Renda e Salário Mínimos em tempos de Pandemia – por Ana Carolina Madeira
Por Ana Carolina Madeira (jornalista e integrante do Núcleo Catarinense – ACD/SC)
Os saudosistas irão ao delírio. Por pouco tempo alguns, pelo decorrer do texto, outros. Faz um bom tempo, lá em 1936, o então presidente Getúlio Vargas criou o SALÁRIO MÍNIMO no Brasil, que serviria para suprir as necessidades básicas dos indivíduos, como alimentação, habitação, vestuário, higiene, transporte, entre outras. “Um fato interessante nesse sentido é que o valor do salário-mínimo não era o mesmo em todo o país. O Brasil foi dividido em 22 regiões e 50 sub-regiões. Desta forma, para cada sub-região havia um valor estipulado, ou seja, havia 14 diferentes valores de salários-mínimos durante a criação do benefício”, segundo o site História de Tudo.
O valor foi unificado apenas em 1984, porém foi se deteriorando já após 1964 (as várias faixas regionais e sub-regionais sofreram “arrocho salarial”) ao ponto de ser insuficiente para conferir os direitos básicos aos trabalhadores e às trabalhadoras, há décadas. O livro “Salário Mínimo – uma história de luta”, do senador Paulo Paim, confirma que o salário mínimo não atende nem ao que a lei prevê. “Ao longo do tempo, o dilema básico da política do salário mínimo tem sido como conciliar seus objetivos de natureza distributiva e combate às desigualdades com as restrições de ordem fiscal. O importante é a prioridade que tem se conferido a cada uma dessas questões, diretamente ligada não apenas à disponibilidade de recursos, mas, sobretudo, à vontade política de cada governante e à clareza na definição dos caminhos para atingir seus propósitos”.
Vale lembrar que em vários países, o salário mínimo é usado como base para o mercado de trabalho, mas, “quando se observa o valor do salário mínimo pago em vários países, a posição brasileira nesse ranking é bastante desfavorável – no ano de 2004, a média foi de apenas US$85. Apenas na segunda metade da década de 1990 o valor do salário mínimo equivaleu a US$100, chegando a US$109,10 a média anual em 1998. Afora esse período, seu valor esteve sempre abaixo dos US$100”, cita Paim.
Durante a Constituinte de 1988, criado o Art. 7º , “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim”.
Ainda na Constituição, o art. 201, § 2º, e o art. 58 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) vinculavam todos os benefícios da Previdência Social ao salário mínimo. O inciso V do art. 203 garantia o benefício de um salário às pessoas portadoras de deficiência ou idosas (com mais de 65 anos) que não tinham condições de se prover (renda per capita de até um quarto do salário mínimo), ainda que não tivessem sido contribuintes da Previdência.
Dá saudade, né?
O problema é a escolha de deputados, senadores, vereadores… resultado: Contrarreformas que foram destruindo o poder de compra do salário mínimo e dificultando regras para receber aposentadorias, pensões, auxílios (doença, maternidade, etc) e reduziram os valores que podem ser o mínimo que o cidadão ou a cidadã pode receber dentro dos direitos previdenciários e trabalhistas.
A partir da década de 1980, o Fundo Monetário Internacional passou a ser o mandante das finanças brasileiras (não que o Brasil tenha sido efetivamente independente alguma vez desde o ano 1500), de forma escancarada, impôs diversas “medidas de austeridade”, privatizações de bancos estatais, renegociação de dívidas (para valores maiores), abertura de mercados (Bolsa de Valores passa a ter mais poder, ainda) e outras “conversas pra boi dormir” do Neoliberalismo. Tudo porque o sistema financeiro mundial havia aplicado um golpe enorme: durante a Ditadura Militar, bancos faziam empréstimos a juros flutuantes com vários incentivos. A partir de 1980, os credores resolveram aumentar exponencialmente os juros daqueles empréstimos em moeda estrangeira (dólar, libras, etc) ou em moeda nacional (cruzeiro). O então presidente, José Sarney (não foi eleito, era o vice que assumiu logo após a morte de Tancredo Neves) decretou moratória (o famoso calote porque não havia como pagar parcelas tão altas).
