O lado oculto da Guerra da Ucrânia
O LADO OCULTO DA GUERRA DA UCRÂNIA
José Menezes Gomes[1]
Quais são os elementos ocultos por dentro da guerra da Ucrânia? Para investigá-lo, faremos um resgate do processo de retomada do papel do Sistema Monetário Internacional privado, do euro mercado de moedas, sobre os países do bloco soviético, antes da queda do Muro de Berlim e da dissolução da URSS em 1991. Destacaremos que a elevação unilateral dos juros pelo Banco Central dos EUA – FED, em 1979, não atingiu apenas países da América latina, especialmente México e Argentina, que tiveram moratória em 1982, mas também nos países desse bloco. Tal fato impactou esses países e abriu caminho para amplificar a crise econômica e politica que levou a restauração capitalista e deu motivo para que o FMI e Banco Mundial tivessem papéis decisivos na incorporação daqueles países aos mecanismos de mercado e às politicas neoliberais, já em aplicação na Inglaterra e EUA desde o início dos anos 1980. A politica de austeridade iniciada com a criação da União Europeia e do euro, em parte, já existia desde 1991.
Focaremos também que na desintegração da URSS, seu processo de privatização e a formação da propriedade privada comandada pelos oligarcas, tanto a Rússia como os demais países do Leste se submeteram as políticas do Banco Mundial e do FMI, elementos que em 1998 levaram à “crise russa”. Resgataremos o processo de constituição da UE, seus objetivos e seus impasses. Ao mesmo tempo, veremos como países que pertenceram ao COMECOM e ao Pacto de Varsóvia, entraram na UE e adotaram e euro e passaram a fazer parte da OTAN, acabaram capturados pela expansão da Alemanha e pelas consequências da política de austeridade da UE. Veremos o quadro da UE e do euro, marcado por crescente endividamento público, mesmo antes da guerra, pelo elevado desemprego, especialmente nos países menos desenvolvidos, pelo baixo crescimento econômico, elevada inflação, elevado endividamento familiar, crescente deslocamento de população dos países do Leste para as economias mais desenvolvidas e retirada de direitos sociais. Observaremos como a Alemanha acabou sendo a grande beneficiada da UE, como essa expansão foi acompanhada pela expansão da OTAN e como a guerra na Ucrânia acabou aprofundando ainda mais o endividamento desses países, comprometendo a possibilidade de cumprirem as metas de pertencimento a UE. A guerra na Ucrânia favorece os EUA ao substituírem as exportações russas de gás e petróleo, e através da exportação de armas para Ucrânia e Taiwan. Na última etapa analisaremos como esse conflito funciona como ponta do iceberg da disputa de hegemonia entre EUA e China, e como essa disputa não oferece nenhumbeneficio para a classe trabalhadora, já que os dois lados pressupõem a manutenção dos mecanismos de extração de mais valia que impulsionam o enriquecimento privado e o empobrecimento social.
O processo de reinserção internacional do bloco soviético, mesmo antes da queda do Muro de Berlim e da desintegração da URSS, em 1991, abriu espaço para a restauração capitalista que levou à sua retomada ampla para a livre exportação de capitais, nas suas várias formas, com ampla atuação das instituições financeiras privadas e das instituições multilaterais, Banco Mundial e FMI. O processo de endividamento externo nos anos 1970/1980 sempre esteve associado aos países subdesenvolvidos, especialmente da América latina e da África, acompanhado das políticas de estabilização e os programas de “ajustes estruturais”, enquanto os países da área de influência da URSS estiveram fora das investigações sobre esse tema. Houve semelhanças entre a política de estabilização praticada em vários países da América Latina e da Rússia, demonstrando sua conexão com o processo de endividamento externo desde os anos 1970. Parte desta semelhança se deve ao processo de endividamento ao que os países do antigo bloco soviético estiveram submetidos desde os anos 1970, sob o “guarda-chuva” da URSS. Faremos um rápido resgate do significado do Sistema Monetário Internacional privado, chamado de “euro mercado”, e suas consequências para o endividamento externo e submissão destes países às instituições multilaterais. O endividamento desses países, anterior a restauração capitalista, nos permite compreender porque, logo após a queda da URSS, o Banco Mundial e FMI tiveram papel central e porque adotaram políticas de estabilização semelhantes. Vale lembrar que o Brasil, naquele momento, era um país importador de petróleo e a URSS era exportadora.
Na América Latina, a dívida externa, desde 1970, foi investigada e denunciada como responsável por parte dos problemas sociais e econômicos. Todavia, os países do antiguo bloco soviético ficaram de fora dessas análises sobre o impacto do endividamento externo. Os reflexos da política econômica de Reagan nos países deste bloco, a partir dos anos 1980, ficaram mais evidentes com a crise da dívida polonesa e seus desdobramentos políticos. Este momento foi marcado pela incapacidade da Polônia de honrar seus compromissos com os créditos de exportação concedidos pelo Brasil. O Brasil teve envolvimento com a Polônia entre 1977 e 1980, quando o país concedeu US$ 2 bilhões em linhas de crédito para a Polônia, recebendo como garantia as “polonetas”, títulos que só poderiam ser resgatados quando o governo polonês tivesse dinheiro para pagar. A dívida da Polônia com o Brasil foi reestruturada no âmbito do acordo do Clube de Paris de 1991. Em 2001 o Banco Central do Brasil e o Ministério das Finanças da Polônia assinaram acordo para o pré-pagamento da dívida com o Brasil, no valor de US$ 2,458 bilhões.
A dissolução da União Soviética em dezembro de 1991 e sua conversão numa economia de mercado se deu com a intervenção do BIRD e do FMI e sua política de estabilização baseada na âncora cambial, que igualou o rublo ao dólar. Tal como no Brasil a introdução da política de estabilização na Rússia exigiu a renegociação da dívida externa. A dívida contraída pela ex União Soviética, com 17 principais países credores, chegava a US$ 65 bilhões em 1991. Metade desta dívida teve seu pagamento congelado ou adiado. Tratava-se da dívida contraída antes de janeiro de 1991. Para tanto a URSS aceitou a adoção do Programa de Ajuste Estrutural proposto pelo FMI para o primeiro semestre de 1992. Antes disso, Rússia, Bielorrússia, Cazaquistão, Armênia, Moldávia, Tajiquistão e Turcomenistão assumiram responsabilidade pela dívida da URSS. A Rússia, que não fazia parte das instituições financeiras multilaterais, acabou adotando uma política de estabilização com os principais ingredientes da política praticada especialmente na América Latina: abertura comercial, privatizações das terras e das empresas estatais, renegociação da dívida externa e desmonte das políticas sociais.
É bom lembrar que tudo isso ocorreu no momento em que a economia dos EUA entrava em grande recessão, em 1991, permitindo aos capitais estadunidenses e europeus uma nova área de atuação. Apesar das diferenças existentes entre Brasil[2] e Rússia, o ponto em comum era que ambas suas economias estavam profundamente endividadas desde os anos 1970, em grande parte no sistema monetário internacional privado chamado de “euro mercado de moedas”, onde os eurodólares eram majoritários. Quando investigamos a evolução da dívida nos vários países e regiões, no período de 1980 a 2002, verificamos que a dívida da Ásia do Leste teve crescimento de 7,9 vezes. Os países do antigo bloco soviético tiveram crescimento de 7,0 vezes. Os demais países ou regiões tiveram crescimentos menores. Já os países da Ásia do Sul tiveram um crescimento da dívida de 4,4 vezes; os países do Oriente Médio de 3,1 vezes, os países da África Subsaariana registraram 3,4 vezes. A América Latina, onde a dívida externa e depois interna teve efeitos devastadores, teve crescimento de 3,1 vezes. Entre 1980 a 2002, a América Latina sofreu com isso consequências devastadoras para sua economia e finanças públicas; para os países do ex bloco soviético os efeitos da políticas de juros altos dos EUA foram ainda mais devastadores.
Quando comparamos o crescimento do endividamento dos países da América Latina com os países do antigo bloco soviético, constatamos que a expansão da dívida foi muito mais elevada nestes últimos. Considerando que a fonte de empréstimos era a mesma, nos resta investigar quais foram os fatores que permitiram essa diferença. Para a Rússia, em especial, tivemos vários fatores. O primeiro foi resultado da própria característica dos empréstimos vindos do mercado privado, baseados em taxa de juros flutuante, que acabaram por permitir o repasse dos efeitos da política de juros altos dos EUA desde 1979 – quando a taxa básica dos EUA subiu de 5% para 20% ao ano – sobre a dívida externa e a dívida pública russas. É bom lembrar que, antes da restauração capitalista, na URSS não existia setor privado. A privatização das empresas estatais e das propriedades coletivas restauraram a propriedade privada, que em grande parte ficou com os oligarcas. Neste momento temos que investigar como ocorreu a transmissão das dívidas das empresas estatais para o Estado russo, enquanto o setor privado que surgia ficava sem estas dívidas e com o patrimônio estatal.
