Recuperação Fiscal e Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag): SOLUÇÃO OU POSTERGAÇÃO

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O estoque da dívida bruta do Governo Geral, em novembro de 2024 alcançou cerca de R$ 9,091 trilhões, em valores correntes consolidados. Desse total, cerca de R$ 765 bilhões são considerados dívidas dos governos estaduais. Dessas dívidas, mais de 96% são referentes a cinco unidades da Federação: São Paulo (R$ 287,5 bilhões), Rio de Janeiro (R$ 171,8 bilhões), Minas Gerais (R$ 157,7 bilhões), Rio Grande do Sul (R$ 99,6 bilhões) e Goiás (R$ 18,4 bilhões).

Com a criação do Plano Real, em 1995, pelo então ministro da Fazenda, Fernando Henrique Cardoso, a inflação média, que entre janeiro de 1994 e dezembro daquele ano havia atingido 587%, caiu drasticamente para 1,70% em janeiro de 1995. Isso levou a uma brusca redução da circulação da nova moeda, comum tremendo estreitamento de liquidez da economia. Em consequência, o setor bancário entrou em crise, já que 60% de suas receitas eram provenientes da especulação financeira.

Com a crise bancária, o Governo foi obrigado a instituir o Proer, ou Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional, em novembro de 1995, para salvar bancos privados, e o Proes (Programa de Incentivos à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária), para salvar bancos públicos. Se a situação estava tão difícil para os bancos, imagine-se para os Estados brasileiros.

A maioria desses Estados precisava de ajuda do Governo federal. Então o presidente da República aprovou e sancionou a lei n0 9496/1997, que refinanciou as dívidas estaduais –  uma dívida tecnicamente “nula”, no valor de aproximadamente R$ 112 bilhões. Até a presente data, foram pagos mais de R$ 400 bilhões. Mas restam a pagar inacreditáveis R$ 610 bilhões. Considerando todas as dívidas dos governos estaduais, o saldo a pagar ultrapassa R$ 765 bilhões.

Não há esforço fiscal nos Estados que possa suportar essa situação. Mas não é só isso. Além do que tomou dos Estados, os Governos federais se recusaram a lhes devolver algo como R$ 637 bilhões por conta da chamada Lei Kandir, como compensação financeira legal pelo que eles foram obrigados a deixar de recolher em ICMS, seu principal imposto, sobre exportações de produtos primários e semielaborados, que receberam imunidade tributária. Se deflacionados, esses valores alcançam a casa de R$ 1 trilhão. Se quitado, eliminaria de uma vez a crise fiscal dos Estados. No caso do Rio de Janeiro a perda de receitas de ICMS ultrapassa R$ 50 bilhões.

Entre 1999 e novembro de 2024, o Estado do Rio de Janeiro pagou à União mais de R$ 30 bilhões de serviço da dívida (Juros + Amortizações), em valor corrente. Deflacionando os valores pagos, ano após ano, entre 1999 e 2024 – sem considerar os anos sem pagamento -, o Estado do Rio de Janeiro pagou mais de R$ 69 bilhões. Mesmo assim, o estoque da dívida pública explodi uno mesmo período, passando de R$ 13,5 bilhões para R$ 94 bilhões, em valores correntes. Os números não batem e, de pronto, se constata que a questionável dívida originalmente refinanciada já foi paga mais de duas vezes e ainda assim seu estoque se multiplicou por quase sete!

 

 

O saldo da dívida financeira do Estado do Rio de Janeiro, em novembro de 2024, alcançou aproximadamente R$ 213 bilhões. Desse total, cerca de R$ 171,76 bilhões ou 80,64% é a referida dívida com a União, dividida da seguinte forma: Lei 9496/1997 = R$ 94 bilhões + Regime de Recuperação Fiscal = R$ 77,5 bilhões. Não se especifica detalhadamente qual a origem dos valores inseridos que resultaram nas “dívidas” que se encontram dentro desse “Plano”.

