“Sistema da dívida pública, desafios e superação do modelo atual”, por Maria Lucia Fattorelli
A Economia, enquanto ciência fracassou! Na imensa maioria dos países, ao contrário de modelos econômicos que garantam a melhor aplicação possível dos recursos existentes, de forma a adequá-los às necessidades humanas, sociais e econômicas, assistimos o aumento brutal da miséria e dos danos ambientais decorrentes da exploração desenfreada das riquezas minerais, enquanto aumentam também os lucros dos bancos e a exacerbação da concentração de renda e da riqueza nas mãos de pouquíssimos!
Esse resultado é uma simples fatalidade? Ou decorre de uma escolha de modelo econômico que produz esse resultado?
E no Brasil: o que separa o cenário de escassez de nossa realidade de abundância?
Essa reflexão é urgente e necessária, pois é preciso criar outro modelo econômico, que coloque o ser humano no centro, como tão bem tem manifestado o Papa Francisco em diversas ocasiões.”
Brasil: realidade de abundância e cenário de escassez
O Brasil é campeão mundial em injustiça social, pois aqui o fosso social – distância entre ricos e miseráveis – é a mais cruel do planeta. Ocupamos o 79o lugar no Índice de Desenvolvimento Humano medido pela ONU.
Esse cenário de escassez é inaceitável, porque o Brasil é atualmente a 9a maior economia mundial e nossa realidade é de extrema abundância, com riquezas naturais impressionantes, sob todos os aspectos: petróleo, nióbio e diversos minerais estratégicos; água doce; terras agricultáveis, clima favorável; florestas, cerrados, praias; matrizes energéticas; riqueza humana, cultural etc. Também possuímos grande volume de riquezas financeiras: Reservas Internacionais de US$ 350 bilhões ; R$1,2 trilhão esterilizado no Banco Central, remunerando ilegalmente a sobra de caixa dos bancos, além de um “colchão de liquidez” de R$1,27 trilhão acumulado na Conta Única do Tesouro. Adicionalmente, temos imenso potencial de arrecadação tributária e dívida ecológica atual e histórica por cobrar!
Nossa realidade de abundância nada tem a ver com o escandaloso cenário de escassez a que temos sido submetidos!
O que separa a realidade de abundância do cenário de escassez?
O cenário de escassez não é obra do acaso, mas é construído e sustentado pelo modelo econômico adotado no país.
A tarefa dos movimentos sociais é identificar os principais eixos desse modelo equivocado, tais como:
- Sistema da Dívida
- Política Monetária suicida praticada pelo Banco Central
- Modelo Tributário regressivo
- Exploração mineral predatória e agronegócio voltado para exportação.
A superação do modelo atual exige o enfrentamento desses temas, com ampla participação social. Nesse artigo, vamos focar nos 2 primeiros tópicos, deixando indicados alguns artigos sobre os demais.
Atuação do “Sistema da Dívida” e sua relação com a política monetária do Banco Central
A experiência à frente da Auditoria Cidadã da Dívida, ao longo de quase 2 décadas, atuando no país e exterior, me permitiu criar a expressão Sistema da Dívida, pois, em todas as oportunidades, detectamos a geração de dívida pública sem contrapartida alguma, ou seja, em vez de servir para aportar recursos ao Estado, a dívida tem funcionado como um instrumento que promove uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente ao setor financeiro.
A dívida gerada de forma espúria tem sido o principal alimento do capital financeiro, e decorre de diversos mecanismos fraudulentos. Até mesmo o liberal economista americano Jeffrey Sachs chegou a afirmar, em 2012, que “em toda parte estamos assistindo a uma epidemia de comportamentos criminosos e corruptos nos vértices do capitalismo. Os escândalos bancários não representam exceções nem erros, são fruto de fraudes sistêmicas, de uma avidez e arrogância sempre mais difundidas”.
No Brasil, identificamos diversos mecanismos ilegais e ilegítimos que geram dívida sem contrapartida, em especial:
- a histórica prática de juros elevadíssimos, sem justificativa técnica, jurídica, econômica ou política, além da incidência de juros sobre juros (Anatocismo), que fazem a dívida se multiplicar por ela mesma;
- a remuneração diária da sobra de caixa dos bancos pelo BC, sem previsão legal. A maioria das pessoas não sabe que o Banco Central gasta uma fortuna, todo ano, para remunerar bancos ilegalmente! Em 10 anos (2009 a 2018) essa operação ilegal custou cerca de R$ 1 trilhão de reais aos cofres públicos! Além desse rombo enorme, essa operação gera escassez de moeda, que fica esterilizada no Banco Central, provocando elevação brutal das taxas de juros de mercado para quem precisa de empréstimo (pessoas, empresas e até governos), amarrando o funcionamento de toda a nossa economia.
