Monitor Digital: “O Sistema da Dívida na contramão da Economia de Francisco”, parte II – por Maria Lucia Fattorelli
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Por Maria Lucia Fattorelli
A experiência à frente da Auditoria Cidadã da Dívida, ao longo de quase duas décadas, atuando no país e exterior, me permitiu criar a expressão “Sistema da Dívida”, pois, em todas as oportunidades, detectamos a geração de dívida pública sem contrapartida alguma: em vez de servir para aportar recursos ao Estado, a dívida tem funcionado como um instrumento que provoca uma contínua e crescente subtração de recursos públicos, que são direcionados principalmente para o setor financeiro.
A dívida gerada dessa forma espúria e sem a devida transparência tem sido o principal alimento do capital financeiro e decorre de diversos mecanismos fraudulentos.
Até mesmo o liberal economista norte-americano Jeffrey Sachs chegou a afirmar, em 2012, que “em toda parte estamos assistindo a uma epidemia de comportamentos criminosos e corruptos nos vértices do capitalismo. Os escândalos bancários não representam exceções nem erros, são fruto de fraudes sistêmicas, de uma avidez e arrogância sempre mais difundidas”.
No Equador, a comissão designada pelo presidente da República para realizar auditoria oficial da dívida em 2007/2008, a qual tivemos a honra de integrar, identificou diversos mecanismos fraudulentos que atuaram no processo de endividamento externo desde a década de 1970.
Cabe destaque o processo que, em 1994, ressuscitou elevado volume de dívida externa prescrita, portanto, morta, trocando-a por novos títulos denominados Brady, processo coordenado por grandes bancos internacionais e o FMI em Luxemburgo, paraíso fiscal, sem qualquer transparência e à revelia das poucas regulações legais existentes.
Esse mesmo processo foi aplicado de forma idêntica a cerca de 20 outros países, inclusive o Brasil, gerando elevado volume de dívida externa onerosa que, para ser paga, passou a comprometer drasticamente o funcionamento da economia devido à exigência de cortes de gastos, reformas e privatizações, levadas a efeito no governo de FHC.
Na Grécia, durante a auditoria da dívida realizada no Parlamento helênico em 2015, da qual tivemos a honra de participar, identificamos mecanismos fraudulentos que usaram a Grécia como vitrine para encobrir a criação de empresa estatal sediada em Luxemburgo (EFSF), da qual eram sócios 17 países europeus, os quais comprometeram centenas de bilhões de euros com garantias aos papéis financeiros emitidos por essa empresa, que por isso eram classificados como AAA+, ou seja, praticamente equivalente a dinheiro vivo.
Tais papéis eram entregues principalmente para a Grécia, que os contabilizava como uma “dívida pública”, porém, não podia vender esses papéis e apurar os recursos necessários para os investimentos de interesse econômico-social. Ao contrário, tais papéis eram entregues a um fundo financeiro criado por ordem do FMI, e tal fundo é que vendeu esses papéis para bancos, os quais efetuaram o pagamento com papéis podres, derivativos tóxicos, que detinham.
Dessa forma, aquelas centenas de bilhões de euros liberados pelos 17 países acabaram indo para os bancos, enquanto a Grécia ficou com elevada dívida pública (registrada quando recebeu os papéis da EFSF) e com os papéis podres recebidos dos bancos. Nessa circunstância, o país passou a aplicar drástico programa de austeridade fiscal, cortando direitos fundamentais da população, e ainda teve que privatizar tudo para conseguir pagar parte da dívida gerada por esse mecanismo!
A Grécia quebrou, inúmeras pessoas perderam seus empregos negócios e até a vida, na onda de suicídios, mas o objetivo do mercado foi alcançado: os bancos foram salvos, graças ao aumento da “dívida pública” da Grécia e dos outros países que deram garantias àqueles papéis emitidos pela EFSF!