O segundo momento é constituído pelas consequências da introdução da economia de mercado e a adoção da âncora cambial como instrumento de combate a inflação, quando o rublo foi igualado ao dólar, como ocorreu na Argentina com o Plano de Convertibilidade ou “Plano Cavallo”, que impulsionou um grande endividamento público. Esse processo de amplificação da dívida pública foi registrado, especialmente no México, Argentina[3] e Brasil. A terceira etapa foi a crise russa de 1998, quando se impulsionou o fim da sua âncora cambial. A restauração do capitalismo na Rússia e nos demais países do bloco do Leste representou a retomada de mercado para a exportação de capital, que passava por uma etapa de crise de superprodução. Todavia, a restauração capitalista abriu caminho para que em 1998 a Rússia fosse protagonista de uma grande crise que culminou numa moratória, com grande impacto na economia mundial. O colapso vivido pela Rússia teve sua origem no fracasso do modelo de desenvolvimento introduzido com essas reformas, em particular com a expansão da dívida pública, fruto dos juros altos praticados para tentar garantir a âncora cambial, somado aos compromissos para concluir os pagamentos das dívidas junto ao Clube de Paris, frutos dos empréstimos feitos no euro mercado de moedas, seja diretamente pela Rússia ou pelos países que faziam parte do bloco, com garantia russa.
A crise asiática de 1997 contribuiu para o episódio russo de 1998, já que gerou uma retração do crédito e a queda no preço das commodities (agrícolas, minerais e energéticas) exportadas por aquele país. Assim, sem conseguir novos empréstimos para pagar as dívidas com vencimento de curtíssimo prazo, que ultrapassavam os US$ 40 bilhões, nem as de curto prazo, que chegavam a US$ 80 bilhões (até o fim de 1999), Rússia decretou uma moratória da sua dívida externa e desvalorizou o rublo. Segundo Giron, a partir de 1987 a Rússia usou o endividamento externo como estratégia para fomentar sua mudança para uma economia de mercado. Quando o preço do barril do petróleo chegou a cair até US$ 10, em 1998, isso reduziu sensivelmente o valor das exportações russas, e comprometeu sua capacidade de honrar os compromissos externos. Na Rússia de 1998, 50% das transações eram realizadas por escambo, fenômeno inédito na economia moderna. Em agosto de 2006, Rússia declarou ter feito pagamento antecipado da dívida da extinta URSS no valor de US$ 22 bilhões, sendo a maior parte, de US$ 21,3 bilhões, junto ao Clube de Paris. Tal iniciativa foi possível devido a elevação do preço do petróleo, oito anos após a ocorrência da crise russa. Em seguida a agência de risco Fitch Ratings elevou a classificação de risco da Rússia do nível BBB para BBB+, com perspectiva estável. O país, seja na fase da URSS ou na da Rússia, sempre houve uma política de aceitação das regras do jogo do Sistema Monetário Internacional.
O Estado russo manteve o rublo em paridade com o dólar, mesmo quando os efeitos da crise asiática de 1997 já eram grandes. As causas do endividamento russo não vêm apenas do fato de ter contraído empréstimos no mercado privado e de ter ficado prisioneira das flutuações da política monetária estadunidense, mas da vulnerabilidade que a Rússia tinha pelo fato de suas exportações se basearem em commodities (petróleo e gás). A exportação de petróleo foi, especialmente durante os anos 1970, uma fonte de obtenção de dólares, particularmente quando ocorreram as duas elevações de preços nos anos 1970. Sendo assim, a capacidade de obtenção de moeda convertível dependia da cotação deste produto. Com isso as chamadas “crises do petróleo”, de 1973 e 1979, não afetaram negativamente diretamente a Rússia. No entanto, para os demais países exportadores de petróleo o aumento do preço nesses dois momentos serviu para aumentar o volume de capital inativo no euro mercado de moedas, que em seguida foi reciclado nos países latinos americanos, com suas ditaduras, e nos países do bloco soviético, protegidos pela URSS.
Certamente, além dos já conhecidos motivos que levaram a dissolução da ex-União Soviética, temos que agregar a dependência que estes países tinham do euro mercado de moedas como forma de se obter dólares, não só para garantir os compromissos internacionais com outros países, como também para financiar as importações de determinados bens de capitais. Os países desse bloco não participavam nem do BIRD e nem do FMI, não tinham a disposição um sistema de compensação que permitisse honrar compromissos com sua própria moeda convertível em relação ao restante do mundo capitalista. A existência de um Sistema Monetário Internacional privado acabou sendo a fonte para a obtenção de dólares, e ao mesmo tempo para a possibilidade de se submeter ao dólar e às leis estadunidenses. Para o dólar, que estava em crise desde 1971, a entrada no bloco soviético foi uma conquista e redução de risco, já que a URSS dava garantias aos empréstimos tomados pelos países de sua área de influência.
Inicialmente, o fim da convertibilidade do dólar e o início da flutuação cambial, de 1971 a 1973, seguidos pela crescente inflação e pela desvalorização do dólar, ocasionaram a elevação dos preços do petróleo e, por conseguinte, um grande volume de dólares em mãos dos países da OPEP. O euro mercado era o lugar no qual se podiam trocar as principais moedas e emprestá-las a governos e empresas privadas de todo o mundo. Ele se expandiu com o sinal do início da crise de superprodução nos países capitalistas e da manifestação da crise fiscal do Estado. Ele passou a ser a expressão de uma pletora mundial de capitais. Este imenso reservatório de capital inativo vindo de vários países acabou tendo nos países antiguamente soviéticos e da América latina, sob regimes militares, um grande espaço de atuação. A crise das instituições de Bretton Woods (FMI e BIRD) e a afirmação do euro mercado de moedas definiram a transição de um sistema monetário dominado pelos governos, para um sistema orientado pelos grandes bancos privados.[4] Ao se expandir, esse sistema monetário, com suas características peculiares, teve impacto não apenas sobre empresas e Estados (especialmente os subdesenvolvidos), mas também sobre os países do antigo bloco soviético.
Com a crise nos países capitalistas, no início dos anos 1970, teve início uma aproximação com países do bloco do Leste, que também estavam em crise. O euro mercado de moedas representou a obtenção de crédito externo para tentar conter sua estagnação econômica e social. Tais empréstimos visavam a obtenção de créditos comerciais e também de empréstimos de médio e longo prazo, para financiar programas de industrialização. O resultado imediato foi a expansão do volume de comércio do Ocidente com aquele bloco, que cresceu de US$ 20 bilhões, em 1979, para mais de US$ 130 bilhões, em 1981, sendo financiado por essae mercado de moedas, realizado principalmente na Alemanha, França e Itália.[5]. A dívida líquida do bloco cresceu de US$ 7 bilhões, em 1970, para US$ 67 bilhões, em 1981 (valores não atualizados). O deslocamento de capital inativo privado para esse bloco facilitou a transformação do capital inativo em capital produtivo ou estatal, sendo que os Estados assumiram a garantía da totalidade dos rendimentos dos banqueiros. O padrão adotado no processo de industrialização dos países do antigo bloco soviético, naquele momento, era obsoleto e importado do Ocidente, e acabou por depender da importação crescente de insumos, pois se tratava de fábricas prontas que não eram mais competitivas dentro do padrão capitalista de produção dos países desenvolvidos. A exportação dessas máquinas já amortizadas para aqueles países era um grande negócio para os capitalistas.
O mais grave é que os países desse bloco abandonaram a agricultura. Com a crise da dívida, a redução das importações quase paralisou a produção industrial polonesa. A ex – URSS, mesmo sendo considerada “comunista”,[6] detinha nesse mercado uma credibilidade de primeira classe devida às garantias que oferecia para que todos os empréstimos do bloco fossem pagos.[7] Em outras palavras, os países do bloco soviético vivenciaram também o caráter financeiro desta dívida, derivado dos efeitos da política econômica de Reagan quando a taxa básica de juros do FED subiu até 20% ao ano. A moratória mexicana e argentina em 1982 e a crise de crédito na economia mundial foram resultados dessa busca de estabilização do dólar, de combate a inflação estadunidense e de garantia da rolagem da dívida pública daquele país. Muito pouco se tem registrado estudos sobre este impacto nos países do antigo bloco soviético, por mais que tenha sido de graves consequências para as finanças públicas desses países. Pode-se se afirmar que dentre as várias armas usadas durante a Guerra Fria, na disputa entre “socialismo real” e capitalismo, a arma financeira foi muito eficiente, no início dos anos 1980.
