“Depósitos voluntários remunerados. Qual ciência os valida?”, por Gisella Colares Gomes

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Depósitos voluntários remunerados. Qual ciência os valida?

Gisella Colares Gomes1

Venho refletindo sobre o obscurantismo… Seu significado, suas razões, seus efeitos, suas formas de manifestação. Dentre estas, paradoxalmente, a mais preocupante é a que vem revestida de cientificidade. É quando uma certeza vira dogma e é percebida como verdade universal. Quando um instrumento se torna a finalidade, sendo utilizado independentemente do contexto.

Em tempos em que mesmo as ciências ditas duras se revestem de imprecisão e incerteza, em que a objetividade se encontra relativizada, é necessário compreender, como diria Bertalanffy em a Teoria dos Sistemas (1997)2, que “os acontecimentos parecem implicar mais do que unicamente as decisões e ações individuais, sendo determinados mais por sistemas socioculturais, quer sejam preconceitos, ideologias, grupos de pressão…”.

O conhecimento científico é necessário e essencial para a ação social, mas é preciso superar a percepção de que qualquer modelo fornece uma explicação completa. Heisenberg, em seu livro Ordenação da realidade3, desenvolve a percepção da existência de limites ou domínios nos quais os procedimentos analíticos da ciência moderna são válidos.

Para as ciências ditas humanas ou sociais, essas transformações paradigmáticas implicam reconhecer que não existe neutralidade e que não é possível ignorar a existência de uma visão de mundo subjacente a suas teorias. Uma visão de mundo é constituída de valores e julgamentos de valores, possuindo uma dimensão normativa. Nessa perspectiva, é preciso avaliar os domínios e os pressupostos dos modelos conceituais de que nos utilizamos para intervir socialmente.

Apresentei toda essa argumentação para destacar que os denominados “Depósitos Voluntários Remunerados” não existem em um vácuo, e sim em contexto institucional e regulatório, sendo necessário observar a consistência e a validade de seus objetivos, argumentos e pressupostos.

Para a defesa científica e técnica desses depósitos remunerados, afirma-se que seriam operações legais utilizadas no mundo inteiro, embora não se apresentem uma fonte sequer que respalde tal informação. Na Europa, por exemplo, bancos chegam a ser penalizados se depositarem excedente no BCE4. Dizem também que tais depósitos voluntários resolveriam a falta de transparência na contabilização da dívida pública gerada pelas Operações Compromissadas, ditas de política monetária, que utilizam títulos da dívida pública para, teoricamente, gerir a liquidez. Seriam uma forma de separar gestão monetária da gestão fiscal e, consequentemente, os custos da política fiscal e os custos da política monetária, dado que estes seriam contabilizados no balanço do Banco Central, e não do Tesouro Nacional.

De início até que parece uma boa ideia, pois explicitaria o que para muitos não é simples de perceber, que existem custos na execução política monetária usando operações compromissadas ou depósitos voluntários remunerados.

Porém os déficits do Banco Central são pagos pelo Tesouro. Isso faz com que os custos de remuneração da política monetária tenham o mesmo impacto na dívida pública que os juros pagos para financiar a política fiscal. Tornam dívidas as emissões dessas operações ou depósitos remunerados assim como qualquer operação de política fiscal. A criação dos depósitos voluntários remunerados traria uma ocultação dessa parte da dívida, o ilusionismo de sua não existência, embora seus efeitos alcancem todo ano os orçamentos do Tesouro com o pagamento de juros e amortizações.

Isso é ainda mais importante quando sabemos que a falta de transparência na dívida pública relaciona-se com a contabilização do estoque e dos fluxos da dívida pública brasileira, como descoberto pela comissão parlamentar de inquérito (CPI) realizada no Congresso Nacional entre 2009 e 2010.

Parafraseando Shakespeare, a realidade empírica tem mais elementos do que nosso modelo de política monetária pode imaginar. A CPI trouxe à luz um fato histórico para a economia brasileira que muda a validade da adequação do arcabouço técnico e científico de finanças públicas utilizado para compreender a dívida pública brasileira e seu contexto. Trata-se da observação de que é realizada uma correção monetária paralela do estoque dessa dívida5, para viabilizar a contabilização de grande parte dos juros como se fosse amortização6.

Em minha dissertação de mestrado 7 fiz uma análise crítica da política de endividamento no contexto da financeirização e confirmei a hipótese de que o desequilíbrio das contas públicas brasileiras não deve ser visto de modo simplificado como o excesso de gastos do governo sobre suas receitas. Existem determinantes provenientes da vulnerabilidade externa brasileira e da autonomização do endividamento público como regra de financiamento dos déficits orçamentários e como instrumento de política monetária.

Partindo da compreensão de que, se o gasto correspondente ao déficit tem a capacidade de gerar receita futura, esse déficit é de natureza fiscal, e que, se o gasto correspondente ao déficit estiver relacionado ao pagamento de juros, esse déficit é de natureza financeira, percebemos que os ajustes fiscais, na prática, são insuficientes para restabelecer o equilíbrio orçamentário, pois não têm a capacidade de gerar receita futura com vistas ao pagamento dos encargos. Ao contrário, possuem um limite, já que não se pode fazer cortes contínuos nos gastos fiscais sem provocar efeitos adversos sobre o nível de produto.