No Brasil, temos identificado diversos mecanismos ilegais e ilegítimos, tanto na dívida externa como interna, federal, de estados e municípios. Não se trata de questionar a responsabilidade fiscal, mas sim do funcionamento da alimentação do Sistema da Dívida por mecanismos que sacrificam a economia real, ao mesmo tempo em que privilegiam os bancos. Por causa desses mecanismos, as dívidas só crescem, mesmo em períodos de superávit primário.
De 1995 a 2015 produzimos mais de R$ 1 trilhão de Superávit Primário, ou seja, gastamos bem menos do que arrecadamos. Apesar dessa economia imensa de mais de R$ 1 trilhão, a dívida interna aumentou de R$ 86 bilhões para quase R$ 4 trilhões no mesmo período, e seguiu crescendo, principalmente devido aos mecanismos de política monetária do Banco Central, responsáveis por déficit nominal das contas públicas. (Fonte: Tesouro Nacional)
Os mecanismos que fazem o estoque da dívida aumentar, porém o dinheiro não chega aos cofres públicos, são inúmeros, cabendo ressaltar as diversas transformações de dívidas privadas (até de bancos) em dívida pública; as conversões de dívida externa prescrita em dívida interna; e a inconstitucional contabilização de juros como se fosse amortização.
Dentre os principais mecanismos, selecionamos a seguir alguns, por sua relevância em termos financeiros e também pela incrível semelhança com as Questões Econômicas e Financeiras mencionadas no documento assumido pelo Papa em 2018, anteriormente mencionado:
a) A histórica prática de juros elevadíssimos, sem justificativa técnica, jurídica, econômica ou política, além da incidência de juros sobre juros (anatocismo), que fazem a dívida se multiplicar por ela mesma. Apesar da recente queda da taxa Selic para 4,25%, as taxas médias de juros incidentes sobre a dívida pública federal interna permanecem perto dos 10%. (Por que os juros de mercado seguem altíssimos apesar da Selic em queda)
b) A remuneração diária da sobra de caixa dos bancos pelo Banco Central (BC), que utiliza títulos da dívida pública para “justificar” essa remuneração diária, cumulativa, que sequer possui previsão legal (O projeto de “independência” do BC que tramita na Câmara dos Deputados pretende “legalizar” essa remuneração) e provoca a elevação do estoque da dívida de forma exponencial.
A maioria das pessoas não sabe que o Banco Central gasta uma fortuna, todo ano, para remunerar bancos ilegalmente. Em dez anos (2009 a 2018), essa operação ilegal custou cerca de R$ 1 trilhão aos cofres públicos. Além desse rombo enorme, essa operação gera escassez de moeda, que fica esterilizada no BC, provocando elevação brutal das taxas de juros de mercado para quem precisa de empréstimo (pessoas, empresas e até governos), amarrando o funcionamento de toda a nossa economia.
c) Os contratos de swap cambial que o BC faz com privilegiados sigilosos para garantir a variação do dólar, têm gerado prejuízos bilionários ao país, os quais são pagos às custas da chamada dívida pública. São contratos celebrados pelo Banco Central, sem transparência alguma: não se sabe quem são os beneficiários, como estão sendo contabilizadas as perdas e os valores efetivamente envolvidos na garantia, a secretos investidores privilegiados, da cobertura da variação cambial. Só se sabe que o prejuízo é brutal e está fazendo a dívida interna explodir. Operações de swap cambial já forma consideradas ilegais, conforme TC-012.015/2003-0: “Não há, na Lei 4.595/64 ou em outra legislação, dispositivo que autorize o Banco Central a atuar no ramo de seguros ou que o autorize a assumir posições de agente segurador de capital, muito menos a especular com variações cambiais, assumindo posições que podem dar muito lucro ou muito prejuízo.”