Também nesses países, a exemplo dos países subdesenvolvidos, o capital-dinheiro que chegava não resultava em investimentos que levassem à conquista do mercado internacional, capaz de gerar reservas suficientes para o pagamento dos compromissos externos. O sistema de dívida pública não estava desenvolvido dentro dos princípios capitalistas típicos. Ao contrário, tentava-se conter a estagnação econômica com o objetivo de desenvolver o atendimento das demandas internas, introduzindo processos de industrialização sobre novas bases. Todavia, como resultado da pressão da dívida externa, o governo burocrático acabou implementando uma política para reduzir salários e demanda interna, visando atender aos desejos dos banqueiros. A saída da Polônia foi tomar mais empréstimos para pagar os anteriores. Dessa forma, o endividamento assumiu um caráter financeiro. O crescente endividamento externo a partir do euro mercado de moedas, amplificado pelos efeitos da política dos juros altos dos Estados Unidos, acelerou uma relação de dependência, já existente entre os banqueiros e seus devedores. A crise da dívida da Polônia sintetizou o exemplo dos efeitos da crise da dívida em sua estrutura política, no início dos anos 1980. Assim, os problemas do sistema capitalista, manifestados na expansão do euro mercado, auxiliaram na antecipação da crise dos países “socialistas”. Segundo dados do Banco de Acordos Internacionais (BIS), na década de 1970 os empréstimos do euro mercado de moedas para o antigo bloco soviético chegavam a cerca de US$ 70 bilhões.[8]
Os mecanismos de vulnerabilidade externa da Rússia e dos demais países da América Latina, suas crescentes fragilidades na gestão de suas respectivas políticas monetárias em relação à estadunidense, repetiram de forma ampliada a necessidade de atrair capital de curto prazo dos anos 1970. Grande parte desta dependência se deveu aos efeitos da crise de superprodução, cada vez mais acelerada, acarretando um endividamento público cada vez maior, comprometendo ainda mais as políticas sociais. Em 2012 a Rússia perdoou 90% da dívida da Coreia do Norte. A dívida restante seria paga em 20 prestações anuais. Perdoou também a dívida de Cuba que era de US$ 35 bilhões, passando para US$ 3,5 bilhões. Os países que pertenceram ao bloco soviético, que aderiram a União Europeia e à OTAN, acabaram entrando num ciclo de endividamento público explosivo, mesmo tendo anteriormente quase zerado suas dívidas junto ao antigo bloco. Tal fato está relacionado com a lógica da União Europeia e os efeitos da crise de 2008 que impactaram na Europa, tendo como referência a Ucrânia, que mesmo antes da guerra já estava hiperendividada.
Como vimos, o endividamento público dos países do bloco soviético foi em grande parte liquidado, tendo em vista a teoria do “guarda-chuva” – a URSS dava garantia aos países de sua área de influência – especialmente devido à exigência do FMI e Banco Mundial de que a Rússia adotasse uma âncora cambial, visando combater a inflação elevada, e adotasse mecanismos econômicos de mercado. Durante a restauração do capitalismo já estava em andamento a desconstrução do Estado de Bem-estar e o neoliberalismo – políticas de austeridade fiscal e de ataque aos direitos sociais – no mundo capitalista. A criação da União Europeia e a adoção do euro representaram uma mudança de orientação e de afirmação da hegemonia alemã, que começou com o Plano Marshall, entre 1947 e 1951, o perdão de sua dívida pública em 1953. A reunificação com Alemanha Oriental aconteceu em outubro de 1990, quando o território da antiga República Democrática da Alemanha foi incorporado à República Federal da Alemanha, após a queda do muro de Berlim. Isso acompanhou o surgimento de um Estado supranacional, com a ideia de que seria um mecanismo de ampliação de fundamentos que estavam contidos na criação do Mercado Comum Europeu, surgidos na fase da reconstrução europeia e da aplicação do Plano Marshall com recursos dos EUA, quando ainda vigorava o chamado “Estado de Bem-estar”.
Com isso, a UE,[9] que foi pensada no imediato pós Segunda Guerra, se constituiu num mecanismo de proteção dos seus membros dentro das políticas de mundialização do capital, desde os anos 1990, com uma união econômica e política que estabeleceu a livre circulação de pessoas, capitais e mercadorias entre os seus países-membros, além de garantir a segurança e liberdade de sua população, conforme discurso oficial. Tal iniciativa possuiu uma moeda própria, o euro, resultando na eliminação das moedas nacionais, dos bancos centrais nacionais e suas respectivas políticas monetárias nacionais. Também se efetivou a desintegração de instituições consagradas dentro dos Estados nacionais, substituídas pelo Parlamento Europeu, Conselho Europeu, Conselho da União Europeia, Comissão Europeia. Dentro dessas alterações temos o surgimento de um Tribunal de Justiça e o Banco Central Europeu. Era a continuidade e efetivação de argumentos usados no imediato pós Segunda Guerra Mundial, que afirmavam como fundamento a recuperação conjunta e a retomada da paz entre os países do continente afetados pela guerra. Em outras palavras, a União Europeia tinha como objetivo principal, desde a sua criação, a promoção da paz, dos seus valores e do bem-estar de sua população. Com base nesse conjunto de princípios é que foram estabelecidos os objetivos específicos da UE.
Esses objetivos passaram por uma revisão e atualização, e estão agora dispostos no documento chamado de “Tratado de Lisboa”, assinado na capital portuguesa em 2007. São objetivos específicos da UE: livre circulação de pessoas entre os países do bloco; garantia de liberdade, segurança e justiça aos cidadãos europeus; estabelecimento de um mercado interno, com livre circulação de capitais e mercadorias; estabelecimento de uma união monetária (moeda comum) e financeira; criação de condições para o desenvolvimento sustentável; fomento ao progresso da ciência e da tecnologia; combate à exclusão social e às discriminações; proteção e melhorias ao meio ambiente; promoção da coesão social, econômica e territorial entre os países-membros; respeito à riqueza e diversidade linguística e cultural dos seus membros. Todo esse discurso oficial, no entanto, não se confirma quando analisamos o balanço de pagamentos dos países envolvidos, a taxa de crescimento do PIB, o endividamento público, o endividamento familiar, o nível de desemprego, o índice de inflação e os demais indicadores sociais. O que tivemos foi a imposição de uma severa política de austeridade e de destruição de direitos sociais, preparando a UE para o pagamento dos serviços da dívida pública, ao mesmo tempo que os mecanismos de endividamento se tornaram cada vez mais dependentes das instituições financeiras privadas, especialmente dos bancos da Alemanha.
Analisando o que aconteceu na UE, podemos dizer que o combate a exclusão social e as discriminações não se configurou, tendo em vista que os indicadores sociais e tornam cada vez dramáticos em função um baixo crescimento do PIB, além de níveis de desenvolvimento cada vez mais diferenciados dos países-membros, com elevados índices de desemprego, queda da taxa de investimento, endividamento familiar, coesão social cada vez mais ameaçada, com a xenofobia crescente e ascensão dos grupos políticos de origem neofascista, como na Itália e Hungria. Uma consequência importante da elevação do preço do gás e do petróleo para a Europa, que em parte deixou de ser comprado junto a Rússia, sendo substituída pela produção estadunidense, foi a elevação da inflação. Os países mais desenvolvidos da UE tiveram taxas de inflação entre 6,8% e 8,5% (França, Finlândia, Suécia, Itália e Alemanha.) Já os países menos desenvolvidos, em grande parte vindos do Leste europeu, tiveram inflação entre 11,7% a 23,3% (Eslovênia, Croácia, Romênia, Polônia, Hungria, Bulgária, República Tcheca, Lituânia, Letônia e Estônia). Mesmo considerando que as taxas de inflação nos países mais desenvolvidos são menores, se trata de uma inflação muito elevada, que retira o poder de compra dos trabalhadores e impulsiona a luta pela reposição. Todavia, foram nos países mais desenvolvidos da Europa onde foram registradas greves de trabalhadores pela reposição das perdas salarias, inclusive greves gerais. Vale lembrar que a inflação na Zona do Euro foi de 8,9%. Em linhas gerais podemos afirmar que a promessa da União Europeia de oferecer estabilidade monetária não se configurou. Sabemos que parte desta inflação resulta da guerra da Ucrânia, que é parte da disputa de hegemonia entre EUA e China, e da substituição do gás e petróleo russo pelo combustível dos EUA. A inflação elevada na UE e nos EUA gerou perdas para os agentes que fazem transações em dólar e euro.
Quando se trata da pobreza e da exclusão social na UE, segundo dados da Eurostat, um em cada cinco cidadãos da UE se encontrava, em 2020, em risco de pobreza ou de exclusão social. Ou seja, 96,5 milhões de pessoas na UE tinham risco de pobreza, representando 21,9% da população. Trata-se de um aumento face aos 21,1% registados em 2019. No que diz respeito à riqueza e variedade linguística e cultural com a livre movimentação de trabalhadores na UE, se observa que pelo elevado fluxo de trabalhadores dos países menos desenvolvidos em direção aos países mais desenvolvidos e com melhores indicadores sociais, temos a adoção de uma nova língua e dos padrões culturais desses países ricos. Neste processo temos uma progressiva perda de identidade cultural com seu Estado-nação original e assimilação da cultura dos países receptores. Quanto a defesa da paz o que observamos é justamente o contrário: a UE submetida à política imperialista dos EUA, que tem na OTAN instrumento para sua expansão nos países do Leste, tendo como objetivo a China.
