Artigo: “Dívida pública, reforma administrativa e o Estado gestor da barbárie”, por José Menezes Gomes

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José Menezes Gomes (professor da UFAL e coordenador núcleo alagoano pela auditoria cidadã)

A Reforma administrativa encaminhada pelo governo federal visa sincronizar o fim do serviço público, usando a dívida pública como justificativa. Usar a dívida pública como justificativa para as reformas neoliberais é parte do ritual seguido por vários governos e partidos nos variados momentos do processo de destruição dos direitos sociais nos mais variados países. A atual reforma administrativa proposta é filha tardia desse processo de estabilização da moeda, desestabilização das contas públicas e da economia ocorrido no brasil desde 1994. Nesse processo ocorreu um movimento de demonização dos servidores públicos pela grande mídia como sendo os responsáveis pelo aumento das despesas públicos e encobrimento da dívida pública como o responsável pelo comprometimento do orçamento público. Na esfera federal o serviço o serviço da dívida se aproxima da metade do orçamento, enquanto nos estados fica perto de 10% da Receita Corrente Líquida.

 

Para entendermos a natureza desse processo temos que ir além do cenário nacional e desse momento histórico, pois se trata de um fenômeno que teve sua ocorrência nos estados que vivenciaram o Estado de Bem Estar e nos estados que não vivenciaram, especialmente nos países subdesenvolvidos. Para entendermos na sua totalidade temos analisar a decomposição do Estado de Bem estar. Durante a sua vigência a ampliação dos serviços públicos foi acompanhada pela ampliação dos direitos dos trabalhadores, incluindo os servidores públicos tendo com destaque o conceito de Seguridade Social.

 

Todavia, essa investigação necessita da percepção do que aconteceu no setor privado e no setor público no final dos anos 1980, quando tem início o desmonte do Estado de Bem estar e a introdução do neoliberalismo, inicialmente na Inglaterra e EUA e depois sua generalização pelo resto mundo, incluindo os países do socialismo real. Na Rússia a restauração capitalista se deu com a adoção da economia de mercado, privatização das empresas estatais e profunda reforma do Estado com ataques aos servidores públicos. Naquele momento o FMI determinou a adoção de política de estabilização semelhante a que ocorreu no brasil e na América latina, que entrou em colapso com a crise Russa e a moratória em 1998.

 

Esta transição da fase do Estado de bem estar, onde ocorreu, para a fase neoliberal foi acompanhada por uma queda da taxa de lucro, especialmente nos EUA, pela aceleração da crise fiscal e financeira do Estado, pela elevação brutal da taxa básica de juros nos EUA de 5% para 20%, que transformou os títulos públicos no objeto de desejo dos capitalistas que viram na queda da taxa de lucro industrial uma oportunidade de ganhos mais elevados na compra desses títulos públicos. Nos EUA o processo de privatização da Previdência e fortalecimento dos fundos pensão acabou permitindo a previdência privada um papel destacado no mercado de títulos e na rolagem da dívida estadunidense. Entretanto, o capital privado que antes estava no setor industrial começa a procurar outras formas de investimentos.

Nessa direção, a Reforma do Estado abriu caminho para que o setor privado produtivo buscasse na redução das funções sociais do Estado espaço para oferecer serviços privados substituindo o Estado num processo de mercantilização dos serviços públicos (saúde, educação, segurança e previdência).

 

Enquanto o neoliberalismo se firmava nos países industrializados no início dos anos 1980, no brasil tínhamos o fortalecimento dos movimentos sociais que levou ao surgimento do PT e da CUT, do movimento da reforma sanitária que auxiliaram a queda do Regime Militar e geraram forças para a Constituição Federal de 1998. Nessa Constituição foi introduzido o conceito de Seguridade Social no brasil, bem como o exigência do concurso público nas três esferas do serviço público, a permissão de sindicalização dos servidores, a estabilidade no emprego e a consolidação dos planos de carreira e de política salarial para se evitar as perdas salariais.

 

Todavia, os ataques aos serviços públicos começaram a medida que os direitos assegurados pela constituição de 88 não foram devidamente assegurados na Lei de Orçamento Anual, que passou a priorizar a política de ajuste fiscal para se obter superávit primário para o pagamento da dívida pública. A evolução dessa dívida está associada a lógica do Plano Real que teve uma amplificação gigantesca em função dos juros altos praticados para se evitar a fuga de capitais. Este fato ocorreu na crise mexicana em 1995, na crise asiática em 1997 e crise Russa em 1998 e depois de 1999 com o fim da âncora cambial e introdução do regime de metas de inflação. Dessa forma a crise capitalista ao se manifestar na periferia capitalista, no primeiro momento, acabou determinando os rumos do desmonte dos direitos sociais para assegurar as condições de pagamento da dívida pública que crescia mesmo com o profundo processo de privatização das estatais impulsionado em 1997, com financiamento público do BNDES, logo após o acordo com o FMI.