Tais contratos já foram repudiados até em representação do TCU, conforme TC-012.015/2003-0. No final de 2019, o BC torrou mais de US$ 37 bilhões de nossas reservas internacionais, dos quais mais de US$ 33 bilhões, ou seja, cerca de R$ 140 bilhões, foram gastos em operações conjugadas com esses contratos sigilosos.
d) Novo mecanismo denominado “Securitização de Créditos Públicos” que está sendo implantado em diversos estados e municípios no Brasil de forma ilegal, pois o PLP 459/2017 e a PEC 438/2018, que pretendem “legalizar” tal esquema fraudulento, ainda não foram aprovados. Tal mecanismo é gravíssimo, pois está sendo aplicado para desviar diversos tipos de recursos públicos, como tributos arrecadados de contribuintes e receitas de exploração do petróleo e nióbio, tornando-se um sofisticado modelo de negócios.
Esse mecanismo gera dívida pública disfarçada e inconstitucional, a qual é paga por fora dos controles orçamentários, com recursos públicos desviados durante o seu percurso pela rede bancária e que sequer alcançarão os cofres públicos, afetando de forma lesiva e ilegal o orçamento público. Por essa razão, a Auditoria Cidadã da Dívida tem pressionado parlamentares para rejeitar tais projetos nocivos.
A dívida pública gerada por esses mecanismos tem sido a justificativa para o avanço das privatizações de todo o nosso patrimônio público; o aprofundamento dos cortes de gastos e investimentos sociais; modificações legais e até constitucionais como o teto de gastos sociais (EC 95/2016, que deixou aos gastos com a dívida sem teto ou limite algum) e o recente pacote “mais Brasil para banqueiros”, além das contrarreformas que retiram direitos da classe trabalhadora, como a da Previdência. Tudo isso trava completamente o nosso desenvolvimento socioeconômico e acirra a desigualdade social.
O principal responsável por essa atuação distorcida, que denominamos Sistema da Dívida, é o poder financeiro mundial, encabeçado pelo BIS (“Banco de Compensações Internacionais”, conhecido por ser o Banco Central dos Bancos Centrais), FMI, Banco Mundial, Bancos Centrais e grandes bancos privados nacionais e internacionais.
Enquanto geram dívida para a sociedade pagar, tais mecanismos transferem imensos ganhos principalmente para bancos, que batem sucessivos recordes de lucros a cada trimestre, especialmente no Brasil, apesar da “crise” que assola a economia real.
O privilégio do Sistema da Dívida vem aumentando após a aprovação da EC 95/2016 (a qual deixou as despesas financeiras com a chamada dívida pública fora do teto de gastos) e afeta também os orçamentos de estados e municípios.
Sequer sabemos para quem destinamos quase a metade do orçamento federal, consumido com o pagamento de juros e amortizações da dívida a beneficiários sigilosos.
É incontestável o tremendo privilégio do Sistema da Dívida, que tem transformado o Estado brasileiro em um instrumento a serviço do poder financeiro transnacional, às custas do atraso de nosso próprio desenvolvimento socioeconômico, sendo imprescindível a popularização do conhecimento que vem sendo produzido pela Auditoria Cidadã da Dívida (auditoriacidada.org.br, facebook.com/auditoriacidada.pagina).
A fim de desmontar o inaceitável cenário de escassez existente no Brasil e implantar outro modelo fundamentado na ética, solidariedade e justiça, como tem pregado o Papa Francisco, teremos que necessariamente enfrentar o Sistema da Dívida, por meio de auditoria integral, com participação cidadã, interrompendo esse processo de sangria de recursos e submissão aos interesses do mercado financeiro.
Adicionalmente, para modificar o modelo econômico concentrador de renda e riqueza será necessário modificar o modelo tributário para que se transforme em instrumento efetivo de justiça fiscal e distribuição de renda; alterar a política monetária para que atue em favor dos interesses do país e do povo, e não apenas do setor financeiro; e rever completamente a exploração mineral predatória e agronegócio voltado para exportação, dentre outras medidas.
Nosso desafio é desmascarar esse inaceitável cenário de escassez, que não combina nem um pouco com toda a abundância que existem em nosso Brasil, e construir juntos outro modelo econômico que coloque o ser humano no centro, e que respeite a nossa Mãe Terra, alinhados com a Economia de Francisco.