Tal fato tem levado a um crescimento dos gastos militares da UE, cortando os gastos sociais, enquanto funcionam como bucha de canhão no conflito com a China pela hegemonia mundial. Na Ucrânia, os EUA e a UE são contra os separatistas que tem identidade com a Rússia e não querem entrar na UE, enquanto na China defendem a independência de Taiwan. Mais grave é que a política de austeridade retirou qualquer possibilidade de políticas sociais que restabeleçam a paz e coesão social, já que a UE não nasceu com o objetivo de restabelecer o Estado de bem-estar, mas de impulsionar mecanismo de amplificação do “Sistema da Dívida”, enquanto permitiu a Alemanha dominar a Europa. No conjunto temos países que restauraram o capitalismo e acabaram servindo de área de expansão econômica e financeira da Europa, com destaque para a Alemanha, mediante o uso dos mecanismos da União Europeia e do euro. Tal processo de dominação econômica e financeira da Alemanha sobre os países menos desenvolvidos da UE e do Leste resulta dos princípios econômicos que lhe possibilitaram, por ser a maior economia da Europa, com a maior competitividade industrial e força dos seus bancos, dentro da arquitetura financeira nova, um grande superávit no seu balanço de pagamentos.
Alemanha passou a ter um grande superávit do seu balanço de pagamentos, com a assinatura do Tratado de Maastricht e o lançamento do euro, em 1º de janeiro de 1999. Vale lembrar que durante os três primeiros anos, tivemos uma moeda usada apenas para efeitos contábeis e para pagamentos eletrónicos. O início da circulaçãodas moedas e notas do euro ocorreu em 1º de janeiro de 2002, em doze países. Além da Alemanha, tivemos outros países que tiveram ganhos com a UE e o euro. Dentre eles podemos citar a Bélgica, Suécia, Noruega, Holanda. A Bélgica teve superávit do seu balanço de pagamentos desde 1984. Este superávit se elevou depois da criação da UE e do euro, mostrando que essas instituições apenasamplificaram uma posição já existente para a Bélgica. Apenas a ocorrência da crise capitalista de 2008 gerou um pequeno déficit que em seguida foi contornado, mantendo o superávit mas em volume menor. No caso da Suécia podemos observar que antes da UE e do euro seu balanço apresentou um momento de deficit. Todavia, logo após manteveum superávit elevado e regular. A Noruega, desde 1980 a 1986, teve um pequeno superávit.
Os balanços de pagamentos revelam que os países menos desenvolvidos, e até mesmo países desenvolvidos da UE, foram prejudicados. Portugal, pelo seu estágio de desenvolvimento menor dentro da UE se manteve, desde 1980, com um déficit grande até 1984. Durante a fase de implantação da UE esteve próximo do déficit. Todavia, logo após as mudanças registrou um grande déficit até 2018, quando obteve um pequeno superávit. A Inglaterra, enquanto fez parte da UE, apesar de ser um país desenvolvido, teve um déficit persistente do seu balanço de pagamento. A França, também considerada um dos mais desenvolvidos dentro da UE, teve uma fase de superávit de 1992 a 2006, e em seguida passou a registrar deficit, especialmente depois de 2008. A Espanha faz parte dos países que foram perdedores com a UE e com o euro, pois passou a registar déficit externo cada vez maior. Todavia, depois de 2013 obteve um pequeno superávit.
A UE passou cada vez mais a expandir seu endividamento publico, principalmente depois da crise de 2008 e da sua repercussão na Europa. Esse processo de hiperendividamento fica mais claro observando a trajetória dessas dívidas de 1998 a 2018. Segundo as regras do Tratado de Maastricht, um país só poderia ter uma dívida total de até 60% do PIB e um endividamento adicional de 3% por ano. Por essas regras, quem desrespeitar esse limite teria que adotar estratégias de longo prazo visando reduzir o endividamento.[10]Todavia desde 2021, temos 18 países que estouraram esse limite da relação endividamento público / PIB e que deveriam ser multados. Entretanto, mesmo os países que se beneficiaram da existência da UE e do euro como Alemanha, França, Bélgica, também tiveram um endividamento público elevado. A Itália já tinha sofrido recomendação da Comissão Europeia, em julho de 2019, de abertura de procedimento de que poderia levar em multas bilionárias. Esse processo de endividamento levou, em 2021, a que 18 países já tivessem atingido ao limite de endividamento, mesmo aplicando políticas de austeridade. Os países que ultrapassaram o limite da UE para a relação dívida/PIB em 2021 foram: Alemanha 60,3%, Holanda 59,7%, Islândia 75,3%, Reino Unido 87,6%, Portugal 135%, Espanha 118,4%, França 112,6%, Itália 150%, Bélgica 109%, Finlândia 66,2%, Hungria 76,8%, Grécia 194%, Albânia 78,1%, Croácia 87%, Eslováquia 59,7%, Áustria 82,3%, Eslovênia 79,8%, Montenegro 83,3%. Esses dados não englobam a nova expansão do endividamento advinda da continuidade dos gastos com a pandemia e dos gastos militares com a guerra da Ucrânia.
Em outras palavras, a política de austeridade acabou levando a um novo patamar de endividamento público que acabou exigindo um novo patamar de austeridade, que exigirá uma nova referência de dívida/PIB dentro da União Europeia e a adoção de mais políticas de austeridade. Apesar dos objetivos específicos da UE, o que tivemos foi a imposição de uma severa política de austeridade e de destruição de direitos sociais, preparando a UE para o pagamento dos serviços da dívida pública, ao mesmo tempo que os mecanismos de endividamento foram cada vez mais vinculados as instituições financeiras privadas, especialmente, junto aos bancos da Alemanha. A UE passou cada vez mais a expandir seu endividamento público principalmente depois da crise de 2008 e da sua repercussão na Europa em 2014.
A Alemanha, maior economia da UE, teve uma expansão de sua dívida pública bruta[11] de US$ 1,13 trilhões a US$ 2,98 trilhões entre 1998 e 2020, sendo que o nível mais alto dos últimos 22 anos foi atingido em 2011. Em 2020, por outro lado, a dívida era de US$ 2,643 trilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 165,9 bilhões. A Holanda elevou seu volume de dívida pública bruta de US$ 213,5 bilhões para US$ 605,5 bilhões entre 1998 e 2021, com variação de 283%. Em 2014 foi registrado o nível mais elevado dos últimos 23 anos. Em 2021, o a dívida era de 529,98 bilhões de dólares. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 25,9 bilhões. Fora da UE, na Rússia, que teve moratória em 1998, a dívida pública bruta variou de US$ 83,6 bilhões a US$ 283,9 bilhões entre 1998 e 2020, ou 339%. O nível mais alto dos últimos 22 anos foi alcançado em 2014. Em 2020, o passivo era US$ 276,15 bilhões. Na Moldávia a dívida pública bruta variou de US$ 900,5 milhões a US$ 4,4 bilhões entre 1998 e 2021, ou 488%. Na Bielorrússia, que não aderiu a UE, a dívida pública bruta variou de US$ 1,3 bilhões a US$ 29 bilhões entre 1998 e 2021, ou 2.230% a mais. O nível mais alto dos últimos 23 anos foi obtido em 2011. Em 2021, a dívida era de US$ 26,44 bilhões.
Na Ucrânia, que deseja entrar na UE e na OTAN, a dívida pública bruta variou de US$ 14,2 bilhões a US$ 97,9 bilhões entre 1998 e 2021, ou 689,4%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 23 anos foi atingida: US$ 98 bilhões. Vale lembrar que esses dados se referem ao período que antecede a guerra com a Rússia. Mesmo a Ucrânia não herdando dívidas junto a URSS, deveria ter tido uma situação favorável logo após sua independência em 1991. Todavia, o processo de restauração capitalista acabou sendo um grande propulsor desse endividamento. Os oligarcas enriqueceram de maneira extraordinária, em detrimento dos bens do Estado, à semelhança do que sucedeu na Federação Russa, na Bielorrússia, no Cazaquistão, no Tajiquistão. Esse processo de aquisição de bens públicos a preço de banana ajudou a formar a propriedade privada e ao mesmo tempo um sistema bancário privado sob o comando desses oligarcas, que em seguida emprestava ao próprio Estado ucraniano. Ou seja, enquanto os oligarcas beneficiavam de toda a espécie de ajudas do Estado, eles próprios emprestavam ao Estado a taxas de juro que lhes garantiam grandes lucros.
O governo ucraniano recorreu a empréstimos externos, emitindo títulos da dívida nos mercados financeiros internacionais, pedindo empréstimos ao FMI e ao BM, levando a dívida a se ampliar nas décadas de 1990 e 2000. Ao mesmo tempo, o FMI condicionou a concessão de créditos mediante a aplicação de medidas neoliberais típicas: liberalização do comércio externo, liberalização dos preços, redução dos subsídios ao consumo das classes populares, degradação de uma série de bens e serviços de base. Além disso, impulsionou os processos de privatização das empresas públicas, acompanhados pela nova exigência de ajuste fiscal para redução do déficit público. Essas políticas de austeridade já ocorriam mesmo antes de se tentar entrar na UE. O fato mais grave é que o FMI, pela primeira vez na sua história, liberou empréstimos para a um pais em guerra, e está condicionando esses empréstimos ao aprofundamento das privatizações e da aprovação da independência do Banco Central.