 

Vale lembrar que a estabilidade monetária obtida com o Plano Real possibilitou a eleição de FHC que abriu caminho para as várias reformas e o fortalecimento do neoliberalismo e o processo de privatização. Os ataques que agora se manifesta no setor público já estavam ocorrendo no setor privado com a reforma trabalhista, que fortaleceu o processo de terceirização em todos os setores. Da mesma forma a Reforma da previdência, que inicialmente atingiu o setor privado passou a atingir também os servidores públicos, especialmente a partir de 2003, com a permissão de fundos de pensão para o servidores públicos, introduzido em 2012. Todavia, os servidores militares ficaram de fora dessas reformas.

 

Nesse processo tivemos a criação da Lei de Responsabilidade fiscal, em 2000, que procurou estabelecer limites aos gastos com pessoal sem estabelecer limites para os gastos financeiros. Antes disso, tivemos o PROER (Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional) em 1995, quando o União fez um programa de salvação de bancos privados com uso de dinheiro público. Em seguida, foi criado o PROES (Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária) em 1996, que levou a privatização ou liquidação desses bancos, que acabou permitindo uma nova centralização do sistema bancário e desnacionalização, enquanto os estados transformam o passivo desses bancos gerados pelas burguesias regionais em dívida pública.

 

Dessa forma a privatização iniciada no final do anos 1990 continua a ser a amplificadora da dívida dos Estados, enquanto se tenta a cartada decisiva de liquidação dos serviços públicos com a privatização das estatais que ainda restam com dinheiro do BNDES. Enquanto isso, os estados continuam a tomar mais dinheiro emprestado junto aos bancos, fazendo renúncia fiscal para os grande grupos e cobrando impostos de pobres e permitindo ao setor financeiro ganhos ainda maiores. Não troque dívida contraída para favorecer os interesses privados pelas universidades públicas.

 

A Emenda Constitucional 95, que congelou os gastos sociais por 20 anos, já tinha reafirmado a prioridade do dinheiro público com o serviço da dívida pública que assegura aos banqueiros grandes rendimentos, por serem os principais compradores dos títulos públicos. O desmonte dos serviços públicos é parte de uma política mundial proposta pelo Banco Mundial que tem facilitado o agravamento do quadro de barbárie social. Apesar do SUS ter demonstrado ser fundamental no combate ao COVID 19, o que observamos é o aprofundamento da tentativa de liquidação dos serviços públicos. Ao mesmo tempo, o mesmo Estado que propõe o extermínio dos concursos públicos, têm liberado 80% de recursos do BNDES para que o setor privado privatizar as estatais que restaram. Mais grave que isso foi a criação de uma Lei que permite a União comprar títulos podres dos bancos no valor de até R$ 1 trilhão, colocando os banqueiros acima de tudo.

 

O Estado gestor da barbárie é aquele no qual as funções sociais são esvaziadas com a amplificação das privatizações e basicamente ele faz renúncia fiscal para os grandes grupos monopolistas, cobra impostos de pobres, tomar empréstimos junto aos bancos para contratar obras junto às empreiteiras, libera crédito subsidiado ao setor privado, paga juros aos banqueiros, não faz concursos e tenta transformar os servidores públicos em vilões, comprar títulos podres dos bancos, enquanto está inteiramente submetido ao sistema da dívida.

 

Nesse momento, torna-se necessário a unificação dos servidores das três esferas do setor público, juntamente com os trabalhadores do setor privado na defesa dos serviços públicos, denunciando que a dívida pública que está sacrificando o financiando dos serviços públicos, surgiu das ações do estado para favorecer, especialmente o setor privado, seja via renúncia fiscal, sonegação ou da transformação de dívidas privadas feitas junto aos bancos estaduais em dívida pública sem nenhuma contrapartida social. Nessa direção, essa unificação deve ter como ponto unificador o princípio da independência de classe. Não troque a dívida pública vinda dos bancos estaduais pelo fim do serviço público com a reforma administrativa.