Covid-19, Dívida Pública e crise de financiamento de Ciência e Tecnologia no Brasil

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Epitácio Macário*
Luiz Fernando Reis**

1. Subfinanciamento de C&T como parte da crise sistêmica

Na edição do dia 30 de março de 2020, o programa Roda Viva, da Rede Cultura de Televisão, entrevistou o biólogo Átila Iamarino. Dentre outros importantes esclarecimentos sobre a pandemia causada pelo novo coronavírus (SARS-Cov-2), o estudioso registrou a crise de financiamento da ciência e tecnologia (C&T) no Brasil que, na sua opinião, vem de três governos. A gravidade da crise foi ilustrada no corte de bolsas de pesquisadores que, hoje, se envolvem na busca de solução para a pandemia.

A crítica do biólogo tem razão. Adiante, os gráficos mostrarão a gravidade dessa crise, pelo menos quando se toma uma das fontes de financiamento do setor – a União. Cabe, todavia, outros registros sobre a precária situação da C&T no Brasil.

A crise da ciência não se expressa apenas no sistemático corte de verbas do governo central brasileiro desde, pelo menos, 2014. O subfinanciamento do ensino superior, da pós-graduação e das atividades de pesquisa científica é um traço estrutural do capitalismo dependente brasileiro.

Como já afirmado em outro estudo (REIS e MACÁRIO, 2018), entre nós o capital está mais interessado nos imensos mananciais de recursos naturais, na grande oferta de mão de obra barata e nos subsídios do fundo público. Em decorrência disso, e do lugar que o país ocupa na divisão internacional do trabalho, as corporações que operam no território nacional não se veem obrigadas a investir em pesquisa e desenvolvimento (P&D), como fazem nos países centrais.

Juntando a isso a ausência, quase completa, de forças sociais e políticas interessadas na indução, pelo Estado, da produção de C&T para responder aos grandes problemas do povo e da nação, tem-se como resultado não apenas a reprodução da histórica dependência técnico-científica, mas o acúmulo de misérias sociais de todos os tipos. A pandemia do novo Corona Vírus vem expondo de forma dramática a escassez de produtos hospitalares e de fármacos, bem como a inexistência de capacidade instalada para fazer frente à grave situação. E isto não ocorre apenas no Brasil, mas no próprio coração do capitalismo desenvolvido como é o caso dos Estados Unidos (EEUU).

Não se deve esquecer, todavia, que a grave situação da produção de C&T no Brasil é parte de uma crise muito mais profunda e ampla, que é a crise estrutural do sistema metabólico do capital. Como efeito, esse sistema parece ter ativado duas ordens de fatores limitadores de sua reprodução ampliada. A primeira concerne aos limites impostos pela natureza, em avançado estágio de destruição; a segunda refere-se à crescente eliminação de força de trabalho, combinada com o rebaixamento contínuo das condições de vida das amplas massas do povo. Em ambos os casos, a predação e a espoliação se prestam a fornecer os insumos para a remuneração da montanha de capitais alocada no setor produtivo e
financeiro.

Nessas circunstâncias, a ciência é convocada somente enquanto instrumento de geração de “rendas tecnológicas” úteis ao “moinho satânico” da lucratividade ou para justificar a flagrante irracionalidade sistêmica baseada na “destruição destrutiva”. O complexo produtor de conhecimentos se vê constrangido, também, pelas políticas econômicas neoliberais que destina parte significativa do fundo público para garantir a reprodução do capital, sobretudo para viabilizar a rentabilidade do capital rentista/fictício.

A sangria de recursos do Estado para os detentores dos títulos da dívida pública persiste como esteio do padrão de acumulação de capital no Brasil, desde o governo de Fernando Henrique Cardoso. A partir de então, como assegurou Leda Paulani (2008), o Brasil transformou-se em “plataforma internacional de valorização financeira”, um mercado no qual se tornaram possíveis os maiores ganhos do mundo na compra e venda de ativos financeiros. Mesmo durante os governos do Partido dos Trabalhadores (2003- 2016), que procuraram compatibilizar os interesses do capital e do trabalho, a sangria de recursos do fundo público para os rentistas manteve-se inalterada.

2. Dívida pública – um obstáculo estrutural ao financiamento de políticas sociais

No período de 2003 a 2019, a União destinou, cumulativamente, R$ 20,0951 trilhões para o pagamento de juros e encargos, amortização e refinanciamento da dívida pública. Tais recursos representaram, em média, 45,66% do orçamento da União. Considerados apenas amortização, juros e encargos, o governo federal destinou nada menos do que R$ 8,431 trilhões no período analisado o que representou, em média, 18,88% do orçamento da União.

No mesmo período, os recursos destinados, cumulativamente, somente ao pagamento de juros, encargos e amortizações da dívida pública (R$ 8,431 trilhões) representaram praticamente 7 vezes mais que os recursos destinados para a função educação (R$ 1,282 trilhão), 5 vezes mais que os recursos destinados à saúde (R$ 1,767 trilhão), quase 8 vezes mais que os recursos destinados para a assistência social (R$ 1,071 trilhão), 11 vezes mais do que os recursos destinados às universidades (R$ 733,868 bilhões) e 55 vezes mais que os recursos destinados para a ciência e tecnologia (R$ 153,823 bilhões).

