“JUROS QUE PESSOAS E EMPRESAS PAGAM SEGUEM ALTÍSSIMOS APESAR DA SELIC EM QUEDA”, por Maria Lucia Fattorelli

Compartilhe:

Maria Lucia Fattorelli (I)
07.05.2020

No momento em que os jornais estampam que os juros atingem o menor nível da história, é fundamental conhecer como são definidas as distintas taxas de juros praticadas pelo mercado financeiro para empresas, pessoas e para o setor público, a fim de entender porque, apesar da SELIC em queda, ainda pagamos juros elevadíssimos e somos o país que mais gasta com juros.

Enquanto toda a economia brasileira fica emperrada e definha, principalmente devido ao elevado custo do dinheiro, o único beneficiário desse gasto excessivo com juros são os bancos, que batem recordes de lucros a cada trimestre. E o maior responsável é o Banco Central do Brasil (BC).

É necessário modificar a política monetária do país e retirar o poder supremo dos bancos de decidir à vontade sobre as taxas de juros praticadas, além de proibir o alastramento do esquema fraudulento denominado “Securitização de Créditos Públicos”, que tem se mostrado como uma forma de rentismo ainda mais privilegiada e indecente.

Por que os juros são tão elevados no Brasil?

Os juros são elevadíssimos no Brasil principalmente por dois motivos: primeiro, porque o Banco Central (BC) gera escassez de moeda na economia e segundo, porque o próprio mercado financeiro detém o poder de decidir sobre as taxas praticadas.

A escassez de moeda se dá à medida em que o BC aceita o depósito voluntário (atualmente de cerca de R$1,2 Trilhão) de todo o dinheiro que sobra no caixa dos bancos, e remunera diariamente essa montanha de dinheiro.

Diante dessa benesse, por que razão os bancos iriam correr riscos para emprestar para o público em geral, se podem receber remuneração diária e garantida pelo BC? Só emprestam a juros exorbitantes!

Não é difícil imaginar o que ocorreria se o BC interrompesse esse privilégio de remunerar diariamente toda a sobra de caixa dos bancos: é evidente que eles passariam a se esforçar mais para emprestar à sociedade em geral e as taxas de juros de mercado cairiam para patamares civilizados, como ocorre em todos os demais países do mundo.

De forma bem simplificada, poderíamos distinguir 4 grupos de taxa de juros:

1.Taxa Selic: Taxa básica divulgada pelo COPOM, após reuniões trimestrais que o Banco Central realiza com representantes do mercado financeiro, em flagrante conflito de interesses, pois a recomendação desses especialistas é adotada sem qualquer crivo ou sequer debate por parte do Congresso Nacional.
Conforme informado pelo BC à CPI da Dívida Pública (II), a determinação da Selic não obedece a uma fórmula matemática, mas sim às mencionadas “apresentações técnicas”. Ao final, é o próprio mercado que define a taxa SELIC.

2.Taxa de Juros sobre os títulos da dívida pública: Esta também acaba sendo definida pelos dealers – seleto grupo de instituições financeiras que detêm o privilégio de participar dos leilões de títulos da dívida pública emitidos pelo Tesouro Nacional e leiloados pelo Banco Central.
Na prática, os títulos têm sido vendidos a taxas bem superiores à Selic, pois os dealers só compram os títulos quando as taxas alcançam o patamar que desejam. Generosamente, o BC atende e lhes oferece elevadas taxas de juros.
Para citar apenas um exemplo, há poucos anos, quando a Taxa Básica (SELIC) se encontrava no patamar absurdo de 14,25%, títulos da dívida interna chegaram a ser negociados a 16,4% em 29/09/2015, as quais continuarão a ser pagas até 2023, quando vencem tais títulos!
Agora, apesar da SELIC ter sido reduzida para 3%, o custo médio da dívida pública federal nos últimos 12 meses, segundo divulgado pela STN, está próximo de 9% ao ano, ou seja, o triplo da SELIC!

