“PEC 186 e a Matrix das Finanças Públicas”, por Gisella Colares Gomes

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Gisella Colares Gomes1

A PEC 186 foi apresentada em 2019. Agora usam a pandemia para justificar a necessidade da emergência e votá-la às pressas sem seguir seriamente o rito do processo legislativo. Isto é um embuste!

A chantagem para aprovar apresenta uma proposta de R$ 44 bilhões para auxílio emergencial, o que representa apenas 12 dias de pagamentos dos serviços da dívida pública federal em 2020. Dívida que nunca foi auditada, apesar de constar a previsão da auditoria na própria Constituição.

O Principal objetivo seria viabilizar a “sustentabilidade” da dívida. Para isso a proposta de emenda constitucional propõe a proibição da criação de despesas obrigatórias e coloca na Constituição o termo “ajuste fiscal” que, se fosse necessário, deveria ser uma EXCEÇÃO e não uma REGRA.

Quando entrei na universidade para cursar ciências econômicas em 1990 o discurso era de que o governo devia ter déficit fiscal zero. Hoje a proposta que consta da PEC 186 é de superávit fiscal (receitas correntes menos despesas correntes) de 5% das receitas. Me pergunto, depois de 30 anos essa “tática” de política fiscal foi eficaz? Por que será que os resultados apresentados são tão ruins?

Em 2016 a emenda constitucional nº 95 impôs um teto de gastos para o governo. A PEC 186 propõe um corte nas despesas correntes de 5%. Mas vejamos, em quais despesas correntes? Nas despesas que garantem os direitos sociais constitucionais representados nas funções finalísticas de políticas públicas de saúde e educação e nos elementos de despesas como pessoal e custeio da máquina. Mas os juros da dívida, que também são considerados correntes, estão fora deste corte.

Vamos analisar apenas uma informação para avaliar se este discurso tem sustentação. A “verdade” alardeada é a de que o crescimento da dívida teria sido por causa dos gastos com a pandemia. Entretanto,

(1) Entre dezembro de 2019 e setembro de 2020, o estoque da “dívida bruta do governo geral” cresceu cerca de R$ 1 Trilhão. Esse estoque não pode ter financiado gastos sociais porque estão submetidos ao teto pela EC nº 95 que impõe o congelamento, permitindo apenas uma atualização monetária.

(2) As rubricas que receberam recursos extraordinários maiores que R$ 1 bilhão2, foram: o auxílio emergencial somou R$ 293 bi, assistência social R$ 36 bi, transferências aos Estados e Municípios R$ 79 bi, financiamento as pequenas e medias empresas R$ 58 bi , saúde R$ 39 bi e comércio e serviços R$ 3 bi. O montante total com todas as despesas foi de R$ 524 bi. Isso justificaria apenas 52,4% do aumento do estoque da dívida. E os outros 476 bilhões se referem a que despesa?

(3) Além do mais, todos os anos o governo destina para o pagamento da dívida centenas de bilhões de reais cuja fonte nada tem a ver com novos empréstimos, ou seja, na realidade a dívida pública não tem alimentado, mas sim, sugado os recursos das áreas sociais3. Na verdade, a principal causa do aumento da dívida tem sido o gasto com juros, além das chamadas “Operações Compromissadas” e outros mecanismos puramente financeiros que não beneficiam a sociedade.4

Essas três constatações contrapõem-se frontalmente à “verdade” alardeada, exigindo que nós nos questionemos: qual a real relação da elevação do orçamento executado e a elevação do estoque da dívida em 2020? Certamente que é preciso investigar. É preciso realizar uma auditoria.

Agora vejamos a variação entre os valores executados das principais rubricas entre 2019 e 2020:

Rubrica

Variação

Previdência Social

+R$ 34 bi

Transferência a Estados e Municípios

+R$ 60 bi

Saúde

+R$ 36 bi

Assistência Social (sem auxílio emergencial)

+R$ 24 bi

Educação

– R$ 6 bi

Juros e Amortizações da Dívida

+ R$ 344 bi (+33%)

Apenas a elevação de Juros e amortizações correspondem a 65,6 % do total de R$ 524 bi com despesas extraordinárias em 2020. Isso significa que apenas em 2020 o governo priorizou o pagamento de juros e amortizações inclusive em relação aos gastos com a pandemia. Significa que quem vive de juros e pode esperar foi mais privilegiado do que a população atingida pela pandemia e pelo desemprego.

E agora querem colocar como regra permanente na Constituição, em substituição ao orçamento de guerra, um ajuste fiscal que ASFIXIA o orçamento público destinado à esfera econômica e social que efetivamente gera riqueza, para priorizar o pagamento de juros e amortizações da dívida e supostamente viabilizar sua “sustentabilidade” sem investigá-la e atuar junto às causas de seu crescimento exponencial. Essa lógica não está sendo eficaz e o discurso de ajuste fiscal é mais do mesmo.

O que também chama atenção é que no diagnóstico que justifica a aprovação da PEC 186 datada de 2019, mas dita emergencial por conta da pandemia, está o argumento de que “a despesa do Tesouro Nacional com pessoal e encargos sociais cresceu 6,5% em 2017 e novamente 1,2% em 2018. Vale dizer, essa despesa é positivamente correlacionada com o crescimento da economia, mas uma série de mecanismos permite que ela aumente mesmo em uma conjuntura de taxas baixas ou até mesmo negativas de crescimento do PIB”5. No entanto, a elevação das despesas com juros e amortizações foi em 2020 foi de 33%.

Então eu pergunto, porque os mecanismos financeiros que inflam a dívida pública sem contrapartida para a economia real em geração de renda, emprego e arrecadação futura não são combatidos pela PEC 186?

Esses dados podem parecer confusos e – exatamente por isso – é necessário que seja realizada uma auditoria permanente da dívida com a participação da sociedade civil. É necessário que esse conhecimento seja popularizado para empoderar a sociedade na defesa dos direitos sociais. É necessário sair da matrix das finanças públicas no Brasil.

1 Doutora em desenvolvimento sustentável (UnB-2012) e Voluntária da Auditoria Cidadã Núcleo Fortaleza/Ceará.

2 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/gastos-com-a-divida-publica-cresceram-33-em-2020/

5 Relatório Legislativo SF212285895672-20210223