A alocação de recursos do fundo público para o pagamento dos serviços da dívida pública representa, pois, um obstáculo estrutural ao financiamento das políticas sociais, em geral, e do complexo de C&T, em particular.

Nesse particular, o governo de extrema direita de Jair Bolsonaro representa a continuidade da lógica do padrão de acumulação rentista. Porém, na esteira da EC 95/2016, aprofunda ainda mais a restrição da renda dos trabalhadores e dos recursos destinados ao financiamento das políticas sociais em favor do capital. Assim, a LOA/2020 previu um aumento das despesas totais com a dívida pública (juros e encargos, amortização e refinanciamento) de 51,05%: de R$ 1,061 trilhão, em 2019, para R$ 1,603 trilhão em 2020. Retirando-se o refinanciamento, a peça orçamentária prevê a elevação de R$
573,471 bilhões, em 2019, para R$ 685,513 bilhões em 2020, somente para encargos, juros e amortizações. Isto representa um crescimento de 19,54%. Importa destacar, também, o elevado crescimento da emissão de títulos públicos para o refinanciamento da dívida: de R$ 487,550 bilhões em 2019 para R$ 917,135 bilhões em 2020, 88,11% superior ao orçamento executado em 2019.

3. A crise de financiamento da C&T

A análise do orçamento executado na função Ciência e Tecnologia (C&T) demonstra ter havido elevação das despesas no período de 2003 a 2019 da ordem de 37,55%: no início, o total executado foi de R$ 4,886 bilhões e, no final, de R$ 6,721 bilhões. Adotando-se o recorte temporal de 2013 a 2019, observa-se uma tendência de drástica redução de investimentos em C&T. Assim, enquanto em 2013 foram destinados R$ 15,401 bilhões, em 2019 os valores liquidados não ultrapassaram R$ 6,721 bilhões, expressando uma redução de 56,36% no subperíodo. O gráfico é ilustrativo quanto a isto.

 

 

A LOA prevê para o ano de 2020 a destinação de R$ 6,925 bilhões para a ciência e tecnologia, como demonstrado. Tal montante é 3,03% superior ao orçamento executado em 2019 (R$ 6,721 bilhões). Este montante de recursos é, todavia, 55,04% inferior ao orçamento executado em 2013 (R$ 15,401 bilhões).

Quanto aos recursos destinados pelo governo federal à função educação, observa-se a partir de 2015 uma redução contínua. De R$ 126,635 bilhões em 2014 para R$ 100,676 bilhões em 2019, representando 20,50% de queda no padrão de financiamento. Como resultado da crise de financiamento da educação e da ciência e tecnologia, a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) têm enfrentando grave restrição orçamentária nos últimos anos.

O Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) é um dos órgãos a sofrer maior desmonte, pois em 2019 a União investiu menos do que em 2003. Como efeito, enquanto no último ano analisado o investimento foi da ordem de R$ 1,442 bilhão, no primeiro ano o valor liquidado foi de R$ 1,664 bilhão. Isto quer dizer que as verbas para o CNPq foram rebaixadas em 13,36% no período. Impôs-se sobre o órgão de apoio à pesquisa um patamar de financiamento abaixo daquele existente em 2003. Tomando-se o subperíodo de 2013 em diante, verificou-se um decréscimo constante dos recursos destinados: em 2013, foram destinados R$ 3,029 bilhões e em 2019 R$ 1,442 bilhão, uma redução de 52,39% em seis anos.

 

 

O total de recursos previstos na LOA para o CNPq para 2020 (R$ 1,371 bilhão) é 4,93% inferior ao orçamento executado em 2019 (R$ 1,442 bilhão) e 54,73% inferior ao orçamento executado em 2013 (R$ 3,029 bilhões).

A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a exemplo do CNPq, tem sido alvo de graves restrições orçamentárias nos últimos anos. A análise da execução orçamentária mostra, como se vê no gráfico a seguir, que os recursos destinados pela União para a instituição foram ampliados de R$ 1,313 bilhão, em 2003, para R$ 3,911 bilhões, em 2019, o que representa um crescimento de 197,79%. Porém, a partir de 2016, verificou-se grave restrição orçamentária: enquanto em 2015, as verbas foram de R$ 9,469 bilhões, em 2019, esse montante caiu para R$ 3,911 bilhões, o que representou uma redução de 58,70% em apenas quatro anos.

 

 

O montante de recursos previsto na LOA para a CAPES para 2020 (R$ 3,077 bilhões) é 21,34% inferior ao orçamento executado em 2019 (R$ 3,911 bilhões) e 67,51% inferior ao orçamento executado em 2015 (R$ 9,469 bilhões).