3.Juros exorbitantes sobre dívida pública gerada ilegalmente: Trata-se das taxas de juros que incidem sobre a nova modalidade de geração de dívida pública ilegal, por meio do esquema da chamada “Securitização de Créditos Públicos”.
Esse esquema usa uma empresa estatal (Sociedade de Propósito Específico – SPE – a exemplo da PBH Ativos S/A em Belo Horizonte, a CPSEC S/A em São Paulo, entre outras) que emite papéis financeiros (debêntures), com garantia estatal, e oferecem juros estratosféricos.
No caso da PBH Ativos S/A, esses papéis pagaram juros de 23% ao ano em 2015, calculados com base no IPCA + 11%! Esse esquema vem se alastrando por diversos estados e municípios, embora não exista autorização legal para isso, uma vez que o PLP 459/2017 e a PEC 438/2018, que visam “legalizar” esse esquema absurdo, ainda não foram aprovados no Congresso Nacional. Nos últimos dias, aproveitando-se do drama da pandemia do coronavírus, em pleno sábado à noite (dia 02/05/2020) o Senado incluiu um artigo no PLP 39/2020 que trata desse esquema fraudulento e logo em seguida, dia 5/5/2020, a Câmara aprovou, sem o devido debate sobre esse grave esquema.
Essa nova forma de geração de dívida pública com juros exorbitantes segue uma engenharia financeira complexa e não transparente, para esconder o grave fato de que essa nova dívida gerada pelo esquema da securitização é paga por fora dos controles orçamentários, mediante a entrega do fluxo de arrecadação tributária e não tributária aos investidores.
Esse escândalo está virando um modelo de negócios aplicado a diversos ativos públicos relevantes, a exemplo dos royalties do petróleo e participações especiais do pré-sal no Rio de Janeiro (III) e recursos advindos da extração de Nióbio em Minas Gerais (IV)

A instituição financeira que faz a estruturação desses negócios é que indica a taxa de juros que incidirá sobre os papéis (debêntures sênior) emitidos pela empresa (ou fundo) estatal criado para operar o esquema.

4.Juros de mercado: O mercado financeiro cobra à vontade os juros que bem entende sobre empréstimos, cheque especial, cartão de crédito etc. Primeiro porque não há regulamentação alguma que limite os juros: cabe ressaltar que desde 2003, no início do governo Lula, foi revogada a parte do Art. 192 da Constituição que limitava os juros reais ao patamar de 12%, acima do qual se configuraria a prática da usura.
Em segundo lugar, a escassez de moeda gerada pelas “Operações Compromissadas”, que têm sido usadas de forma abusiva no Brasil para remunerar a sobra de caixa dos bancos, provoca elevação brutal das taxas de juros de mercado. Por isso, o Brasil tem o maior volume de Compromissadas e a maior taxa de juros de mercado do Planeta.

Em todos os quatro casos exemplificados acima, é o próprio mercado financeiro que define as taxas de juros, com a colaboração da política monetária suicida praticada pelo Banco Central. Também são os bancos os que mais lucram com os juros, em todas as situações Por isso, apesar da SELIC em queda, seguimos sendo o país que mais gasta com juros.

A justificativa que tem sido dada para a utilização abusiva das “Operações Compromissadas” (que gera escassez de moeda na economia), aliada à aplicação altas taxas de juros no Brasil, tem sido o “combate à inflação”, o que não se aplica, pois o tipo de inflação que temos no Brasil decorre do abusivo aumento do preço de tarifas e de alguns alimentos, conforme estudos do próprio Banco Central.

A inflação que existe no Brasil não reduz com o aumento dos juros. O controle inflacionário somente via altas taxas de juros consta do Decreto 3.088/1999, editado a mando do FMI, braço do BIS (V), em evidente conflito com o disposto na Lei 4.595/64 (art. 3º inciso II), que o PLP 112/2019 quer revogar para “legalizar” o procedimento adotado pelo BC.

Vivemos uma verdadeira ciranda financeira no Brasil. Nada de discussão se existem recursos orçamentários para pagar os elevados juros incidentes sobre os títulos da dívida pública; ou sequer preocupação de onde virão os recursos.

Essa ciranda ficou ainda mais escancarada diante da recente aprovação da PEC 10/2020 pelo Congresso Nacional, um verdadeiro golpe financeiro, em plena pandemia do coronavírus!

A pandemia do coronavírus escancarou a profunda desigualdade e vulnerabilidade social, além da precariedade dos serviços públicos essenciais. Em meio a esse drama social, o setor financeiro usou de oportunismo abominável e conseguiu aprovar a PEC 10/2020, que autoriza o Banco Central atuar como mero operador do mercado de balcão, comprando papéis podres acumulados ao longo de 15 anos na banca, transferindo trilhões de recursos públicos para os bancos que irão lucrar ainda mais, às custas do aumento da dívida pública que o povo terá que pagar. As justificativas apresentadas para a PEC 10/2020 são insustentáveis, como explicado em 5 Notas Técnicas elaboradas pela Auditoria Cidadã da Dívida (VI).