De 1987 a 1997, o país passou por hiperinflação (remarcava-se o preço dos produtos várias vezes ao dia), sequestro de Poupanças, Cruzado, Cruzeiro Novo, Unidade Real de Valor (URV) para corrigir o Real e finalmente o Real. Planos econômicos traumatizantes foram efetuados para que o país não quebrasse. Mais políticas neoliberais foram colocadas no Brasil. E as dívidas interna e externa só aumentando. Curioso já que na mesma Constituinte de 1988 estava bem claro o artigo 26 do ADCT, “no prazo de um ano a contar da promulgação da Constituição, o Congresso Nacional promoverá, através de comissão mista, exame analítico e pericial dos atos e fatos geradores do endividamento externo brasileiro”.
Pois é… esta auditoria sobre a dívida externa, feita por comissão mista do Congresso nunca foi realizada. Importante lembrar que naquele período, “a década perdida”, a dívida externa causou o problema grave no país. Atualmente é a dívida interna, que preocupa. A propósito, só um presidente realizou auditoria integral da dívida pública brasileira: Getúlio Vargas.
Em setembro de 2000, diversas entidades realizaram o Plebiscito Popular sobre a Dívida Externa no Brasil, que resultou em mais de 95% votos NÃO à manutenção do acordo com o FMI; NÃO à continuidade do pagamento da Dívida Externa sem a realização de auditoria prevista na Constituição; e NÃO à destinação de grande parte dos recursos aos especuladores.
As autoridades respeitaram a vontade popular? Não. Passaram mais 10 anos e finalmente aconteceu a Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Dívida Pública que apontou irregularidades e ilegalidades no processo de endividamento público tanto federal, quanto dos estados e municípios. Comprovou a falta de transparência e documentação de dívidas contraídas desde a década de 70, durante o período da Ditadura Militar. Só que o relatório final desconsiderou todos os dados comprovados. Não é a primeira “CPI que vira pizza”. Uma auditoria integral, técnica e cidadã da Dívida permitirá conhecer não só os aspectos legais e contábeis, mas também quem se beneficiou, quais fatores influenciaram no seu crescimento e onde foi aplicado o dinheiro público.
Lembra da Constituição de 88? Tem mais alguns detalhes: O artigo 37 frisa que os princípios inerentes à Administração Pública, que são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Essa publicidade é a base da transparência sobre as informações, que por não ser respeitada, foi criada a Lei de Acesso à Informação (lei nº 12.527/2011 regulamenta o direito ao acesso dos cidadãos às informações dos três Poderes da União, Tribunais de Contas, Ministério Público e algumas entidades privadas sem fins lucrativos); já o artigo 167 proíbe o pagamento de despesas correntes com recursos advindos de nova dívida, a não ser que o Congresso autorize expressamente (Regra de Ouro).
Ainda tem a decisão do Supremo Tribunal Federal. A Súmula Vinculante 121 do STF, de 1963, diz: “É vedada a capitalização de juros, ainda que expressamente convencionada”. Quer dizer, é proibida a cobrança ilegal de juros sobre juros (anatocismo). Esta súmula se baseou na Lei da Usura, art 4º, segundo o qual “é proibido contar juros dos juros”.
Mas para quê contar esta história triste? Porque vivemos um cenário mais triste ainda.
Além de não auditar com transparência e participação popular, o Executivo e o Legislativo brasileiro continuaram a depredar os direitos sociais, reduziram poder de compra de trabalhadores, dificultaram o acesso à previdência, saúde e assistência social, precarizaram o serviço público e reduziram orçamentos absurdamente em prol do pagamento da Dívida Pública, desde 1980. A crueldade do ultraneoliberalismo brasileiro acelerou demais a partir de 2013.