A situação financeira do Estado do Rio de Janeiro tornou-se insustentável.
A solução apresentada pelo governo Temer foi a aprovação da Lei Complementar n0 159/2017, o tão decantado Regime de Recuperação Fiscal. Essa lei institui o Regime de Recuperação Fiscal dos Estados e do Distrito Federal e altera as Leis Complementares no 101, de 4 de maio de 2000, e n0. 156, de 28 de dezembro de 2016, consolidando o saldo da lei 9496/1997 e outras. O conceito de consolidar no meio econômico é perpetuar uma dívida. Dívida essa sem total transparência.

Em setembro de 2017, o então governador do Rio de Janeiro, Luiz Fernando Pezão, assinou a adesão ao Regime de Recuperação Fiscal. O Estado do Rio de Janeiro foi o único a aderir a esse regime. O RRFé composto por três programas: Lei 9496/1997, Bacen/Banerj e Honra de Aval. O valor inicial apartado foi de R$ 9,4 bilhões. Houve a suspensão do pagamento da dívida, mas os valores dos três programas foram corrigidos de acordo com os devidos contratos.

Em agosto de 2020, três anos depois, acabou o prazo do programa. O valor acumulado chegou a R$ 61,5 bilhões, sendo incorporado à dívida financeira do Estado. Mas não foi o fim do regime. Após autorização do TCU, houve a continuidade dele. Entretanto, não era propriamente recuperação fiscal, mas implosão fiscal. O Estado simplesmente não conseguiu cumprir os compromissos assumidos nele.

Sem solução para a situação financeira, o Estado amargou o aumento da dívida, e o primeiro Regime de Recuperação Fiscal aprovou várias vedações durante sua vigência: proibia-se a admissão ou a contratação de pessoal, a qualquer título;a alteração de estrutura de carreira, a criação de cargo, emprego ou função que implique aumento de despesa etc. Além de criar uma figura biônica, não eleita, o Conselho do RRF, composto por três membros: um dos órgãos de fiscalização, um do Ministério da Economia e um do Estado. Esse conselho tinha acesso à senha do sistema financeiro do Estado, passando a exercer um papel político acima do governador e dos deputados (as) estaduais.

Em janeiro de 2021, o governador Cláudio Castro surfou na onda do novo Regime de Recuperação Fiscal, aprovado pela Lei Complementar n0 178/2021. Mais uma vez, Cláudio Castro alardeou a salvação das finanças do Estado. Pura mentira. No caso do Rio de Janeiro, o saldo inicial apartado, em setembro de 2017, foi de R$ 9,4 bilhões. Os valores consolidados, até novembro de 2024, em apenas 87 meses, alcançaram a cifra de R$ 77,5 bilhões. Alguém em sã consciência pode afirmar que o Regime de Recuperação Fiscal foi uma boa saída para as finanças do Estado do Rio de Janeiro?

Agora acaba de surgir uma outra saída milagrosa, proposta pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco. O PLP 121/2024, convertido na Lei Complementar
no 212/2025, institui o Programa de Pleno Pagamento de Dívidas dos Estados (Propag), destinado a promover a revisão dos termos das dívidas dos Estados e do Distrito Federal com a União, com prazo de 30 anos. O atual saldo devedor dos Estados brasileiros com a União gira em torno dos mencionados R$ 765 bilhões. Pacheco, em discurso, sustentou que essa é a grande oportunidade para o equilíbrio financeiro dos Estados endividados. Será verdade?

O que não se esclarece é que os saldos devedores relativos aos débitos junto à União, a que se refere o § 1º, serão consolidados com os acréscimos legais relativos a multas de ofício, juros moratórios e compensatórios e demais encargos, conforme previsto na legislação vigente à época dos fatos geradores que lhes deram origem. Nesse caso, apesar de os juros cobrados variarem entre 0 e 4%, estamos falando de uma dívida consolidada que incorpora todo tipo de ilegalidade. Para ficar mais clara a armadilha, exemplifico com o Estado do Rio de Janeiro.

