobrás anunciava lucro recorde de R$ 11 bilhões apenas no primeiro trimestre de 2011. A parcela dos lucros correspondentes às ações da Petrobrás vendidas ao setor privado é distribuída sob a forma de dividendos, mas a parcela do lucro correspondente ao capital estatal é destinada diretamente ao pagamento da dívida pública. Isso porque a Lei 9.530 trata do privilégio na destinação de recursos para o pagamento da dívida, determinando que todos os lucros das estatais destinados ao governo, superávits financeiros e demais disponibilidades de estatais, fundos e autarquias têm esta finalidade.

Da forma como regulamentado o “Regime de Metas de Inflação”, toda vez que a inflação ameaçar ultrapassa a meta estabelecida (atualmente em 4,5% ao ano), seu controle tem sido feito por meio da elevação da taxa Selic, desconsiderando-se as verdadeiras causas do aumento de preços no Brasil.

O resultado tem sido o crescimento explosivo da dívida pública, cujo montante supera R$ 2,5 trilhões, e o pagamento de juros e amortizações consumiu 45% dos recursos do orçamento federal em 2010, conforme mostra o gráfico I.

A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Dívida Pública, recentemente concluída na Câmara dos Deputados, comprovou que as altas taxas de juros praticadas no país foram o principal fator responsável pelo contínuo crescimento da dívida pública, apesar dos vultosos pagamentos anuais de juros e amortizações. A CPI comprovou que a dívida pública brasileira não tem contrapartida real em bens ou serviços, mas tem se multiplicado em função de mecanismos e artifícios meramente financeiros, bem como da incidência de “juros sobre juros”, o que configura “anatocismo”, prática considerada ilegal pelo Supremo Tribunal Federal.

Em resumo, as mesmas autoridades monetárias que defendem a elevação das taxas de juros sob a justificativa de controle inflacionário, permitem contínua elevação nos preços administrados, o que é um total contra-senso. Adicionalmente, os órgãos de defesa da livre concorrência não têm conseguido combater adequadamente os cartéis privados que também afetam a formação dos preços.

Gráfico I – ORÇAMENTO GERAL DA UNIÃO – 2010 – Total: R$ 1,414 TRILHÃO

Fonte: SIAFI – Banco de Dados Access p/ download (execução do Orçamento da União) – Disponível em http://www.camara.gov.br/internet/orcament/bd/exe2010mdb.EXE  . Elaboração: Auditoria Cidadã da Dívida

Como são definidas as taxas de juros no Brasil

A recente CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados realizou importante e inédita investigação sobre aspectos do endividamento interno e externo brasileiro, tendo se dedicado também a investigar como são determinadas as taxas de juros Selic, já que os juros são o principal responsável pelo crescimento acelerado da dívida brasileira.

O Banco Central informou à CPI que para estabelecer o patamar das taxas de juros não utiliza fórmulas científicas, mas realiza consultas a “analistas independentes”, em reuniões periódicas. O resultado dessas reuniões constitui o fundamento para a definição da Taxa de Juros Selic pelo COPOM – Comitê de Política Monetária, pois nelas são apresentadas estimativas sobre a evolução futura de variáveis como a inflação, evolução de preços e a taxa de juros.

A CPI requereu ao Banco Central os nomes dos participantes dessas reuniões. A resposta permitiu confirmar o que já se esperava: a imensa maioria dos participantes – cerca de 95% – faz parte do setor financeiro, ou seja, são representantes de bancos, fundos de investimento ou consultores de mercado. Esses são justamente os maiores interessados nas elevadas taxas de juros, que lhes proporcionam elevados lucros, o que configura evidente conflito de interesses.

O mais grave é que muitos desses participantes das reuniões do Banco Central são também os mesmos analistas consultados por grandes meios de comunicação, que passam a alardear temores relacionados ao temerário crescimento da inflação e a necessidade de combater tal previsão, recomendando sempre a elevação das taxas de juros como se fosse o único remédio eficaz para frear o retorno inflacionário.

