“PEC 186 coloca ajuste fiscal na Constituição para privilegiar o Sistema da Dívida”, por Maria Lucia Fattorelli
PEC 186 COLOCA AJUSTE FISCAL NA CONSTITUIÇÃO PARA PRIVILEGIAR O SISTEMA DA DÍVIDA
Maria Lucia Fattorelli
Caso a PEC 186 venha a ser aprovada na forma do novo Substitutivo apresentado em 03.03.2021 pelo senador Márcio Bittar, o Brasil passará a ter, em seu texto constitucional, a necessidade de todos os entes da Federação cumprirem META DE SUPERÁVIT FISCAL DE PELO MENOS 5% das receitas correntes, além da expressa submissão de todas as políticas necessárias ao desenvolvimento socioeconômico, atendimento aos direitos sociais e manutenção do Estado, as quais ficarão subordinadas ao privilégio dos gastos financeiros com a chamada dívida pública, que passa a ter prioridade absoluta!
Com essa alteração, a CF/88 assume de vez, textualmente, a condição de constituição do mercado, e é completamente aviltada em sua lógica. A CF/88 foi concebida para vincular o Estado ao cumprimento dos fundamentos e objetivos da República enumerados nos artigos 1º e 3º da CF/88, como brilhantemente abordado pelo Ministro Carlos Ayres Britto em recente evento https://auditoriacidada.org.br/video/live-a-pec-186-e-sua-contraposicao-a-direitos-sociais-constitucionalmente-fundamentais/ :
“A vinculação das receitas tem a ver com a vinculação do Estado, ele foi criado para isso, plasmado para isso, constitucionalizado para isso: aos fundamentos e suas finalidades. Se não fizer isso o Estado não se vincula aos fundamentos do artigo 1º e muito menos aos objetivos do artigo 3º.”
Em diversos dispositivos da referida PEC 186 está explícito o privilégio da chamada dívida pública sobre todos os demais gastos e investimentos orçamentários, invertendo completamente a lógica da CF/88. Estarão irremediavelmente jogados para plano inferior a dignidade da pessoa humana (Art. 1º da CF), assim como os objetivos fundamentais elencados no Art. 3º da CF: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional e a erradicação da pobreza, da marginalização e das desigualdades sociais e regionais.
Para cumprir o AJUSTE FISCAL e a meta de SUPERÁVIT FISCAL de pelo menos 5% das receitas correntes, que passam a constar expressamente do texto constitucional caso a PEC 186 seja aprovada, os gastos necessários ao desenvolvimento socioeconômico, ao atendimento aos direitos sociais e à manutenção do Estado terão que ser cortados e ativos públicos serão vendidos, tudo isso para que sobrem mais recursos para o pagamento da chamada dívida pública!
Em substitutivo anterior, constava textualmente o condicionamento dos direitos sociais previstos no Art. 6º aos gastos com a dívida, o que levantou grande reação popular, a exemplo da Nota da Comissão Brasileira Justiça e Paz, organismo da CNBB https://bit.ly/3uOwReM , o que levou o relator a retirar este item da PEC. Porém, ao manter o privilégio dos gastos com a chamada dívida pública e a autorização para o “AJUSTE FISCAL” de forma automática, acompanhado da necessidade de um SUPERÁVIT FISCAL de pelo menos 5% das receitas correntes por todos os entes da Federação, a submissão dos direitos sociais aos gastos financeiros prevalece, o que é inaceitável!
O atual substitutivo apresentado em 03.03.2021 mantem o status constitucional para o “AJUSTE FISCAL” e para o SUPERÁVIT FISCAL de pelo menos 5% das receitas correntes, dando à despesa com a chamada dívida pública um tratamento diferenciado de todos os demais gastos públicos. Tal privilégio é algo infame, por aviltar a lógica da CF/88, como antes mencionado, e também porque essa dívida nunca foi auditada devidamente e tem servido para alimentar diversos mecanismos financeiros ilegais e inconstitucionais, como a BOLSA-BANQUEIRO https://bit.ly/3kHPJYj.
O privilégio injustificado da dívida em detrimento de todos os demais gastos que serão submetidos a MEDIDAS DE AJUSTE, SUSPENSÕES E VEDAÇÕES está explícito, por exemplo, na modificação introduzida pela PEC 186 ao Art. 163, VIII da Constituição, que introduz no texto constitucional a autorização para “medidas de ajuste, suspensões e vedações”, bem como a “alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida” de forma a garantir a “sustentabilidade da dívida”. da seguinte forma:
“Art. 163
VIII – sustentabilidade da dívida, especificando:
a) indicadores de sua apuração;
b) níveis de compatibilidade dos resultados fiscais com a trajetória da dívida;
c) trajetória de convergência do montante da dívida com os limites definidos em legislação;
d) medidas de ajuste, suspensões e vedações;
e) planejamento de alienação de ativos com vistas à redução do montante da dívida;
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso VIII pode autorizar a aplicação das vedações previstas no art. 167-A.” (NR)
O privilégio do gasto com a dívida está expresso também no Art. 164-A proposto pela PEC 186, submetendo todos os entes federados a manter a sustentabilidade da dívida, o que, para ser alcançado, exigirá os cortes de outros gastos para que a dívida seja paga:
“Art. 164-A. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios devem conduzir suas políticas fiscais de forma a manter a dívida pública em níveis sustentáveis, na forma da lei complementar referida no inciso VIII do art. 163.
