Tire suas dúvidas: O que é a dívida pública?
Nesta entrevista para o IHU online, a Revista do Instituto Humanitas Unisinos (edição 440 de abril de 2014), o economista Rodrigo Vieira de Ávila, da Auditoria Cidadã, faz um panorama geral sobre as principais questões que cercam o endividamento e suas implicações na vida do brasileiro.
Ainda que sua influência afete diretamente a vida de todos os brasileiros, a economia é muitas vezes um tema distante de boa parte da população. A IHU On-Line convidou o economista Rodrigo Vieira de Ávila, da associação Auditoria Cidadã da Dívida, para responder algumas das dúvidas mais frequentes sobre o tema. Estas mesmas questões servem de pano de fundo para outras entrevistas desta edição, que aprofundam os questionamentos aqui levantados.
Ávila esclarece os conceitos de dívida pública, dívida externa e dívida interna. Esclarece como se compram “títulos da dívida”, quem são estes compradores e por que comprar. Trata também das relações com o FMI e do suposto pagamento realizado pelo presidente Lula e as implicações sociais do endividamento. De acordo com o “dividômetro” do sítio da Auditoria, em 2014, até 17-02, a dívida consumiu R$ 203 bilhões em pagamento de juros e amortizações. A quantia representou 65% de todos os gastos públicos.
Rodrigo Vieira de Ávila é economista pela Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais – FACE/UFMG e mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pelo Programa de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade – CPDA, da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ. Ávila é coautor de Um futuro para o campo – reforma agrária e desenvolvimento social (Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007).
Confira os tópicos abaixo:
O que é a dívida pública?
Quando se pensa na dívida pública brasileira, normalmente se remete à dívida externa — aquela que o governo deve em moeda estrangeira. No entanto, como hoje muitos brasileiros podem mandar dinheiro para fora e comprar esses títulos, a dívida externa não é tão externa assim. A dívida interna, teoricamente, seria aquela nominada em Reais e devida ao “povo brasileiro”. No entanto, com a liberdade de fluxo de capitais, qualquer pessoa, em qualquer parte do mundo, pode comprar esses títulos. Assim, mesmo a dívida interna pode ser, em grande parte, externa.
Desse modo, prefere-se usar o termo dívida pública para se referir ao conjunto das duas dívidas, que, segundo Rodrigo Ávila, servem a um mesmo propósito: “drenar recursos do orçamento público para os investidores estrangeiros e nacionais — principalmente os grandes bancos ou grandes investidores”. Isto porque, por conta dos juros altos e a aplicação de “juros sobre juros”, essas dívidas que deveriam financiar o governo passam a ser um mecanismo de extração de recursos do orçamento para o capital financeiro. Mais de 40% do orçamento federal são destinados para o pagamento de juros e amortizações (pagamento do principal) da dívida pública .
O que são títulos públicos emitidos para dívida pública?
O governo emite um papel e passa a dever ao banco que adquirir este título, pagando juros. Alguns bancos são credenciados para tal, e assim podem pressionar por taxas de juros mais altas e se beneficiar desse processo. São os chamados Dealers. As pessoas podem adquirir, indiretamente, tais títulos (por meio dos “Fundos de Investimento”), mas para isso pagam taxas de administração para os bancos, e muitas vezes recebem remunerações bem mais baixas que as recebidas pelos bancos junto ao governo.
Quem investe em títulos da dívida pública?
O governo tem um discurso de que os principais beneficiários da dívida seriam os brasileiros, a classe média e a população como um todo. No entanto, observando os dados da Auditoria Cidadã, percebe-se que 62% dos detentores de títulos da dívida interna são exatamente os bancos e os investidores estrangeiros.
Outra quantidade representativa — cerca de 18% — pertence aos Fundos de Investimento. De acordo com Ávila, quando a CPI da Dívida Pública tentou investigar o perfil dos beneficiários destes Fundos, o próprio Banco Central reconheceu não saber. Assim, novamente, fica a dúvida de que estejam realmente na “classe média” os maiores investidores neste item. “Há ainda os fundos de pensão, que muitos dizem ser os grandes beneficiários da dívida, mas que representam apenas 13% da dívida interna”, pontua ele.
Em quanto tempo os títulos são resgatados?
Depende do prazo. Pode ser um ano, cinco, dez… Depende do tipo do título e da pressão do mercado — no caso, os bancos credenciados. “Se eles querem títulos de curto prazo, eles pressionam o governo, aumentando as taxas de juros exigidas”, destaca Ávila.
Como são definidos os juros que incidem sobre esses títulos?
Isso vai depender justamente da pressão exercida pelos bancos. Esses títulos são vendidos através de leilões. O governo oferta e a partir daí os bancos se organizam e tentam exigir taxas de juros mais altas. Atualmente, os títulos vêm sendo vendidos a juros de cerca de 13% ao ano, muito maiores do que a Selic. Isso porque quem tem a prerrogativa de fazer essa pressão são justamente os bancos. O setor financeiro tem poder de barganha.