Pelo modelo retirado do livro de macroeconomia de Donrbush (1982) para não ser explosiva é preciso que a dívida tenha limites em relação ao PIB nominal, o que significa que a taxa de juros reais não pode ser maior do que o crescimento do PIB. Isto é, não se pode substituir gastos fiscais com saúde, educação, infra estrutura, etc., por gastos financeiros indefinidamente. A dinâmica básica do endividamento público eleva a taxa de juros, o que faz aumentar os seus encargos, e os déficits orçamentários passam a ter uma crescente componente financeira relativa ao pagamento de juros, o que torna a rolagem da dívida, no médio/longo prazo não administrável. Neste quadro a dívida se autonomiza e assume proporções cada vez maiores do PIB e da receita do governo.

Esse raciocínio nos indica que não adianta apenas não contabilizar as operações compromissadas como dívida por meio da criação dos depósitos voluntários remunerados, se os encargos não deixarão de existir. Isto é, o custo da política monetária não tem capacidade de gerar receita futura de modo que não exista incorporação de encargos ao estoque da dívida. Ademais, o custo dessa política monetária do Banco Central tem sido elevadíssimo, tendo alcançado quase R$3 trilhões em 10 anos.8

Além disto, historicamente, as políticas anti-inflacionárias deterioraram as finanças públicas, de modo que as dívidas públicas cresceram mais rapidamente que o PIB. A desregulamentação financeira veio como resposta à necessidade de ampliação do mercado para os títulos públicos, reorientando profundamente os fluxos de capitais internacionais. Esse processo aliado à crise do padrão monetário ouro-dólar deu origem à globalização financeira.

As condições institucionais modificaram-se e surgiram mecanismos de encurtamento dos prazos dos ativos financeiros e a rápida difusão dos sistemas de pagamentos operados de forma privada9, proliferou representação de moedas e sistemas de pagamentos livres de regulação, o que limita a capacidade dos bancos centrais de administrar a criação e circulação de moeda. Isso tornou o funcionamento do mercado financeiro próximo ao do mercado monetário, o que faz a emissão de dívida ineficaz para controle da oferta monetária e a liquidez passou a ter uma dimensão mais ampla, passando a ser determinada na órbita financeiro-creditícia e não mais na monetário-creditícia. Neste contexto de globalização financeira a necessidade e mesmo a efetividade da política monetária de controle da liquidez está sub judice.

Além disto, sabe-se que a inflação brasileira não se apresenta como inflação de demanda. Ela é consequência da majoração de preços administrados (energia, telefonia, tarifas bancárias, planos de saúde), de uma política agrícola e agrária que prioriza a exportação e não a manutenção de estoques reguladores e pela desvalorização cambial.

Neste sentido, a paralela correção do estoque da dívida e o pagamento de juros disfarçados de amortização levam a crer que a simples rolagem da dívida seria possível indefinidamente porque oculta o efeito e o custo de uma política monetária, ineficaz, sobre o estoque e encargos/fluxo da dívida.

Pergunta-se: quem vai arcar com o custo dos depósitos voluntários e qual seria o limite no qual realmente seriam eficazes como política monetária? Percebe-se que a gestão da liquidez ou da política monetária passa pela técnica, mas vai além, tratando-se de uma decisão política que reflete uma escolha de interesses que serão priorizados. Com a “independência” do Banco Central” o próprio setor financeiro tomará a decisão que mais lhe interessa!

Como qualquer instrumento de política fiscal, há que se avaliar a oportunidade e conveniência de sua implementação e avaliar seus resultados.

Acredito que deva existir uma lei que regule os instrumentos de política monetária de modo que se observem suas motivações e seus efeitos, que estabeleça objetivos, parâmetros e limites de forma a torná-los providos dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, como é a política fiscal, e que principalmente esteja em consonância com nossa Constituição. Todavia não é isso que está sendo proposto no PL n. 3.877/2020, que deixa sem limite ou parâmetro algum tanto o patamar da remuneração que será paga aos bancos como o volume do que os bancos desejaram depositar voluntariamente no Banco Central.

1 Economista, Mestre em Desenvolvimento Econômico UFPR/1998, Doutora em Desenvolvimento Sustentável Unb/2012, voluntária da Auditoria Cidadã da Dívida.

2 BERTALANFFY, L. V. Teoria geral dos sistemas. Petrópolis: Vozes, 1977.

3 HEISENBERG, Werner. A ordenação da realidade. (1942). Tradução: CASANOVA, Marco Antônio. Revisão Técnica: VIDEIRA, Antônio Augusto Passos et. al. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

5 Existem muitos interesses associados a essa descoberta contábil realizada por profissionais com experiência em auditoria que assessoram a CPI. Por vezes, propagam-se desqualificações das pessoas que realizaram o estudo, mas não provam que a constatação esteja equivocada. Para provar seria necessário realizar uma auditoria. Não qualquer auditoria, mas uma auditoria social e integral, na qual estariam representadas todas as partes da sociedade afetada por esse mecanismo, bem como se observariam não apenas contas e registros contábeis, mas contextos e institucionalidades.

7GOMES, Gisella Colares. A ECONOMIA BRASILEIRA NA GLOBALIZAÇÃO: UMA VISÃO CRÍTICA DA POLÍTICA DE ENDIVIDAMENTO. Brasília: UnB, 2012. (Dissertação de Mestrado)

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