Vejamos o endividamento dos países que antigamente compunham o “bloco do Leste”, ou “soviético”. Na Hungria, onde há um governo de extrema direita, a dívida pública bruta passou de US$ 25,9 bilhões a US$ 135,9 bilhões entre 1998 e 2021, ou 524% a mais. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 23 anos foi atingida em US$ 136 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de RS$ 12,3 bilhões. Enquanto isso, a Grécia, onde tivemos uma auditoria da dívida pública, a dívida pública bruta variou de US$ 128,6 bilhões para US$ 495,9 bilhões entre 1998 e 2021, ou 385,6%. O nível mais alto dos últimos 23 anos foi alcançado em 2011. Em 2021, a dívida era de US$ 417,95 bilhões. O déficit orçamentário no mesmo ano foi de US$ 16,1 bilhões. Esse país tem a situação mais grave quanto ao volume da dívida e ao comprometimento das políticas sociais. O caso grego revela também que a crise da sua dívida pública em 2010 beneficiou a Alemanha. Segundo o Instituto de Investigação Econômica Leibniz, a Alemanha se beneficiou com a crise grega em mais de 100 bilhões de euros, tendo em vista que as incertezas na economia grega acabavam atraindo capital para a Alemanha, gerando atração da sua economia sobre investidores assustados com a instabilidade grega. Tal atração provocava uma baixa nas taxas de juros sobre as obrigações alemãs.[12]
Na Sérvia, a dívida pública bruta variou de US$ 12,3 bilhões para US$ 35,7 bilhões entre 2003 e 2021, ou 290% a mais. Em 2021, o último ano avaliado, a soma mais alta dos últimos 18 anos foi atingida em US$ 36 bilhões. Enquanto isso a dívida pública bruta da Albânia variou de US$ 1,5 bilhões a US$ 13,4 bilhões entre 1998 e 2021, ou +893%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 23 anos foi atingida em US$ 13 bilhões. No Kosovo, a dívida pública bruta variou de US$ 344,8 milhões a US$ 2,1 bilhões entre 2009 e 2021, ou +610%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 12 anos foi de US$ 2 bilhões. Na Macedônia, a dívida pública bruta variou de US$ 1,6 bilhões para US$ 7,1 bilhões entre 2002 e 2021, ou +443%. Em 2021, o último ano avaliado, a soma mais alta dos últimos 19 anos foi atingida em US$ 7 bilhões. Na Bósnia e Herzegovina, a dívida pública bruta variou de US$ 1,9 bilhões para US$ 8,5 bilhões entre 1998 e 2021, ou +447%. O nível mais alto dos últimos 23 anos foi alcançado em 2014. Em 2021, a dívida era de US$ 8,28 bilhões. Na Croácia, a dívida pública bruta variou de US$ 7,8 bilhões para US$ 54,1 bilhões entre 2000 e 2021, ou +693%. Em 2021, a soma mais elevada dos últimos 21 anos foi atingida em US$ 54 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 2,0 bilhões. Na Eslováquia a dívida pública bruta variou de US$ 7,0 bilhões para US$ 72,5 bilhões entre 1998 e 2021, ou +1.035,7%. Em 2021, o último ano avaliado, a soma mais alta dos últimos 23 anos foi atingida em US$ 72 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 7,1 bilhões.
Na República Tcheca, a dívida púbica bruta variou de US$ 9,5 bilhões para US$ 122,1 bilhões entre 1998 e 2021, ou +1.285%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 23 anos foi atingida em US$ 122 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 16,6 bilhões. Na Áustria, a dívida púbica bruta variou de US$ 130,5 bilhões para US$ 395,1 bilhões entre 1998 e 2021, ou +302,7%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 23 anos chegou a US$ 395 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 28,2 bilhões. Na Eslovênia, a dívida púbica bruta variou de US$ 5,1 bilhões para US$ 46,0 bilhões entre 2000 e 2021, ou +901,9%. Em 2021, a soma mais alta dos últimos 21 anos chegou em US$ 46 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 3,2 bilhões. Na Polônia, a dívida púbica bruta variou de US$ 63,5 bilhões para US$ 362,9 bilhões entre 1998 e 2021, ou +571,5%. Neste mesmo ano, essa dívida chegou ao valor mais alto dos últimos 23 anos, com US$ 363 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 12,7 bilhões. Na Lituânia, a dívida pública bruta variou de US$ 1,8 bilhões para US$ 29,0 bilhões entre 1998 e 2021, ou +1.611%. Em 2021, o valor mais alto dos últimos 23 anos chegou a US$ 29 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 655,9 milhões. Na Letônia a dívida pública bruta variou de US$ 637,4 milhões para US$ 17,4 bilhões entre 1998 e 2021, ou +2.731%. Em 2021, o valor mais alto dos últimos 23 anos chegou a US$ 17 bilhões. O déficit fiscal no mesmo ano foi de US$ 2,9 bilhões.
Para uma maior precisão precisamos ver esse fenômeno diretamente nos países que fazem parte da Zona do Euro. Segundo o Eurostat a dívida agregada dos governos nos 19 países que fazem parte da zona do euro cresceu 1,24 trilhão de euros, passando para 11,1 trilhões, ou 83,9% do seu PIB, em 2019, para 98% em 2020, enquanto o déficit passou de 0,6% para 7,2% do PIB. Isto sem contar com os efeitos da pandemia e dos gastos militares da guerra da Ucrânia. Essa expansão da dívida se deve aos mecanismos próprios da UE, aos crescentes gastos dos Estados nacionais, especialmente depois da crise capitalista de 2008, que exigiu crescentes gastos públicos para socorrer os grandes bancos, ao aumento de gastos para contornar os efeitos da pandemia e aos gastos militares no esforço de expansão da OTAN.
A desintegração política, fragmentação social e colapso econômico da URSS teve impacto interno e acabou também se refletindo em outros países que compunham o bloco do Leste, que passaram por uma grande regressão social, fruto das políticas impostas pelo FMI e Banco Mundial, que desmantelaram as instituições existentes e liquidaram os gastos sociais. Esses países, que não tinham tradição de democracia, continuaram sob formas autoritárias mesmo passando por eleições. Esse processo de desintegração ocorre justamente quando a Guerra Fria teria acabado. É bom lembrar que os efeitos da política de juros do FED em 1979 contribuíram para a aceleração da crise desse bloco. Lembremos que a Guerra Fria desencadeou uma corrida armamentista que, para o bloco capitalista, representou um gasto militar que impulsionou seu complexo industrial militar. A capacidade nuclear de destruição do planeta atingiu 34 vezes. Se esses gastos impulsionaram a economia capitalista durante os “trinta gloriosos”, para o bloco socialista significavam um desvio de finalidade; na dissolução da URSS tínhamos filas de famintos para comprar pão, esperando por uma casa, por roupa, por atendimento médico, filas esperando por coisas básicas, enquanto no outro lado tínhamos um grande volume de ogivas nucleares. A URSS foi muito eficaz em produzir armas e não foi capaz de produzir o que a maioria da população precisava.
Com o fim do motivo da existência da OTAN, que era lutar contra uma possível expansão do bloco soviético, passamos por momento em que, em 2002, a OTAN deu as boas-vindas formais à Rússia, aceitando-a como participante, mas não como membro votante da organização. Moscou teria um papel consultivo no traçado da estratégia da aliança militar ocidental com relação à não proliferação nuclear, a administração de crises, a defesa antimísseis e o contraterrorismo. Os países do Leste foram saudados pelo bloco capitalista enquanto as suas multinacionais e seus bancos invadiam suas economias, coroando uma grande conquista de mercado e uma grande vitória do capitalismo. A crise de 1998, no entanto, foi um sério abalo para a economia mundial. Com o surgimento da UE e do euro, com a entrada de muitos países do bloco soviético na União Europeia, na Zona do Euro e na OTAN, e principalmente com o acirramento da guerra comercial entre China e EUA, fruto da grande expansão da economia chinesa, tivemos o retorno dos ingredientes de uma nova Guerra Fria, agora não mais entre os dois blocos antagônicos mas entre dois países capitalistas que disputam a hegemonia mundial. Os países do Leste entraram na UE e na OTAN no lado dos EUA, mas a Rússia ficou do lado da China. Os aliados dos EUA apoiam a independência da Taiwan da China, mas são contra os separatistas da Ucrânia que não querem entrar na União Europeia e na OTAN. O ano de 1991, ficou mais conhecido pela dissolução da URSS e pela crise do socialismo real, do que pela aceleração da crise capitalista, com a recessão dos EUA; a “grande vitória do capitalismo” encobriu a crise do capitalismo. Logo após a recessão de 1991, nos EUA, tivemos crise mexicana em 1995, crise asiática em 1997, a crise russa em 1998 e a moratória argentina em 2001, a crise da economia ponto.com em 2000 e a grande crise capitalista de 2008.