As dívidas são principalmente por títulos ou contratuais?
No caso da dívida interna federal, que é a mais significativa, são títulos. No caso da dívida externa, existem dívidas mobiliárias (ou seja, em títulos) e algumas contratuais, principalmente com instituições multilaterais (como o Banco Mundial, BID). No caso da dívida dos estados e municípios com a União, essas são contratuais.
Qual a origem da dívida pública dos estados?
Ela começa ainda no período militar, quando os estados já pegavam empréstimos obscuros. Depois, para atrair o capital financeiro internacional a partir dos anos 1990, o governo federal praticou altas taxas de juros. Nesse momento, os estados e municípios tiveram que rolar suas dívidas junto ao setor financeiro com tais taxas altíssimas, e assim os entes federados começaram a ver suas dívidas se multiplicarem por conta dessa política monetária do governo federal. No final dos anos 1990, a União se propõe a quitar essas dívidas com o setor financeiro, e os estados passam a pagar para o governo federal.
“Quando o governo federal assume a cobrança dessas dívidas, ele também fez uma espécie de “saneamento” dos bancos estaduais — sob a justificativa de que havia rombos — e depois promove a privatização. Mas que rombos eram esses? Quais foram os responsáveis? Por que estamos pagando isso até hoje? Tudo isso precisa de uma auditoria”, defende Ávila. “Desde o final dos anos 1990, os estados já pagaram muito mais do que deviam por conta da aplicação de ‘juros sobre juros’, que é ilegal, segundo a Súmula 121 do Supremo Tribunal Federal.”
Por que não se fala mais em dívida externa e FMI?
Desde os anos 1980, a sociedade brasileira vem se mobilizando contra o endividamento externo, capitaneado em suas políticas pelo FMI — compreendido como um órgão que se aproveitava dos países do Terceiro Mundo para condicionar empréstimos para saldar dívidas anteriores, recomendando políticas neoliberais de privatizações e de corte de gastos sociais. No entanto, com a liberalização do fluxo de capitais, ocorrida principalmente a partir dos anos 1990, qualquer investidor do mundo pode trazer dinheiro para o Brasil e comprar título da dívida “interna”. Conforme Ávila, “as políticas que antes eram ditadas claramente pelo FMI, com seus acordos e cartas de intenção, continuam exatamente como eram: superávit primário, privatização, redução de gasto social, reforma da previdência… Tudo continua sendo feito, mas de forma velada, pois o governo sabe que o povo rejeitou o FMI e suas políticas”.
A dívida foi resolvida com o pagamento ao FMI?
Em 2005, o presidente Lula realizou um pagamento antecipado ao FMI de US$ 15 bilhões, exatamente para fazer propaganda de que a dívida havia sido resolvida. Na verdade, era apenas uma migalha perto do endividamento total. Além do mais, o pagamento antecipado ao FMI foi feito à custa de mais dívida interna. Tomou-se mais dívida “interna”, a juros muito mais altos, para comprar os dólares utilizados para o pagamento antecipado ao FMI, que cobrava juros bem mais baixos. Esse pagamento antecipado, na verdade, foi uma jogada de marketing, pois o endividamento mesmo só cresceu. E o país continuou a aplicar as políticas recomendadas pelo FMI.
Qual a relação entre os bancos privados, o Banco Central e a dívida pública?
Ávila destaca que, segundo o relatório alternativo da CPI da Dívida, o Banco Central realiza reuniões trimestrais de diretores do Comitê de Política Monetária – Copom (que define as taxas de juros Selic) com membros do setor financeiro para tentar estimar qual será o PIB, a inflação, a taxa de juros, avaliando as expectativas de mercado sobre a inflação. “Lógico que eles vão estipular uma inflação alta para obviamente forçar a alta de juros — e o Banco Central dá repercussão a isso. Ou seja, existe todo um conflito de interesses entre BC e setor financeiro que foi questionado na CPI. É um grave indício de ilegalidade da dívida.”
O que é a taxa Selic?
A Selic é a taxa básica que orienta os juros incidentes sobre a dívida pública. Aumentando a taxa Selic, aumenta o custo da dívida e dos empréstimos em geral. O governo gasta mais recursos do orçamento para pagar a dívida pública. A grande justificativa que se dá para as altas taxas de juros é de que a inflação estaria fora de controle, e que por isso seria preciso aumentar os juros para desestimular as pessoas a tomar financiamento e, assim, diminuir o consumo e os investimentos, e por aí diminuir a demanda por bens e serviços. “Assim se mataria a economia, e a inflação reduziria. Há uma ideologia neoliberal por trás disso”, alerta. Porém, os fatores que mais têm contribuído para a inflação são os preços administrados pelo próprio governo e a alta dos alimentos (devido a problemas climáticos e especulação nas bolsas de commodities), que não podem ser combatidos com altas nos juros. Atualmente a Selic está em 11%.
O que é o superávit primário?