Em poucos dias de governo, ao mesmo tempo em que Dilma procedeu contingenciamento recorde de R$ 50 bilhões para fazer “ajuste fiscal”, subiu a taxa Selic 3 vezes, sob a justificativa de que tal medida era necessário para reduzir o ritmo da atividade econômica, reduzir a demanda por produtos e serviços e controlara a inflação.

Elevação da Taxa SELIC
Em 19/01/2011, passou de 10,75% para 11,25%
Em 02/03/2011, novo aumento para 11,75%
Em 20/04/2011, aumentou para 12% !

Nem mesmo o Banco Central conseguiu apresentar à CPI justificativas técnicas ou minimamente razoáveis para explicar o elevado patamar dos juros praticados historicamente no Brasil. O discurso de que é preciso elevar ainda mais os juros para combater inflação visa perpetuar a concentração de renda no Brasil – 7ª. Economia mundial – que ocupa a vergonhosa posição de 8º. país mais injusto do mundo, segundo o Índice de Gini, e é o 73º. No ranking de respeito aos direitos humanos.

As operações de mercado aberto realizadas pelo Banco Central não estão servindo para combater a inflação?

Desde a aprovação da Lei de Responsabilidade Fiscal – LRF, o Banco Central ficou proibido de emitir títulos da dívida brasileira, que são emitidos exclusivamente pelo Tesouro Nacional. Na prática, essa proibição não tem valor algum, pois o Tesouro tem emitido títulos e entregado ao Banco Central, sem qualquer contrapartida ou limite, para que aquela autarquia exerça a política monetária.

A justificativa para essa prática que dribla a LRF é, mais uma vez, a necessidade de o Banco Central “enxugar” o excesso de moeda em circulação, tendo em vista que esse excesso pode provocar inflação.

O volume dessas operações de mercado aberto já ultrapassa a cifra de meio trilhão de reais e estatísticas oficiais costumam não incluir esse valor no saldo da dívida, sob a justificativa de que se trataria de títulos da dívida em poder do Banco Central, o que não corresponde à realidade, pois tais títulos são entregues aos bancos em troca do “excesso de moeda” nacional ou estrangeira e fazem parte dos compromissos assumidos pela República.

Desde que o dólar começou a se desvalorizar em todo o mundo, o volume dessas operações de mercado aberto passou a aumentar aceleradamente, pois os especuladores viram o gatilho acionado pelo “Regime de Metas de Inflação” como uma tremenda oportunidade para trazer seus dólares para o Brasil e trocá-los por títulos da dívida pública brasileira, que pagam os maiores juros do mundo, isentos de qualquer tributo, podendo fugir do país quando bem entenderem, engordados pela variação cambial[3].

Como esse gatilho é acionado? O Banco Central acompanha o volume das reservas bancárias – principalmente depósitos e saldos de caixa – dos bancos e instituições financeiras instaladas no país. Se esse volume supera determinado patamar, entende-se que há excesso de moeda em circulação que precisa ser enxugado a fim de evitar o risco inflacionário. Para enxugar esse excesso, o Banco Central realiza as chamadas operações de mercado aberto, entregando títulos da dívida aos bancos e ficando com a moeda excedente, que ultimamente pode ser representada por montanhas diárias de dólares que vem para o país em busca do negócio mais generoso do mundo: troca de dólares por títulos da dívida brasileira.

Por sua vez, o Banco Central fica com os dólares e os destina às Reservas Internacionais, que já superam US$ 300 bilhões, e não rendem quase nada ao país, pois estão aplicadas em grande parte em títulos da dívida norte americana, que pagam juros próximos de zero e ainda temos que arcar com os custos de senhoriagem.

O gráfico II demonstra a semelhança das linhas que indicam a evolução das Reservas Internacionais brasileiras e a evolução das operações de mercado aberto realizadas pelo Banco Central.