Parágrafo único. A elaboração e a execução de planos e orçamentos devem refletir a compatibilidade dos indicadores fiscais com a sustentabilidade da dívida.”
Mais uma vez, na proposta da PEC 186 para o Art. 165 aparece novamente o privilégio dos gastos com a dívida, submetendo toda a programação dos gastos públicos à sustentabilidade da dívida:
“Art. 165. ………………………………………………………………………
………………………………………………………………………………………
§ 2o A lei de diretrizes orçamentárias compreenderá as metas e prioridades da administração pública federal, estabelecerá as diretrizes de política fiscal e respectivas metas, em consonância com trajetória sustentável da dívida pública, orientará a elaboração da lei orçamentária anual, disporá sobre as alterações na legislação tributária e estabelecerá a política de aplicação das agências financeiras oficiais de fomento.
Na proposta da PEC 186 para o Art. 167, mais um privilégio grotesco para a chamada dívida pública, que terá suas receitas intocadas, enquanto todos os demais gastos e investimentos públicos estarão submetidos ao AJUSTE FISCAL para servir à dívida:
“Art. 167. São vedados:
…………………………………………………………………………………..
IV – a vinculação das receitas públicas a órgão, fundo ou despesa, ressalvadas:
…
g) a receita destinada por legislação específica ao pagamento de dívida pública;
Outro privilégio da dívida decorre da aplicação de gatilho automático inserido na proposta do relator para o Art. 167-A, que mais uma vez menciona expressamente os “mecanismos de ajuste fiscal” para que sobrem pelo menos 5% de superávit corrente:
“Art. 167-A. Apurado que, no período de doze meses, a relação entre despesas correntes e receitas correntes supera noventa e cinco por cento, no âmbito dos Estados, Distrito Federal e Municípios, é facultado aos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público, ao Tribunal de Contas e à Defensoria Pública do ente, enquanto remanescer a situação, aplicar os seguintes mecanismos de ajuste fiscal:
Esse dispositivo submete os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, o Ministério Público, o Tribunal de Contas e à Defensoria Pública dos entes federados a vedar, por exemplo:
-
a concessão de qualquer aumento, vantagem, criação de cargos, planos de carreira, entre vários direitos devidos aos servidores públicos;
-
qualquer aumento de despesa obrigatória;
-
o aumento real do salário-mínimo ou benefícios previdenciários;
-
criação ou expansão de programas e linhas de financiamento, que poderiam estimular o funcionamento produtivo da economia.
A proposta da PEC 186 para o Art. 167-E admitirá a emissão de novos títulos para pagar os generosos juros da dívida, que atualmente se encontram em média, segundo o Tesouro Nacional, em torno de quase 9% ao ano, enquanto a Selic é 2% ao ano e o mundo todo aplica juros próximos de zero ou até negativos! A intenção do Art. 167-E é “legalizar” o pagamento de juros da dívida pública com recursos oriundos de novos empréstimos, o que já vem sendo feito de forma inconstitucional, por meio de artifício de CONTABILIZAÇÃO DE JUROS COMO SE FOSSE AMORTIZAÇÃO, conforme tem denunciado a Auditoria Cidadã da Dívida desde a CPI da Dívida em 2009/2010 (ver https://bit.ly/3siJxse e https://bit.ly/2MVSvfk ).
“Art. 167–E. Fica dispensada, durante a integralidade do exercício financeiro em que vigore a calamidade pública de âmbito nacional, a observância do inciso III do art. 167.”
A proposta da PEC 186 para o Art. 109 do ADCT submete a esfera federal a mais GATILHOS AUTOMÁTICOS de corte de gastos e outras vedações:
Art. 2o O Ato das Disposições Constitucionais Transitórias passa a vigorar com as seguintes alterações:
“Art. 109. Se verificado, na aprovação da lei orçamentária, que, no âmbito das despesas sujeitas aos limites do art. 107 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a proporção da despesa obrigatória primária em relação à despesa primária total foi superior a noventa e cinco por cento, aplicam-se ao respectivo Poder ou órgão, até o final do exercício a que se refere a lei orçamentária, sem prejuízo de outras medidas, as seguintes vedações:
Todo esse arrocho aos direitos sociais, à estrutura do Estado e aos investimentos necessários ao nosso desenvolvimento socioeconômico visa privilegiar os gastos injustificados com a chamada dívida pública, que não tem servido para investimento algum no país, como declarou o TCU (https://bit.ly/3rqqnkp) e se presta a alimentar questionáveis mecanismos financeiros (https://bit.ly/3c1Uvf8).
Parlamentares que votarão a PEC 186 precisam saber que se aprovarem esse texto Substitutivo do senador Márcio Bittar estarão condenando o Estado brasileiro e toda a Nação a servir prioritariamente aos interesses do mercado financeiro, sacrificando os princípios e objetivos fundamentais da República.