É a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele gasta na área social. E isso gera uma “economia”, um recurso que sobra para o pagamento da dívida pública. Só que os juros da dívida pública são muito maiores que o superávit primário. Este só garante uma pequena parte do pagamento do juro. Então o governo tem que tomar novas dívidas para pagar esses juros. Outra fonte de recursos para o pagamento da dívida federal é, por exemplo, o recebimento de juros e amortizações das dívidas dos estados com a União. Isso tudo vai automaticamente para o pagamento da dívida federal.
Quando o Banco Central dá lucro, esse lucro também vai obrigatoriamente para o pagamento da dívida. O rendimento da Conta Única do Tesouro, em grande parte, também vai para o pagamento da dívida. E principalmente a emissão de novos títulos, ou seja, a geração de novas dívidas para pagar os juros que estão vencendo. Isso é importante considerar também, pois é um dinheiro que vai para o ralo, não beneficia em nada a sociedade, é um poço sem fundo, porque se paga, paga, paga e, no ano seguinte, tem que pagar de novo e se faz mais dívida para pagar de novo.
“Essas dívidas poderiam se transformar em recursos investidos na educação, por exemplo, o que geraria uma alta capacidade de pagamento dessa dívida, porque aumenta o PIB, aumenta o nível de instrução da população, gerando a capacidade de pagamento dessa dívida. Agora, gerar dívida para pagar juros não traz benefício algum para a sociedade”, conclui Ávila.
O que motivou a CPI da Dívida Pública?
Nós tivemos a experiência da auditoria oficial no Equador, a partir de 2007. Considerando a enorme quantidade de recursos destinada ao pagamento da dívida no Brasil, em 2008, o deputado Ivan Valente, do Psol-SP, fez o requerimento e conseguiu as assinaturas necessárias para se instaurar a CPI. A seguir, houve toda uma pressão para que os partidos indicassem os membros, o que foi bastante difícil, e demorou muitos meses. Finalmente, em agosto de 2009 conseguiu-se instaurar a CPI. Se não fosse a pressão da sociedade e do deputado Ivan, a CPI não saía.
Que resultados foram obtidos pela CPI?
Foi a partir da CPI que nós notamos um aumento grande da mobilização social sobre o tema, até porque toda semana havia um evento na CPI, um palestrante, muitas vezes com uma visão alinhada às nossas posições. Houve um debate importante, as entidades faziam um acompanhamento, pressionavam os deputados para investigar e isso gerou um subproduto importante, que foi a mobilização social. A CPI foi um marco para a Auditoria Cidadã no que se relaciona ao tema. E investigou muita coisa. Muitos indícios de ilegalidade da dívida, a própria questão de conflitos de interesse no Banco Central, que expliquei antes, foram investigações da CPI. É claro que no relatório final houve um “acordão” entre PT, PSDB e DEM para se fazer um “relatório pizza”. Mas o mais incrível de tudo é que, na parte do diagnóstico, o relatório final até que apontava corretamente as causas da dívida. Ele falou expressamente que a dívida é resultado das altas taxas de juros. Ou seja: ela não foi uma dívida gerada para se investir em escola, hospital. Não. Ela foi uma dívida que cresceu dela mesma, simplesmente expandiu a partir de juros sobre juros, se multiplicou a partir dela mesma.
Apesar desse diagnóstico correto, na parte das recomendações, o relatório, a partir do acordo do governo com o PSDB, disse que simplesmente não precisava auditoria, não precisava investigar, não precisava enviar ao Ministério Público. Só que nós, a sociedade, aliada ao deputado Ivan Valente e mais alguns deputados, como Paulo Rubem Santiago e Hugo Leal, elaboramos um relatório alternativo, no qual foram colocadas todas as descobertas da CPI e pedia-se uma investigação. Mandamos ao Ministério Público para investigar e enviar as ações para a Justiça, que seria o objetivo final. A gente sabe que a Justiça no Brasil, especialmente quando envolve bancos, é muito subserviente ao sistema financeiro. Então vai ser preciso muita mobilização social para se levar estas irregularidades à Justiça. Mas já tivemos um grande ganho, que foi a mobilização social decorrente da CPI.
Como funciona o trabalho da Auditoria Cidadã?
Houve o grande plebiscito popular de 2000, em que seis milhões de pessoas votaram pelo não pagamento da dívida sem a realização da auditoria, prevista na Constituição de 1988 e jamais realizada. São mais de 25 anos de violação da Constituição, sem a realização da auditoria da dívida. Como o governo não quis atender a vontade popular, daqueles cerca de seis milhões de pessoas que votaram no plebiscito, iniciamos uma auditoria informal, feita pela sociedade, onde se fazem estudos, pesquisas, eventos e se conscientiza a população para esta questão, objetivando a auditoria oficial da dívida. Nós temos uma página, www.auditoriacidada.org.br, onde temos notícias, publicações, divulgamos nossas atividades. Inclusive, neste momento, estamos envolvidos com a questão da dívida dos estados e dos municípios com a União. Temos um projeto no Senado que estamos tentando tornar eficaz. Mas esta luta pela auditoria é uma luta árdua, difícil.