Gráfico II – Evolução do Saldo das Reservas Internacionais e Volume de Operações de Mercado Aberto realizadas pelo Banco CentralFonte: Banco Central. Nota: As reservas foram convertidas para Real à taxa de câmbio de R$ 1,80.

Esse mecanismo tem sido um dos principais responsáveis pelo enorme prejuízo operacional do Banco Central – R$ 147 bilhões em 2009, R$ 50 bilhões em 2010 – que é repassado para o Tesouro Nacional e pago com recursos do orçamento que deixam de ser destinados ao atendimento de necessidades urgentes do povo brasileiro, ou pago mediante a emissão de mais títulos da dívida pública.

Em resumo, para combater o risco inflacionário, estamos “enxugando” o excesso de moeda que evidentemente não decorre de super aquecimento da atividade econômica no país, mas de movimento especulativo que tem beneficiado escandalosamente ao setor financeiro nacional e internacional, cujos lucros batem recordes anuais e superam dezenas de bilhões de dólares.

Com essas reflexões, verificamos a necessidade urgente de rever a política monetária vigente no país, pois sob o rótulo de combater a inflação estamos garantindo os maiores lucros do mundo ao setor financeiro privado, por meio da escandalosa transferência de recursos públicos que fazem muita falta no combate à infame miséria que acomete a mais de 100 milhões de brasileiros que sequer tem acesso a saneamento básico apesar de arcarem com pesada carga tributária embutida em todos os produtos de primeira necessidade que conseguem comprar com esmolas, bolsa-família ou pífios salários.

Alternativas para o efetivo combate à inflação existem e são muito mais eficientes: redução da taxa de juros; controle e redução dos preços administrados; reforma agrária para garantir a produção de alimentos não sujeitos à variação internacional dos preços de commodities; controle de capitais para evitar o ingresso de capitais abutres, meramente especulativos, e fugas nocivas à economia real; adoção de medidas tributárias apropriadas ao controle de preços. Para que essas medidas sejam adotadas, é necessário enfrentar o endividamento público: cancro que adoece nosso rico país e impede o curso da Justiça.

 

Clique aqui e veja o vídeo construído pela produção do jornal LeMonde Diplomatique relacionado ao Artigo Publicado na 47ªedição do jornal de, Julho de 2011, de autoria de Maria Lucia Fattorelli.

 

[1] Coordenadora da Auditoria Cidadã da Dívida desde 2001 (www.divida-auditoriacidada.org.br), membro da Comissão de Auditoria da Dívida Equatoriana (2007-2008)  e assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009-2010).

[2] Dados do IBGE sobre a inflação de janeiro a abril de 2011 comprovam que 73% da inflação verificada no período e medida pelo IPCA – Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo – foi causada por problemas de oferta de alimentos ou por preços administrados pelo próprio governo. Na expressiva parcela de 73% está considerada a variação dos preços de Alimentação, Taxa de água e esgoto, Transporte Público, Combustíveis de veículos, Educação, Plano de Saúde, Energia Elétrica, Telefonia, Serviço bancário. Interessante observar que até mesmo o setor bancário – que mais se beneficia com a elevação da Selic, pois é o setor que detém a maior parte dos títulos da dívida – promoveu a elevação de suas tarifas em 5,46% no período, muito acima da média geral da inflação estabelecida, de 3,23%. Tal fato denota a contradição entre o discurso e a prática do referido setor.

[3] A variação cambial tem favorecido os investidores e especuladores que trazem dólares para o Brasil e convertem tais dólares em reais, aplicando-os na Bolsa ou em títulos da dívida. Considerando que o dólar tem se desvalorizado continuamente frente ao real, decorrido algum tempo, quando resgatam suas aplicações e as reconvertem a uma taxa de dólar mais baixo, obtêm um volume de dólares bem maior.