Com a sanção da lei n9496/1997, no governo de FHC, o Rio de Janeiro, em 1999, refinanciou R$ 15,2 bilhões. Pagou à vista cerca de R$ 2,1 bilhões, restando a financiar um saldo de aproximadamente R$ 13,5 bilhões. Em 25 anos, do total refinanciado, pagou mais de R$ 30 bilhões. Mais que o dobro do valor inicial. O saldo consolidado em novembro de 2024 alcançou a cifra de R$ 94 bilhões, considerando a dívida consolidada do Regime de Recuperação Fiscal, no valor de R$ 77,5 bilhões.
O total da dívida consolidado Rio de Janeiro com a União que Rodrigo Pacheco propõe, o Propag, alcança cerca de R$ 171 bilhões.

Ainda no caso do Rio de Janeiro, pela proposta de Pacheco, os juros poderão variar entre 0%e 4%, recaindo sobre o saldo consolidado da dívida com a União, no valor de R$ 171 bilhões. Uma dívida 12 vezes maior que o valor inicial. Sem considerar as entregas obrigatórias que o Estado precisará fazer: transferência para a União de participações societárias em empresas de sua propriedade, transferência de bens móveis ou imóveis para a União, cessão de créditos líquidos e certos do Estado para o setor privado, transferência de créditos do Estado junto à União, reconhecidos por ambas as partes, cessão, para a União, dos recebíveis originados de créditos inscritos na dívida ativa da fazenda estadual, confessados e considerados recuperáveis.

E, ainda, cessão de outros ativos que, em comum acordo entre as partes, possam ser utilizados para pagamento das dívidas, transferência para a União da receita proveniente de sua venda, cessão para a União dos recebíveis originados da compensação financeira advinda da exploração de petróleo ou gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica ou de recursos minerais em seus respectivos territórios, plataformas continentais, mar territorial ou zona econômica exclusiva etc.

Os argumentos sedutores de redução da taxa de juros entre 0% e 4% serão aplicados às dívidas consolidadas com a União. Mas existe uma escala de redução que varia de 0% a 4%, desde que cumpridas as condicionantes. Não será automático. Como visto, são draconianas. Terão direito a redução de juros os Estados que realizarem a redução em até 20% (vinte por cento) da dívida apurada e consolidada, e/ou o aporte anual de até 4% do estoque da dívida (equivalendo à atual despesa com juros reais) para o “Fundo de Equalização Federativa” e outros investimentos. Com endividamento gigantesco, será difícil cumprir essas condições.

Se o Estado conseguir reduzir o pagamento com a dívida pública consolidada, poderá, com recursos próprios, investir na realização anual de investimentos no próprio Estado em educação profissional técnica de nível médio, nas universidades estaduais, em infraestrutura para universalização do ensino infantil e educação em tempo integral, e em ações de infraestrutura de saneamento, habitação, adaptação às mudanças climáticas, transportes ou segurança pública. Desde que cumpra as metas anuais de desempenho da educação profissional técnica de nível médio para os Estados optantes pelo Propag.

Será instituído Fundo de Equalização Federativa, em favor dos Estados, com o objetivo de criar condições estruturais de incremento de produtividade, adaptação às  mudanças climáticas e melhoria da infraestrutura, segurança pública e educação, notadamente a relacionada à formação profissional da população. O Fundo terá natureza privada e patrimônio próprio separado do patrimônio dos cotistas e da instituição administradora, e será sujeito a direitos e obrigações próprias. Mas para ter acesso a ele será necessário o cumprimento de metas estabelecidas na Lei complementar. Não existe almoço grátis!

Alguns governadores de oposição estão propagando na grande mídia que os vetos do governo Lula desfiguraram o programa. Mas analisando os números e os dados oficiais e as condicionantes, é impossível que também o cidadão e a cidadã fluminense, assim como os dos demais Estados, acreditem que o Propag é a solução para a dívida do Rio de Janeiro e dos demais entes federativos brasileiros. Na verdade, a única solução possível é a anulação pura e simples da dívida dos Estados, com auditoria para identificar os valores pagos a mais, que devem ser devolvidos, junto com o que lhes foi roubado pela Lei Kandir!

*Diretor da Executiva Nacional da ASSIBGE-SN/Coordenador do Núcleo Sindical Canabarro/Coordenador da Auditoria Cidadã da Dívida Núcleo RJ.