 

4. Em síntese: a conjugação de várias crises

A grave crise sanitária representada pela pandemia causada pelo novo coronavírus evidenciou a importância da pesquisa e das instituições científicas na busca de soluções para o grave problema que se apresenta. Até mesmo grandes redes de comunicação passaram, pelo menos momentaneamente, a destacar o trabalho dos pesquisadores e das instituições de pesquisa, dentre as quais ganham evidência as universidades públicas brasileiras. Entretanto, as medidas que vêm sendo tomadas pelo governo são pontuais e não permitem nutrir nenhuma ilusão quanto à superação da grave crise estrutural de
financiamento da C&T em nosso país.

A preservação da rentabilidade das grandes instituições financeiras continua a merecer um tratamento prioritário do Estado brasileiro, em detrimento de milhões de cidadãos que serão duplamente atingidos pela pandemia: do ponto de vista biológico-individual e social, com o agravamento de suas condições sociais de existência (emprego e renda). Para comprovar tal afirmação, basta comparar as medidas emergenciais, de combate às consequências da crise sanitária, adotadas pelo governo federal voltadas à população em geral e aquelas direcionadas à proteção do sistema financeiro.

O setor financeiro foi agraciado pelo Banco Central (BCB) com medidas que viabilizam “o maior plano de injeção de liquidez e capital já feito” no Brasil, de acordo com palavras do presidente do referido banco (BANCO …, 2020). Tais medidas ultrapassam o montante de R$ 1,2 trilhão, o equivalente a 16,7% do PIB. No mesmo diapasão, segundo informação do próprio governo (IMPACTO… 2020), as medidas emergenciais direcionadas à proteção dos mais vulneráveis na crise do novo coronavírus e à manutenção do emprego implicam num impacto de R$ 224,6 bilhões. Este valor representa 2,97% do Produto Interno Bruto (PIB). Dentre tais medidas, o auxílio emergencial, o chamado Coronavoucher, voltado aos trabalhadores informais, desempregados e microempreendedores individuais (MEIs) e o
programa voltado à manutenção do emprego deverão custar 149,2 bilhões (IMPACTO …, 2020).

A superação definitiva da crise de financiamento da C&T em nosso país não resultará de medidas pontuais das classes dominantes que dirigem o Estado brasileiro, umbilicalmente vinculadas ao padrão de acumulação rentista. Tal padrão de acumulação dispensa o desenvolvimento autônomo da nação brasileira, dispensa portanto um sistema nacional de produção de C&T, com o necessário e robusto aporte de recursos públicos, que viabilize o desenvolvimento de pesquisas voltadas à superação dos graves problemas que afetam à imensa maioria da população brasileira, como é o caso dos
problemas na área de saúde, dentre muitos outros.

O enfrentamento consequente da crise de financiamento da ciência e tecnologia no Brasil inscreve-se nas lutas mais gerais da sociedade brasileira contra a agenda regressiva atualmente em curso e contra o padrão de acumulação que se consolidou historicamente em nosso país. Não se trata, portanto, somente de uma luta de pesquisadores pela ampliação de recursos orçamentários. A consolidação de um sistema nacional de C&T implica na construção de um projeto autônomo de nação sob a perspectiva das forças do trabalho.

 

 

* Professor de Economia Política na Universidade Estadual do Ceará (UECE). E-mail: [email protected].
** Professor do curso de Enfermagem da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste/Cascavel). E-mail:
[email protected]

1 Os valores de todos os anos estão atualizados para janeiro de 2020 com base no Índice de Preços ao Consumidor
Amplo (IPCA/IBGE).

 

Referências

BANCO Central anuncia conjunto de medidas que liberam R$ 1,2 trilhão para a economia. Governo do Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestao-publica/2020/03/banco-central-anuncia-conjunto-de-medidas-que-liberam-r-1-2-trilhao-para-a-economia>. Acesso em: 8 abr. 2020.

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Orçamento da União: Execução Orçamentária e Financeira da União (2003-2018). Disponível em: <https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao>. Acesso em 27 jan. 2020.

IMPACTO primário de medidas do governo para combater coronavírus é estimado em 2,97% do PIB. Governo do Brasil. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/financas-impostos-e-gestaopublica/2020/04/ impacto-primario-de-medidas-do-governo-para-combater-coronavirus-e-estimadoem-2-97-do-pib> Acesso em 8 abr. 2020.

PAULANI, L. Brasil delivery. São Paulo: Boitempo, 2008.

SIOP. Sistema Integrado de Orçamento e Planejamento. Painel do Orçamento Federal. Disponível em: <https://www.siop.planejamento.gov.br/modulo/login/index.html#/>. Acesso em 8 fev. 2020.

REIS, L. F. e MACÁRIO, E. Dívida pública, sistema tributário e financiamento de C&T no Brasil (2003-2017). In: MACÁRIO, E. et all (orgs.). Dimensões da crise brasileira – dependência, trabalho e fundo público. Bauru/SP: Canal 6; Fortaleza/CE: EdUece, 2018.