Artigo: Sistema da dívida e deterioração salarial no Brasil

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(Leia no site do CADTM)

Na segunda semana de janeiro do ano em curso, após o IBGE divulgar oficialmente a inflação acumulada em 2019, que foi de 4,48% e superou a estimativa do governo, Bolsonaro, acompanhado do ministro da Economia, voltou ao tema do salário mínimo e anunciou que enviaria uma nova MP para o Congresso tratando de fixar, a partir de fevereiro deste ano, o salário mínimo em R$1.045. No dia 31 de janeiro, foi publicada a MP 919/2020 que estabeleceu o salário mínimo nacional em R$1.045 (valor equivalente a US$ 245,30) [3]. Esses movimentos conjunturais em torno da forma salário se relacionam, por um lado, com a atual dinâmica do sistema da dívida, e, por outro lado, com a economia política do salário mínimo subjacente às decisões econômicas (supostamente “técnicas”) do atual governo.

O fato é que, apesar da alteração do salário mínimo de R$1.039 para R$ 1.045, isso não significou qualquer reajuste acima da inflação, ou seja, não houve aumento real para os trabalhadores, mas tão somente uma pequena correção do valor anunciado anteriormente com base numa estimativa de inflação que estava bem abaixo da inflação oficial divulgada em janeiro. Segundo estimativas do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) o salário mínimo é a referência do rendimento de 49 milhões de pessoas do país, portanto, esse é um tema que merece ser amplamente debatido com a população brasileira, para que a mesma compreenda o que está em jogo com determinadas mudanças, principalmente a relação das atuais mudanças na política de valorização do salário mínimo com o aprofundamento do sistema da dívida.

Uma ampla literatura econômica sobre a formação do mercado de trabalho brasileiro enfatiza que a marca desse mercado é a superexploração do trabalho, cujas características são, dentre outras, jornadas de trabalho exaustivas e persistente deterioração salarial. Predomina, no âmbito da iniciativa privada, a superexploração escancarada dos trabalhadores brasileiros e a violação sistemática do artigo 7º (inciso IV) da Constituição de 1988.

Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: […] IV – salário mínimo , fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim. (BRASIL, 1988, Art.7)

A persistente deterioração salarial significa, em essência, que alguém se beneficia (ganha) e alguém perde nesse processo. Como se sabe, quem perde com o rebaixamento salarial é precisamente a classe trabalhadora que vê suas condições de vida piorarem sensivelmente. Uma análise comparativa da trajetória do salário mínimo real e do PIB per capita (PIB por habitante) – conforme apresentada no gráfico abaixo – revela uma grande distância entre a evolução do salário mínimo real e o crescimento da economia por habitante (aumento do PIB per capita). O que o gráfico abaixo demonstra é que a classe trabalhadora brasileira produz cada vez mais, no entanto, o salário mínimo está cada vez mais longe de incorporar esse aumento de produtividade. Em síntese, este gráfico “ilustra” bem a condição brasileira, qual seja: o país está na lista das 10 maiores economias do mundo e também na lista dos piores níveis salariais do mundo.

Gráfico 1: Trajetória do PIB per capita e do Salário Mínimo Real

 

A partir de 2005 a massa salarial cresceu como resultado das mobilizações das coletivas, protagonizadas pelas organizações sindicais. Essas organizações conquistaram uma política de valorização do salário mínimo que passou a vigorar a partir de 2008. Essa política, que foi institucionalizada em 2011 e vigorou até 2019, definiu que o salário mínimo deveria ser reajustado pela inflação do ano anterior acrescido da parte relativa ao crescimento econômico (resultado do PIB) de dois anos anteriores. Em que pesem os limites dessa política, existe um forte consenso reconhecendo o seu papel tanto no processo de aumento do poder de compra dos trabalhadores quanto no dinamismo do mercado interno. Milhões de pessoas do país inteiro passaram a ter a possibilidade de comprar comida para colocar na mesa, de fazer três refeições diárias, coisa que anteriormente era distante da realidade de muitas famílias no país, especialmente daquelas famílias das regiões Norte e Nordeste do país. Segundo o IBGE, em 2019 13,5 milhões de pessoas sobrevivem com até 145 reais por mês, e esse número tem uma maior concentração nas regiões Norte e Nordeste, em pessoas de pele preta e parda, sem instrução ou com formação fundamental incompleta.

A política de valorização do salário mínimo foi rompida pelo governo Bolsonaro, o que não surpreende, tendo em vista que o atual governo expressa o projeto de determinados grupos econômicos que buscam reduzir o preço da mão de obra, capturar o orçamento público e comprar o patrimônio nacional a preço de “queima de estoque”. O compromisso do atual governo é com a agenda desses grupos econômicos (em especial do capital financeiro) que pretende aprofundar o sistema da dívida de maneira agressiva e rápida. Essa dinâmica de intensificação do sistema da dívida e, portanto, de fabricação da crise, vem ocorrendo desde 2015 – abrange a consolidação da agenda de austeridade do ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy e a instalação do governo Temer – e encontra seu auge no governo Bolsonaro.

O sistema da dívida funciona proporcionando os ganhos de curto (e de curtíssimo) prazo dos especuladores (capitalistas que operam no mercado financeiro), ou seja, esse sistema opera para garantir (macroeconomicamente) a rentabilidade dos ativos financeiros. Mas… e como esse sistema se relaciona com os ataques ao salário mínimo? Se para o trabalhador interessa um processo de valorização real do salário, para o capitalista do mundo das finanças interessa a taxa de juros real, que é a taxa de juros nominal descontada a inflação. Portanto, para esse setor da sociedade, o melhor dos mundos é aquele com alto nível de desemprego e redução salarial, uma vez que essa combinação socioeconômica destrutiva forçará o nível de preços da economia para baixo, proporcionando assim maiores ganhos financeiros para suas aplicações.

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Referências

BRASIL. Constituição Federal (1988), Capítulo II – Dos direitos sociais, Art. 7. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em: 10 de fev. 2020.

BRASIL. Medida Provisória n.º 916, de 31 de dezembro de 2019. Dispõe sobre o valor do salário mínimo a vigorar a partir de 1º de janeiro de 2020. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv916.htm. Acesso em: 10 de jan. de 2020.

BRASIL. Medida Provisória n.º 919, de 31 de janeiro de 2020. Dispõe sobre o valor do salário mínimo a vigorar a partir de 1º de fevereiro de 2020. Disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8061003&ts=1581449317384&disposition=inline. Acesso em: 02 de fev. de 2020.
DIEESE. Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos. Salário Mínimo: pela manutenção da valorização!. Nota Técnica 218, 2019. Disponível em: <https://www.dieese.org.br/notatecni…> . Acesso em: 20 de jan. De 2020.

GARCIA, Maria F. Brasil tem 3º pior salário mínimo do mundo, avponta estudo. Observatório do Terceiro Setor, 2019. Disponível em: https://observatorio3setor.org.br/noticias/brasil-tem-o-3o-pior-salario-minimo-do-mundo-aponta-estudo/. Acesso em: 10 de jan. De 2020.

Notas
[1] Medida Provisória n.º 916, de 31 de dezembro de 2019: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Mpv/mpv916.htm

[2] Para maiores informações, ver a matéria: https://observatorio3setor.org.br/noticias/brasil-tem-o-3o-pior-salario-minimo-do-mundo-aponta-estudo/

[3] Considerando a taxa de câmbio nominal do dia 31.01.2020.