O suicídio fiscal de Lula – Paulo Rubem Santiago Ferreira

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Paulo Rubem Santiago Ferreira [1]

Por conter uma série de questões graves, que não podem ficar restritas ao Congresso Nacional ou às interpretações enviesadas do jornalismo econômico, o envio pelo Presidente Lula do Projeto de Lei com as Diretrizes Orçamentárias (PLN 2/2025) para a elaboração e execução do orçamento de 2026 em 15 de abril último [2], com projeção de indicadores macroeconômicos até 2029, exige que se traga ao debate democrático e transparente a gestão das finanças públicas no país. Esses indicadores tratam das estimativas entre 2026 e 2029 para a inflação (IPCA), o câmbio, os valores do salário-mínimo, a evolução da massa salarial, o percentual de crescimento anual do PIB, a projeção do PIB em reais e as variações da taxa SELIC. São questões que espelham não apenas as diretrizes para o orçamento do próximo ano, ou para os anos que nos separam de 2029, mas que revelam cerca de duas décadas e meia de desvios, manipulações e pesada transferência de receitas públicas para grupos privilegiados que, com poderosos lobbies no parlamento e na grande imprensa, conduzem as finanças públicas de forma privada, à serviço de seus interesses.Com a chegada do projeto ao Congresso Nacional as consultorias de Orçamento e Fiscalização Financeira da Câmara dos Deputados [3]  e do Senado Federal já traduzem suas propostas por meio do Raixo-X do orçamento, revelando quem manda nas finanças do país, ao arrepio dos objetivos constitucionais da República Federativa do Brasil. Ao lado desse trabalho se destacam as declarações do Secretário do Orçamento Federal, órgão da estrutura do Ministério do Planejamento,  Clayton Montes, numa autêntica confissão de submissão da gestão das finanças públicas “às expectativas de mercado”, como ele próprio declara.

De acordo com as informações relativas ao PLN 2/2025, o Poder Executivo projeta para 2026 meta de superávit primário de R$ 34,26 bilhões (0,25% do PIB) para o governo central (orçamentos fiscal e da seguridade social). Para 2029 a meta sobe para 1,25% do PIB (cinco vezes maior!), com o PIB estimado em R$ 16,7 trilhões de reais. Assim, a meta de 1,25% sobre essa projeção indica um superávit superior a R$ 208 bilhões, enquanto a indicação para a evolução da relação dívida/PIB é de um salto de 78,5% em 2025 para 84,2% do PIB em 2029, atingindo R$ 14,06 trilhões, valor recorde na história. Ou seja, o governo aumenta o aperto fiscal com esse mega superávit primário, projeta uma SELIC declinante (de 14,02% em 2025 para 7,27% em 2029), mas a dívida, ainda assim, crescerá. A capacidade de investimento do Estado vai virar poeira comprometendo o próprio PIB, piorando a relação Dívida/PIB. Nesse caso, mantida em 2029 a mesma composição de março de 2025 [4] relativa ao vencimento de curtíssimo prazo da dívida pública mobiliária federal interna (dívida em títulos públicos emitidos pelo tesouro nacional, com 38,21%, correspondentes a R$ 2,750 trilhões, vencendo em até 02 anos), chegaremos a R$ 5,370 trilhões vencendo entre 2029 e 2030, gerando-se enormes pressões, seja para o pagamento dos juros relativos a seu estoque, seja para sua amortização, exigindo-se do Ministério do Planejamento e Orçamento mais e mais cortes de gastos não financeiros para tais fins. Sabemos o que isso significa. De acordo com o Banco Central,[5] no acumulado em doze meses, os juros nominais alcançaram R$ 935,0 bilhões (7,80% do PIB) em março deste ano (2025), comparativamente a R$745,7 bilhões (6,71% do PIB) nos doze meses até março de 2024.

Pensando na recente entrevista coletiva, ocorrida no dia 15 de abril, com os Reitores da UFPE, Alfredo Gomes, da UNIVASF (PE/BA), Télio Nobre, a Reitora da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Maria José de Sena e o Reitor da UFAPE (Garanhuns), Airon de Melo, denunciando os cortes em seus orçamentos de custeio e capital, imagino o que restará dessas instituições em 2029, com esse projeto de lei para as diretrizes orçamentárias e suas metas fiscais inconsequentes. Trata-se de um cenário que, se não for enfrentado, revela um autêntico suicídio fiscal de Lula, ainda em 2025 e 2026, e do próximo presidente, até 2029. Para demonstrarmos ainda mais como a gestão das finanças anda atrelada a interesses financeiros privilegiados, a previsão da Lei Orçamentária de 2025, já aprovada, Lei 15.121, é de concessão de R$ 543,7 bilhões (19,7% da arrecadação e 4,4 % do PIB) em benefícios tributários (renúncias fiscais) e mais R$ 134,2 bilhões em benefícios creditícios e financeiros (equivalentes a 1,1% do PIB). Juntos, superam o investimento da União em educação básica e superior públicas, estagnado em 5,1% em 2022. A situação fiscal se agrava ainda com a impune sonegação fiscal, compondo uma dívida ativa tributária federal de R$ 3,0 trilhões, com 0,39% dos devedores (27,4 mil) concentrando R$2,1 trilhões dessa dívida, segundo o Raio-X do Orçamento antes referido. Esse é um país fictício, embora atuante, que sequestra a cada dia os frutos do país real, da produção e o consumo de bens e serviços, espinha dorsal da tributação vigente, do subemprego e da violência cotidiana, para o qual não há lobbies, renúncias fiscais nem metas criminosas de superávit primário concentrando renda e poder. Assim, “a capacidade da austeridade de impor e reforçar a estrutura de classes é a verdadeira medida de sua eficácia; a austeridade foi a serva e, na verdade, a primeira salvaguarda da ordem do capital” (Mattei,2023, p.398).

Ao propor tais diretrizes orçamentárias, sem qualquer questionamento aos fundamentos econômicos que imperam no país há 25 anos, desde a Lei Complementar 101, de 04 de maio de 2000, as forças que derrotaram a direita e as políticas econômicas de Paulo Guedes em 2022, que logo em 2023 já haviam sinalizado a favor da permanência da austeridade com o novo arcabouço fiscal (Lei Complementar 200/2023), aliam-se a ele, aprofundando-a, jogando água no moinho da dominância financeira do capital nos tempos presentes,  com consequências as piores possíveis para a democracia e os direitos sociais hoje e amanhã.  Afinal, como destaca Clara Mattei [6] , foi dessa forma que alguns economistas inventaram a austeridade fiscal e abriram caminho para o fascismo.

[1] Professor da UFPE. Mestre e Doutor em Educação. Ex-Deputado Federal (2003-2014).  Integrou a Comissão Mista de Orçamento, Planos e Fiscalização do Congresso Nacional, as Comissões de Finanças e Tributação, Educação e de Seguridade Social e Família na Câmara dos Deputados.  Foi membro da CPI da Dívida Pública (2010).

[2] PLN 02/2025, para as Diretrizes Orçamentárias de 2026. Disponível aqui . Acesso em 29 abr.2025.

[3] Disponível aqui. Acesso em 29 abr.2025.

[4] Relatório Mensal da Dívida Pública Federal.  Março de 2025. Disponível aqui . Acesso em 29 abr.2025.

[5] Banco Central. Estatísticas Fiscais. Nota para a Imprensa. Disponível aqui. Acesso em 29 abr.2025.

[6] MATTEI, Clara E. A ordem do capital. Como os economistas inventaram a austeridade fiscal e abriram caminho para o fascismo. São Paulo, Boitempo,2023.