As crises que ocorriam na periferia do capitalismo se deslocaram para o epicentro capitalista com a chamada bolha da internet em 2000 e com a grande crise capitalista de 2008, quando os Estados nacionais geraram uma grande dívida pública para salvar os grandes grupos financeiros. Segundo Marques e Nakatani, todos os países tinham uma dívida pública de US$ 22,165 trilhões em 2005, que chegou em 2011 até US$ 41, 059 trilhões. Com a intervenção estatal para tentar conter os efeitos da crise foi criada uma dívida de quase US$ 19 trilhões, para tentar conter as perdas no mercado de capitais do mundo, de US$ 30 trilhões em 2008. As políticas neoliberais na UE são impostas pela Troika – nome dado ao conjunto de três entidades que pressionam pela implementação de medidas de ajuste fiscal e de austeridade econômica: FMI, Banco Central Europeu e Comissão Europeia. Os países vindos do bloco soviético acabaram se submetendo ao Banco Mundial e FMI no momento da conversão para a economia de mercado e restauração capitalista, e agora estão submetidos a Troika que impõe a política de austeridade para garantir o pagamento das respectivas dívidas públicas, enquanto ampliaram os gastos militares dentro do esforço dos EUA expandir a OTAN sobre a Rússia tendo como destino a disputa de hegemonia com a China.
Sobre a grande expansão da dívida dos países que compõem a UE, o caso grego pode ilustrar um movimento que está presente em outros países. Para Fattorelli, as conclusões surgidas da auditoria da dívida grega, de que ela fez parte, “revelaram que os mecanismos contidos nos acordos [de resgate do país] eram para beneficiar os bancos e não a Grécia. Para ela o caso grego esconde o segredo dos bancos privados que se revelado poderia colocar a nu as estratégias utilizadas para salvar bancos e colocar em risco toda zona do euro, e toda a Europa”. o mesmo dia em que foi criado, em 2010, o plano de suporte à Grécia, a Comissão Europeia criou uma empresa privada em Luxemburgo e os países europeus se tornaram sócios da mesma, colocando garantias na ordem de 440 bilhões de euros, e que um ano depois chegaram à soma de 800 bilhões. A empresa, explica Fattorelli, serviu para “fazer o repasse de papéis podres dos bancos para os países, utilizando o sistema da dívida”. Paralelamente, também no mesmo dia, o Banco Central Europeu anuncia um programa de compra de papéis no mercado para ajudar bancos privados: “Isso é um escândalo. É ilegal, mas é colocado como se isso tivesse sido feito para salvar a Grécia”. Os países do bloco soviético, da América latina e da África nos anos 1980/1990 foram duramente impactados pela alta unilateral dos juros em 1979 feita pelo Banco Central dos EUA, e pela existência de taxas de juros flutuantes. Todavia, os mecanismos novos de endividamento público surgidos com a União Europeia a partir do modelo de securitização, praticados na Grécia, conforme revelado pela auditoria da dívida grega, são ainda mais perversos que os praticados pelo euro mercado de moedas.
Frei Betto, ao tratar da ameaça da hegemonia chinesa, citou um dialogo divulgado pela Newsweek, onde o ex-presidente Jimmy Carter, ao receber ligação de Donald Trump, preocupado com o crescimento geopolítico da China, disse que a China poderá superar os EUA, tendo em vista que aquele país investe seus recursos em projetos de infraestrutura, ferrovias de alta velocidade, tecnologia 6G, inteligência robótica, universidades, hospitais, portos e edifícios, em vez de usá-los em despesas militares. Enquanto isso os EUA estão gastando em orçamento militar, em 2023, quase US$ 800 bilhões e mantêm mais de 700 bases militares ao redor do mundo. Os recursos vindos do Tesouro dos EUA para a Ucrânia servem para assegurar os lucros do “complexo industrial militar” e dos grandes cartéis do petróleo e gás. Este valor destinado a guerra é várias vezes maior que o Obama Care, que permitiu aos mais pobres um seguro-saúde.
Os gastos militares totais na Europa chegaram a US$ 418 bilhões em 2021, valor 3% maior do que em 2020 e 19% a mais do que em 2012. Parte destes gastos se deve ao papel submisso da UE aos interesses estadunidenses de expansão da OTAN, dentro da política de confronto com a Rússia tendo como objetivo final o enfrentamento com a China. Os gastos militares globais ultrapassaram pela primeira vez a marca de US$ 2 trilhões no ano de 2021, um recorde, de acordo com informações publicadas pelo Instituto Internacional de Pesquisa para a Paz de Estocolmo, na Suécia (SIPRI). Os EUA, após a retirada humilhante do Afeganistão depois terem gasto trilhões de dólares, terceirizaram com a OTAN uma guerra contra a Rússia que objetiva atingir a China, dentro de sua disputa pela hegemonia mundial. Segundo os dados do projeto Costs of War, da Brown University, que monitora o investimento público estadunidense, os EUA já teriam gastos US$ 8 trilhões na “Guerra ao Terror”, desde 11 de setembro de 2001. Deste volume gigantesco, US$ 2 trilhões foram despendidos na guerra do Afeganistão.
De acordo com Stephanie Savell, codiretora do projeto, mais da metade do orçamento anual do Pentágono é direcionado para as companhias do complexo industrial militar que fabricam armas, treinamentos e até alimentação e logística, permitindo lucros elevados a um setor que tem um grande papel naquela economia. Esta atividade acaba por fazer conexão com o setor financeiro, porque estas guerras são financiadas e acabam levando aqueles países a elevar ainda mais sua dívida pública e o desembolso com juros que são apropriados pelos grandes rentistas.[13] Os Estados Unidos gastaram mais na “Guerra ao Terror” do que na segunda Guerra Mundial. Os US$ 85 bilhões gastos dos EUA no apoio a Ucrânia no conflito com a Rússia parecem insignificantes em relação aos gastos referentes a “guerra do contra o terror”. Segundo o FMI, são necessários US$ 50 bilhões para acabar com a fome no mundo. Para os EUA o conflito China-Taiwan é um grande negócio, já que só em 2020, venderam armamentos superiores a US$ 5 bilhões a Taiwan.
Rússia era responsável por 40% de todo o gás consumido na Europa e até 60% em países como a Alemanha. Com a retração da oferta Russa devido as retaliações tomadas por aqueles países, os EUA se tornaram o maior fornecedor de combustível para a Europa em 2022, com mais de 70% das importações de gás natural da Europa, cobrando preçosastronómicos, que acabaram levando a explosão dos preços do gás, o que impacta no custo de energia e na inflação nestes países. Com isso os consumidores passaram a pagar mais pelo gás e petróleo, transferindo seus recursos para os exportadores dos EUA. Os europeus pagam aos EUA quatro vezes aquilo que o fabricante cobra. Esta elevação da inflação tem levado a perdas salariais crescentes e impulsionando um movimento grevista, especialmente na Inglaterra, Alemanha e França. Nos EUA temos uma inflação de 8% ao ano, em 2022 que tem levado a perdas para os países exportadores de petróleo que usam o dólar como moeda de pagamento. Isso se deve ao fato da UE ter proibido as importações de petróleo bruto russo transportado por via marítima. Vale lembrar que os EUA agora extraem petróleo e gás natural em abundância do xisto por meio de fratura hidráulica, bombeamento de água e produtos químicos em poços profundos para fraturar rochas e extrair recursos que eram considerados irrecuperáveis. Os riscos para o meio ambiente dessa modalidade de obtenção de petróleo e gás tem sido apontados pelos danos que podem gerar ao meio ambiente, principalmente na poluição da água usada em quantidades colossais na técnica de exploração chamada de faturação hidráulica, com possível contaminação dos lençóis freáticos. Por outro lado, a Rússia encontrou novos compradores para o seu petróleo, especialmente a China e Índia, com um grande desconto, vendendo por US$ 54 o barril, em comparação com US$ 78 o barril do petróleo Brent, a referência global.
Enquanto vivemos uma etapa nova da crise capitalista desde 2008, constatamos um grande volume de empresas que saíram da Rússia em apoio aos EUA e a OTAN, como parte dos embargos econômicos a Rússia. Eis as marcas, grandes grupos monopolistas mundiais, que tinham ganho mercado com a restauração capitalista desde 1991: Visa, Mastercard e American Express, Deutsche Bank, BP (do setor de petróleo e gás, que calcula prejuízos de cerca de US$ 25 bilhões ao desfazer sua parceria com a Rosneft, petroleira russa), Shell (pode ter sacrificado até US$ 3 bilhões por deixar seus empreendimentos com a Gazprom), Exxon, Equinor, Total Energies, Maersk, ONE, MSC e Hapag Lloyd, McDonald’s, Coca-Cola, Starbucks, Boeing, Airbus, Loreal, EY, PwC e KPMG, Apple, Ikea, Spotify, paypal e TikTok, Diageo, Nike (tinha mais de 100 lojas na Rússia), Adidas, Inditex, Alstom, Daimler, Renault, Volvo, Harley Davidson, GM e Jaguar Land Rover, Toyota, NokianTyres, UPS, FedEx e DHL, Oracle, Fundo Soberano da Noruega, AerCap, Disney, Sony e Warner, Netflix, Facebook, Twitter e Microsoft, Amazon Web Services, Heineken, Prada, Chanel, LVMH, Hermès, Goldman Sachs, Unilever, Inditex, Nestlé, Ford (que tinha três fábricas que produziam veículos na Rússia por meio de joint-venture), etc.