As limitações da “Lei de Responsabilidade Fiscal” não se aplicam à “política monetária” do Banco Central. Ou seja, se os recursos orçamentários existentes no orçamento federal não são suficientes para pagar juros e demais mecanismos praticados pelo Banco Central para remunerar a sobra de caixa dos bancos ou o novo golpe aprovado com a PEC 10, são emitidos novos títulos da dívida e esses são utilizados para cobrir todos os prejuízos do Banco Central e o gasto com os juros da chamada dívida pública. Isso mesmo! Estamos emitindo títulos para pagar grande parte dos juros nominais incidentes sobre a dívida pública, o que fere a Constituição Federal, art. 167, III, que proíbe a contratação de dívida para pagar despesas correntes, como temos denunciado desde a CPI da Dívida Pública (VII) em 2010. E mais alguns trilhões de títulos da dívida serão emitidos para tapar o rombo que a PEC 10/2020, e as privatizações se acelerarão (VIII) ainda mais, além do aumento do arrocho fiscal, com corte de investimentos públicos em todas as áreas, a começar pelo congelamento dos salários de servidores públicos!

Esses mecanismos espúrios, como a remuneração da sobra de caixa dos bancos, a emissão de títulos para pagar juros sobre juros, e o golpe de trilhões inserido na PEC 10, geram grandes volumes de “dívida pública” sem contrapartida alguma! E os juros dessa dívida são pagos às custas de muito sacrifício!

É por isso que denunciamos o Sistema da Dívida e exigimos a realização da auditoria. Esse poderoso esquema está provocando enorme lesão aos cofres públicos e à sociedade, além de aumentar de forma exponencial a própria dívida, comprometendo o nosso futuro.

CONCLUSÃO

Longe de aproximarmos de uma política monetária que favoreça a economia do país, o que observamos é o impressionante aumento do poder do mercado financeiro, que já não quer “apenas” os elevados juros da dívida pública e os juros exorbitantes que cobra do público em geral, mas tem conseguido avançar ainda mais, inclusive se aproveitando da pandemia do coronavírus:
– o mercado financeiro pretende se apoderar diretamente do fluxo da arrecadação tributária e de outros ativos públicos (petróleo, nióbio e outros minerais etc.) por meio do novo esquema fraudulento da chamada “Securitização de Créditos Públicos”, que escancara o desvio de recursos para bancos privilegiados a juros exorbitantes;
– bancos vão repassar trilhões de papéis podres acumulados ao longo de 15 anos em sua “carteira podre” (dos quais inclusive já se ressarciu ao apurar seus lucros anualmente) para o Banco Central, às custas da geração de mais dívida pública ilegítima e sem contrapartida;
– trabalham pela “independência do Banco Central” para este se torne um órgão completamente autônomo, acima de tudo, livre para seguir praticando os mecanismos financeiros de interesse da banca, em linha com as determinações da instituição privada BIS.

Enquanto os interesses da banca dominarem as decisões da política monetária, os juros de mercado continuarão elevados, apesar da queda da Selic. É preciso acabar com o poder supremo dos bancos para decidir à vontade sobre todos os tipos de taxas de juros praticadas no país, e exigir que o Banco Central funcione em defesa dos interesses da economia nacional, vinculado ao Estado, e não dominado pela banca nacional e internacional.

===============================================================================================
I Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulos para integrar a Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia em 2015.

II Ofício 1007/2009-BCB-Secre, de 09.12.2009 e Ofício 999/2009-BCB-Diret

III Ver artigo “Desvio de recurso vira modelo de negócios: securitização e Rioprevidência” https://bit.ly/36ps5Yc

IV Apresentação em audiência pública realizada pela ALMG em 25/11/2019
https://auditoriacidada.org.br/video/fattorelli-denuncia-esquema-de-securitizacao-em-minas-gerais/

V https://auditoriacidada.org.br/conteudo/banco-privado-bis-o-centro-de-poder-de-regulamentacao-e-supervisao-financeira-global-por-daniel-simoes/

VI https://auditoriacidada.org.br/conteudo/nota-tecnica-acd-5-2020-breve-analise-do-substitutivo-da-pec-10-2020-em-votacao-na-camara-dos-deputados-em-04-05-2020/

VII https://auditoriacidada.org.br/conteudo/relatorio-especifico-de-auditoria-cidada-da-divida-no-1-2013/

VIII http://www.fnpetroleiros.org.br/noticias/5298/transpetro-no-listao-de-privatizacao-de-guedes