- os contratos que o BC faz com privilegiados sigilosos para garantir a variação do dólar. No final de 2019, o BC torrou mais de 37 bilhões de dólares de nossas reservas internacionais, dos quais, mais de 33 bilhões de dólares, ou seja, cerca de R$140 bilhões, foram gastos com esses contratos sigilosos, que têm o nome de SWAP CAMBIAL, repudiadas até em representação do TCU conforme TC-012.015/2003-0.
- novo mecanismo denominado “Securitização de Créditos Públicos” está sendo implantado em diversos estados e municípios no Brasil de forma ilegal, pois o PLP 459/2017 e a PEC 438/2018, que pretendem “legalizar” tal esquema fraudulento ainda não foram aprovados.
Tal mecanismo é gravíssimo, pois gera dívida pública disfarçada e inconstitucional, a qual é paga por fora, com recursos arrecadados de contribuintes, desviados durante o seu percurso pela rede bancária e sequer alcançarão o orçamento público, por isso a Auditoria Cidadã da Dívida tem pressionado parlamentares.
A dívida pública gerada por esses mecanismos tem sido a justificativa para as privatizações, cortes de gastos e investimentos sociais, teto de gastos, contrarreformas, travando completamente o nosso desenvolvimento socioeconômico.
Os principais responsáveis por essa atuação distorcida, que denominamos Sistema da Dívida, é o poder financeiro mundial, encabeçado pelo BIS, FMI, Banco Mundial, Bancos Centrais e grandes
bancos privados nacionais e internacionais.
Enquanto geram dívida para a sociedade pagar, tais mecanismos transferem imensos ganhos para o setor financeiro, que bate sucessivos recordes de lucros, apesar da “crise” que assola a economia real.
O privilégio do Sistema da Dívida vem aumentando após a aprovação da EC 95/2016 (que deixou as despesas financeiras com a chamada dívida pública fora do teto de gastos) e afeta também os
orçamentos de estados e municípios.
Sequer sabemos para quem destinamos quase a metade do orçamento federal, consumido com o pagamento de juros e amortizações da dívida a beneficiários sigilosos.
CONCLUSÃO
É incontestável o tremendo privilégio do Sistema da Dívida, que tem transformado o Estado brasileiro em um instrumento a serviço do poder financeiro transnacional, às custas do atraso de nosso próprio desenvolvimento socioeconômico, sendo imprescindível a popularização do conhecimento que vem sendo produzido pela Auditoria Cidadã da Dívida.
A fim de desmontar o inaceitável cenário de escassez existente no Brasil, precisamos modificar o modelo tributário para que se transforme em instrumento efetivo de justiça fiscal e distribuição de renda; alterar a política monetária para que atue em favor dos interesses do país e do povo, e não apenas do setor financeiro; rever completamente a exploração mineral predatória e agronegócio voltado para exportação, e enfrentar o Sistema da Dívida por meio de auditoria integral, com participação cidadã, interrompendo esse processo de sangria de recursos e submissão aos interesses do mercado financeiro.
Nosso desafio é desmascarar esse inaceitável cenário e construir juntos outro modelo econômico que coloque o ser humano no centro, e que respeite a nossa Mãe Terra, como tão bem vem dizendo o Papa Francisco.
*Maria Lucia Fattorelli é coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida, Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010). Membro da Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia, convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou (2015). Membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz da CNBB (CBJP).
Referências
http://www.valor.com.br/brasil/5446455/pobreza-extrema-aumenta-11-e-atinge-148-milhoes-de-pessoas
https://g1.globo.com/economia/noticia/5-bilionarios-brasileiros-concentram-mesma-riqueza-que-metade-mais-pobre-no-pais-diz-estudo.ghtml
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/21/politica/1490112229_963711.html
Recentemente, no final de 2019, o Banco Central torrou mais de 37 bilhões de dólares de nossas reservas internacionais, dos quais, mais de 33 bilhões de dólares, ou seja, cerca de R$140 bilhões, foram gastos com esses contratos sigilosos, que têm o nome de SWAP CAMBIAL. Ver artigo completo em https://monitordigital.com.br/o-
-que-esta-por-tras-da-independencia-do-banco-central
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Este artigo faz parte da Coleção “Mutirão de Formação”, da 6ª Semana Social Brasileira. São cinco cadernos que abordam diferentes temas relacionados a questões socioeconômicas. O texto de Fattorelli integra o Caderno 2: “Mutirão por economia: alternativa e modelo econômico”, e pode ser acessado na íntegra em versão PDF AQUI.
A Semana Social Brasileira é uma iniciativa da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), com o conjunto das pastorais sociais, organismos e movimentos populares. A ação tem a tarefa de articular e mobilizar a sociedade brasileira para o envolvimento nos processos sociopolíticos do país através da realização dos mutirões populares. Acesse www.ssb.org.br e saiba mais.