Antes da dissolução da URSS, em 31 de janeiro de 1990, milhares de russos fizeram fila para entrar na primeira filial do McDonalds no país, em Moscou. O primeiro McDonald’s, tinha capacidade para 700 clientes e por anos foi o maior ponto de venda da empresa no planeta. A Coca-Cola, Pepsi e McDonald’s eram os símbolos da ocidentalização da Rússia. Trinta e dois anos depois, o McDonald’s com 850 filiais, se retirou da Rússia. Este processo de saída acabou significando uma nova nacionalização ou substituição de alguns produtos por similares nacionais. Essa saída da Rússia foi acompanhada pela chegada de empresas chinesas. Essa fuga em massa das multinacionais teve um grande custo para as matrizes dessas empresas, justamente num momento em que a economia mundial teve uma retração, fruto da pandemia da Covid 19.
Se um dos desejos de Hitler era estabelecer um sistema de dominação alemã na Europa, esse fato se concretizou com a lógica da UE, usando sua elevada competividade industrial, sua supremacia financeira e seu poder dentro deste Estado supranacional, sem corrida armamentista, sem invadir a Rússia, mas usando o apoio dos países que pertenceram ao bloco soviético. Esse armamentismo agora se faz pela OTAN e associado aos interesses imperialistas dos EUA na disputa com a China. Na restauração capitalista tivemos não só a retomada dos mecanismos de mercado, como a privatização e desnacionalização de grande parte das empresas estatais, como também introdução das políticas de estabilização, especialmente na Rússia que adotou uma âncora cambial semelhante a ocorrida no Brasil, Argentina e México. Todavia, em 1998, a Rússia declara moratória e acaba por abalar a economia mundial. Naquele momento, a Rússia acabou assumindo e pagando todas as dívidas junto ao “Euromercado”, próprias ou dos países que faziam parte do Leste Europeu. Todos os países que fizeram parte do bloco soviético saíram sem dívida pública externa e acabaram se incorporando a UE, onde passaram a se submeter aos banqueiros alemães, franceses e ingleses, estando hoje endividados e submetidos às políticas neoliberais ou de austeridade que nortearam a criação da UE e do euro.
Esse processo fica mais claro quando investigamos o caso da Ucrânia: 31 anos após a Rússia ter liquidado quase toda a dívida daquele país, ele estava entre os mais endividados. Ucrânia tem uma dívida externa pública e privada de US$ 130 bilhões, metade do setor público. Em se tratando de dívida pública interna, o poder público deve US$ 40 bilhões. Vale lembrar que a dívida pública surgida sobre títulos soberanos chegou em 2021 a US$ 20 bilhões, fruto de 14 emissões regidas pela lei inglesa. Em se tratando da dívida externa pública com FMI, em 2021 era de US$ 13 bilhões, enquanto a dívida junto ao Banco Mundial (BM), ao Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD) e ao Banco Europeu de Investimento (BEI), ela chegava a mais de US$ 8 bilhões. Desde o início da guerra, a dívida pública da Ucrânia aumentou com os novos créditos junto ao FMI e o Banco Mundial, de US$ 5 bilhões. Além disso, o governo emitiu novos títulos de dívida, chamados títulos de guerra, de US$ 2 bilhões. Vale lembrar que no processo de restauração capitalista tivemos as privatizações e constituição de oligarcas que concentram parte da riqueza antes estatal, inclusive no setor financeiro, que hoje emprestam dinheiro ao Estado ucraniano. Em outras palavras, repetem o mesmo fenômeno que ocorreu na Rússia, comandado economicamente por esses oligarcas.
Em julho de 2022, a Ucrânia solicitou a seus credores um congelamento de US$ 20 bilhões de juros vencidos, visando um alívio temporário da sua crise fiscal e financeira. Em qualquer dos cenários dos pós-guerra este país já está ameaçado de ter um destino ainda mais dramático, tendo em vista o tamanho da dívida e a fragilidade de sua economia, que facilitarão o processo de privatização e desnacionalização. Para a população isso significará a adoção da política de austeridade fiscal própria da UE, somada a destruição da infraestrutura, que exigirá novos gastos, mais empréstimos externos, e submissão ainda maior ao sistema da dívida. Tudo isso resulta da iniciativa de entrada na UE, mas principalmente da entrada na OTAN. A Ucrânia tem como sonho aquilo que para alguns países já levou a desilusão. Podemos observar na UE que alguns países foram beneficiados, especialmente aqueles já eram mais competitivos, como a Alemanha, enquanto a maioria dos países da Europa foram os grandes perdedores com retirada das barreiras tarifárias, fim dos bancos centrais, das moedas nacionais, do surgimento do parlamento europeu e da sobreposição das leis europeias sobre as leis de cada país. A síntese da crise da UE é revelada pelas taxas pífias de crescimento, pelo hiperendividamento público, principalmente com os efeitos da crise de 2008, elevado desemprego, e perda da competitividade internacional com a sobrevalorização do euro.
Com a dissolução da URSS, a Rússia deu início a uma inserção no sistema financeiro internacional., antes disso a URSS e os países do Leste europeu tinham relações com o euro mercado de moedas. Na década de 1990, a Rússia contou principalmente com empréstimos do FMI, dso Banco Mundial e do BERD para apoiar sua transição para uma economia de mercado. A etapa seguinte foi a total integração russa, incluindo seus bancos e instituições privadas, de posse dos seus oligarcas (ex membros da burocracia stalinista), resultando em crescimento da dívida externa. Tudo isso só foi possível após a Rússia pagar todas as suas dívidas e asa dos países do Leste, incluindo Cuba e Coreia do Norte. A recessão americana de 1991 foi acompanhada pela recuperação dos mercados perdidos, seja para seus bens de capital, capital-mercadoria ou capital-dinheiro. A introdução da âncora cambial exigia da Rússia a abertura comercial e a adoção da políticas de juros altos, que atraia parte do capital especulativo mundial para compor as reservas cambiais artificiais mediante elevação da taxa de juros e da expansão da dívida pública. Segundo Kravchuk, a Ucrânia, desde os anos 1990, ficou atrás de outros países do antigo bloco soviético, sob os efeitos da crise capitalista de 2008, da pandemia e da guerra em curso desde 2014, aprofundados pelo conflito com a Rússia. Fez muitos empréstimos junto ao Fmi e à Comissão Europeia. Tal fato tem levado o serviço da dívida a ficar com uma parcela crescente dos gastos públicos; os empréstimos acabam por exigir as reformas estruturais neoliberais.
Segundo o Banco Mundial a economia ucraniana teve retração de 30% em 2022 em função da guerra. Tal fato, vai refletir nas receitas do estado e que por sua vez resultará em novos empréstimos externos, seja junto aos oligarcas nacionais ou das oligarquias financeiras internacionais e entidades multilaterais. Para um país que na sua independência tinha quase zerada sua dívida pública e está neste patamar antes da guerra, fica claro que a restauração capitalista significou a saída da área influência Russa e suas formas de dominação e entraram numa área dominação dos históricos países imperialistas e suas formas de espoliação e dominação financeira, que se revelaram avassaladoras sem que tenha usado recursos para se destinado a reestruturação e produtiva e a políticas sociais. A pequena diferença da possível mudança da área de influência é que entrando na UE adotarão o Euro e permitirão a grande partede sua população um passaporte europeu para trabalho precário dentro da UE, processo semelhante aos demais países que pertenciam ao bloco soviético.
A UE foi a forma mais avançada de imposição das políticas neoliberais em seus países-membros e da política de austeridade e desnacionalização dos capitais dos países menos desenvolvidos. A UE serviu para a criação de um Estado supranacional, com uma nova dominação sobre os países menos desenvolvidos da Europa, usados para enfrentar a Rússia e a China na disputa pela hegemonia mundial. Os países do Leste europeu que viveram invasão dos capitais europeus e tiveram uma grande desnacionalização, explosão do desemprego, desmantelamento das políticas sociais, tinham a oferecer suas respectivas entradas na OTAN, com elevação dos seus gastos militares e funcionando como bucha de canhão dos grandes da UE e dos EUA no enfrentamento a Rússia, com o objetivo de atingir a China na guerra comercial e na disputa da hegemonia mundial. O conflito na Ucrânia se revela como parte do conflito entre EUA e China, acompanhado por uma guerra comercial como parte dessa disputa; a China restaurou o capitalismo e deverá superar os EUA economicamente. No meio deste processo temos países que pertenceram ao COMECON e ao Pacto de Varsóvia, que migraram para a UE e para a OTAN e que tiveram suas dívidas liquidadas pela Rússia, quando da desintegração da URSS.