Assim, foram aprovadas as Reformas (ou Contrarreformas) Trabalhista (pode-se receber menos de um salário mínimo), Previdenciária (alguns beneficiários podem receber R$ 400,00) e a Emenda Constitucional 95 (Teto dos Gastos), e tramitam ainda PECs Emergenciais, entre outras leis que privilegiam o pagamento de dívidas (que aumentam sem contrapartida) acima de qualquer coisa. Então, começou a pandemia do novo Coronavírus (COVID-19); um horror humanitário que alcançou o planeta Terra. O vírus chegou ao Brasil em um momento de estagnação econômica, desmonte dos serviços públicos, aumento da pobreza e da desigualdade social, com grande parcela de trabalhadores fora de qualquer proteção social.
O que o governo brasileiro faz? Conforme nota divulgada pelas centrais sindicais, “o plano apresentado pelo governo de Jair Bolsonaro, por intermédio do ministro da Economia, Paulo Guedes, vai na contramão das medidas adotadas pelos países mais afetados pelo coronavírus para combater a pandemia e proteger as economias locais. Propõe acelerar a aprovação das reformas neoliberais, em tramitação no Congresso, que enfraquecem ainda mais os serviços públicos, retiram direitos dos trabalhadores e fragilizam o Estado para enfrentar uma crise econômica mundial”.
Os partidos, movimentos e entidades de esquerda movimentam pela criação da Renda Mínima e o projeto é aprovado na Câmara dos Deputados, no valor de R$ 600, podendo ser de R$ 1.200,00. Aguarda-se aprovação no Senado, homologação e edição de lei que explique como funcionará. Só que há um perrengue, o tal poder de compra. Em 2020, o salário mínimo é de R$ 1.045, embora o Departamento Intersindical de Economia e Estatística (Dieese) avise há anos que o valor continua sendo insuficiente para necessidades básicas.
A nota das centrais sugere também, “suspensão do teto de gastos (EC 95), a fim de garantir os investimentos públicos necessários para fortalecer os serviços públicos, especialmente a saúde e a proteção social; suspensão dos efeitos da Lei de Responsabilidade Fiscal, para que estados e municípios possam realizar os investimentos necessários no período de enfrentamento à crise; suspensão do pagamento da dívida pública e utilização dos recursos para fortalecer a seguridade social (saúde, previdência e assistência social); Revogação da Emenda Constitucional 86, que estabelece medidas que reduzem os valores obrigatórios para a saúde; suspensão de todas as votações e sessões do Congresso Nacional que excluem direitos da classe trabalhadora, bem como a revogação da Medida Provisória 905 e a retirada das PECs emergenciais enviadas pelo governo, antes da pandemia”. Não seria melhor resumir para “crie uma lei específica sobre a pandemia, que proíba o termo férias quando de fato vive-se isolamento social, volte ao texto original do art. 7º da Constituinte e ao art. 201, § 2º, do art. 58 do ADCT, além de fazer a auditoria integral, técnica, com participação social e ampla transparência de dados”?
Mas, Guedes e Bolsonaro preferem outra coisa: a “PEC do Orçamento de Guerra” junto com outras Medidas Provisórias que destinam mais recursos aos empresários e aos bancos.
Saiba mais em:
“Salário Mínimo: uma história de luta” – Senador Paulo Paim
Lei nº 185, de 14 de janeiro de 1936 (criação do Salário Mínimo)
Análise da Natureza da Dívida – Investigações sobre a Contrapartida da Dívida Interna Federal
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Orçamento Federal Executado (Pago) em 2019
A suspensão do pagamento de dívida dos estados pelo STF e Governo deve ser acompanhada de auditoria
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Nota Técnica da ACD No 1/2020 – “PEC DO ORÇAMENTO DE GUERRA”