Os ucranianos conquistaram sua independência política em 1991. Entretanto, estão cada vez mais dependentes de credores externos e dos banqueiros oligarcas nacionais e estrangeiros. Cada empréstimo novo do FMI resulta em novas condicionalidades que implicam mais austeridade e aprofundamento das privatizações e desmonte de direitos sociais. O fato mais grave e revelador é que o FMI está exigindo a independência do Banco Central ucraniano. Tal fato significará a dominação direta dos destinos do fundo público para os rentistas. Isso tudo ocorre no país mais pobre da Europa, disputando com Moldávia, mas que ainda possui as terras mais férteis do continente. Segundo dados da ONU, em 2020 a Ucrânia já ocupava o oitavo lugar no mundo em termos de migração de força de trabalho, milhões de ucranianos já tinham partido para países-membros da UE oriental, como Polônia, República Tcheca. Os imigrantes ucranianos substituíram a força de trabalho que já tinha deixado esses países em busca de uma vida melhor na Alemanha, Grã-Bretanha e outros países centrais. Com a guerra, observamos a chegada de mais de cinco milhões de me3mbros força de trabalho mais qualificada vindos da Ucrânia para se integrar à sociedade europeia. Isto já está ocorrendo mesmo antes da pretensa entrada deste país na UE. O que já aconteceu com os demais países que pertenceram ao bloco soviético, e que entraram da UE, poderá ser ainda mais dramático devido ao caos social e econômico de um pais destruído pela guerra, pelas privatizações, redução dos direitos sociais e total submissão às instituições financeiras multilaterais e privadas, que irão definir toda a lógica da política econômica submetida a política monetária voltada cada vez mais para garantir o pagamento do serviço da dívida.
Em março de 2020 a UE derrubou o limite de endividamento público dos países do bloco de 60% em relação ao PIB, para que se pudesse combater os efeitos da pandemia. Naquele momento foi proposto ativar a chamada “cláusula de escape geral”, que dispensou os países-membros de cumprir metas orçamentárias e de controle fiscal. Com isso surgiu o desafio de definir o novo marco europeu de gastos públicos. Vale lembrar que parte destes gastos de combate a pandemia foi direcionada a salvar empresas que alegaram dificuldades financeiras, enquanto prosseguiam os ataques aos serviços públicos e o aumento dos gastos militares de suporte a OTAN. Os países que pertenciam ao antigo bloco soviético aderiram a UE e acabaram sendo incorporados pela política de austeridade que levou obrigatoriamente ao combate às políticas sociais e mesmo as políticas desenvolvimento que poderiam minimizar o quadro social delicado que já apresentavam. Os países que entraram na UE possibilitaram aos seus habitantes terem um passaporte europeu, permitindo que pudessem se deslocar legalmente para realização de trabalhos precários nos países mais desenvolvidos, enquanto seus países deixavam de ter Bancos Centrais e moedas nacionais, e suas leis passaram a se submeter ao Parlamento e à legislação europeias. Além disso, o peso político que possuem dentro da UE é insignificante na determinação da política econômica.
A independência política da Ucrânia foi acompanhada pela total submissão a oligarquia financeira internacional, que poderá ainda se aprofundar ainda mais conforme o que aconteceu com os demais países que pertenciam antes ao Pacto de Varsóvia e que agora fazem parte da União Europeia e da OTAN. A Ucrânia pretende entrar na UE quando essa já está sendo questionada em vários países-membros. Fazer a atual guerra, com um custo financeiro e humano tão elevado, só favorece aqueles que estão emprestando os recursos e em seguida vão querer parte do patrimônio ainda estatal. Os países do Leste europeu eram parte de uma divisão regional do trabalho que de certa forma repetia o que acontecia no bloco capitalista, se especializando em atividades primárias, enquanto a Rússia assumia o papel industrializante. Essa relação fica mais evidente no caso da Ucrânia, que era um grande celeiro do antigo bloco e agora o é do bloco capitalista. A entrada dos países do Leste na UE manteve essa mesma divisão num momento de aprofundamento da crise capitalista. Tanto a Rússia quanto os países que faziam parte de sua área de influência passaram por um processo de restauração capitalista em que as propriedades estatais foram privatizadas e da mesma forma tivemos a constituição de um sistema bancário privado, que acabou ficando na mão de antigos burocratas da era stalinista. Tal fato fortaleceu a constituição de oligarcas que passaram ter o controle dessas propriedades agora na forma privada. Neste processo fazer parte da antiga estrutura de poder era condição fundamental para parte da nova classe dominante e das novas configurações do Estado, que agora gere os interesses privados nacionais e estrangeiros.
A guerra da Ucrânia é a ponta do iceberg que encobre o conflito fundamental na disputa de hegemonia entre EUA e China, tendo como novos atores os países que restauraram o capitalismo, seja os fizeram parte do Leste Europeu e do Pacto de Varsóvia e que entraram para a UE e OTAN, seja a Rússia, que foi a protagonista durante a Guerra Fria, seja a China, que já é a segunda economia mundial e que poderá antes de 2030 ser a maior economia do globo. No meio de tudo isso temos a União Europeia, que serviu para assegurar a expansão alemã pelo continente, mas que vive uma crise prologada com baixo crescimento econômico, elevado endividamento público, perda de competitividade internacional, elevado desemprego, destruição progressiva das políticas sociais fruto de sua política de austeridade, grande deslocamento da população dos países menos desenvolvidos para os países mais ricos e expansão eleitoral da extrema direita, crescentes gastos militares no apoio a Ucrânia, onde os países do Leste europeu repassam seus armamentos da era soviética para a Ucrânia e compram armamentos novos dos EUA. Enquanto isso, os EUA, que já tiveram gastos astronômicos com a “guerra antiterror” e foram derrotados no Iraque e do Afeganistão, continuam incentivando a expansão da OTAN e o conflito entre Taiwan[14] e China. Ao mesmo tempo, vendem petróleo e gás para a UE por preço mais elevado. Além disso, aquecem sua economia com as vendas de armas para a Ucrânia e Taiwan, e mesmo assim estão cada vez mais endividados e com déficit do balanço de pagamento, com uma elevada inflação. Por outro lado, continuam a se endividar para salvar seus bancos, numa nova etapa de crise na qual destinou US$ 300 bilhões para salvar dois bancos ligados ao vale do silício. Todavia, continua com todo os serviços públicos privatizados.
De um lado, temos ucranianos que falam russo e se consideram russos e que não querem fazer parte da Ucrânia e da OTAN. Do outro lado, ucranianos que querem entrar na UE e na OTAN e não sabem que a UE está em crise e que sofrerão a política de austeridade que já vivenciam desde 1991, quando se tornaram independentes e submeteram as políticas do FMI e Banco Mundial. Não sabem que, uma vez na UE, o seu país vai ser entregue aos grandes grupos econômicos e aos barões do agronegócio do mundo. O prêmio de consolação será ter um passaporte europeu para poderem fazer trabalhos precários em outros países. Assim temos, a Europa decadente tentando se expandir pelos países do antiguo bloco soviético a serviço do imperialismo estadunidense e no enfrentamento da nova grande potência. Não encontramos nos dois lados do conflito (EUA x China) um programa político que tenha como objetivo questionar o modo de produção capitalista e suas relações sociais de exploração, buscando alternativas próprias da classe trabalhadora.
Referências Bibliográficas
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La URSS aplaza el pago de las deudas de Polonia por cinco añoshttp://elpais.com/diario/1981/08/16/internacional/366760812_850215.html
Toussaint, Eric. Porquê anular a dívida da Ucrânia? CADTM, Bruxelas, 22 de abril de 2022
[1] Professor de Economia na Universidade Federal de Alagoas; coordenador do núcleo alagoano pela auditoria da dívida e membro do Observatório de Políticas Públicas e Lutas Sociais da UFAL.
[2]O Brasil teve uma etapa de endividamento externo baseado nas instituições multilaterais, quando os empréstimos privados entraram em colapso, especialmente nos anos 1980.
[3] A dimensão desse endividamento na Argentina, fruto da igualação do peso ao dólar, levou a moratória de 2001.
[4] Esse movimento de privatização do sistema monetário internacional foi tratado por Griffith-Jones e Sunkel.
[5] Valores não atualizados
[6] Por esse motivo a URSS nada fez para apoiar a mobilização do cartel dos devedores, inicialmente proposto por Cuba e Nicarágua, nos anos 1980.
[7] Esse fenômeno ficou conhecido como “teoria do guarda-chuva”; consistia no fato da União Soviética se responsabilizar pelos empréstimos dos países daquele bloco.
[8] Valor não atualizado
[9] Sua constituição fez parte da formação de blocos econômicos próprios da mundialização do capital, como o NAFTA (EUA, Canadá e México), o Mercosul, a Associação das Nações do Sudeste Asiático (Asean – do inglês Association of South East Asian Nations),Asia-Pacific Economic Cooperation(Apec) e BRICS.
[10]A Itália já tinha sido ameaçada de punição em 2019.
[11] A dívida pública bruta é a soma das quantias de dinheiro que devem ser pagas a outros Estados e comunidades, mas também a municípios ou instituições nacionais. Não estão incluídos na dívida bruta, no entanto, os créditos que o próprio Estado tem sobre os outros.
[12]https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/alemanha-lucrou-mais-de-100-bilhoes-de-euros-com-a-crise-na-grecia-diz-estudo-878/
[13]Ver https://www.poder360.com.br/internacional/guerra-ao-terror-custou-us-8-tri-para-os-eua-em-20-anos/
[14]Desde o final do século do século XIX Taiwan foi ocupada pelo Japão, sendo devolvida à China continental no final da Segunda Guerra Mundial. Quando o Tratado de Devolução foi concluído, em 1953, o Kuomintang já tinha se instalado em Taipei, capital de Taiwan.