Crise fabricada expande o poder do mercado financeiro e suprime direitos sociais
Maria Lucia Fattorelli[i]
Artigo publicado no Relatório DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2019, 20ª edição da publicação anual da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos.
Nunca foi tão urgente o debate sobre os direitos humanos no Brasil. Forte crise abala a economia do país desde 2014, quando o PIB estacionou, seguido de queda de mais de 7% em 2015-2016, e continua estagnado. Empresas de todos os ramos quebraram; o desemprego e a informalidade bateram recorde; as privatizações de patrimônio público aceleraram, atingindo até mesmo Eletrobras, Petrobras, Caixa Econômica Federal, entre outras, o estoque da dívida pública explodiu e a extrema pobreza, que já havia desaparecido das estatísticas brasileiras, reaparece com cerca de 13,2 milhões de pessoas.
Em meio a tudo isso, o lucro dos bancos atingiu recorde histórico de R$ 96 bilhões em 2015, além de provisão exorbitante de R$ 187 bilhões. Os recordes de lucros se sucedem a cada trimestre! Em 2018 bateram novo recorde de lucros próximos a R$ 100 bilhões, enquanto toda a economia patina.
As medidas encaminhadas para contornar essa crise, destacando-se a EC 95/2016, as Reformas Trabalhista e da Previdência, as Privatizações e o esquema denominado “Securitização de Créditos Públicos”, na prática, servem para agravar ainda mais os problemas econômicos e sociais do Brasil. Além de não enfrentarem a real causa da crise, tais medidas aprofundam a inanição da economia e o empobrecimento da população, ao mesmo tempo em que aumentam os privilégios do setor financeiro.
Neste artigo, aponto a política monetária do Banco Central como a principal causa da crise brasileira, a qual tem servido de justificativa para a violenta supressão de direitos sociais e entrega brutal de patrimônio público, com a desculpa de contornar a crise e ter que pagar a chamada dívida pública que nunca foi auditada integralmente.
O que produziu a crise no Brasil?
Não tivemos no Brasil nenhum dos principais fatores que produzem crise no capitalismo. Não tivemos quebra de bancos, que foi inclusive a principal causa da crise nos EUA a partir de 2007. Não sofremos pestes ou adoecimento que impedissem a nossa população de trabalhar. Não tivemos quebra de safra, ao contrário, temos batido sucessivos recordes de safra agrícola e mineral. Não temos tido problemas em nosso balanço de pagamentos. Também não tivemos guerra.
Diante disso, o que explica a falência de inúmeras empresas, o desemprego recorde, a queda de mais de 7% do PIB em apenas 2 anos (2015-2016, comparável somente a países em guerra como a Síria), e queda do PIB per capita em cerca de 10%? Como justificar a explosão do estoque da dívida pública interna federal se os investimentos estão completamente estagnados e o patrimônio público vem sendo privatizado para pagar essa dívida?
Afinal, o que produziu essa crise, se, além de todas as riquezas e potencialidades que fazem do Brasil a 9a maior economia do mundo, possuímos cerca de R$ 4 trilhões líquidos em caixa? Em dezembro/2018, possuíamos[ii]:
- R$ 1,27 TRILHÃO no caixa do Tesouro Nacional;
- R$ 1,13 TRILHÃO no caixa do Banco Central, e
- US$ 375 bilhões (R$ 1,453 TRILHÃO) em Reservas Internacionais!
Até 2015, produzimos R$ 1 TRILHÃO de Superávit Primário; sobrou mais de R$ 1 TRILHÃO na Seguridade Social, e o PIB vinha crescendo, em média, quase 4% ao ano. De repente, tudo isso inverteu, sem que tivéssemos aqui nenhum dos fatores que produzem crise:
A crise brasileira foi provocada pela política monetária do Banco Central (BC. Enquanto produzíamos Superávit Primário de R$ 1 Trilhão, ou seja, gastamos muito menos do que arrecadamos para a manutenção do Estado e o pagamento de todos os direitos sociais públicos, o BC sempre produziu déficit nominal. Dados oficiais comprovam que o problema das contas públicas nunca esteve nos gastos sociais, mas sim no gasto financeiro com juros.
De 2013 a 2015 o BC multiplicou a taxa básica de juros Selic de 7 para 14,25% e permaneceu nesse patamar insano por mais de um ano[iii], sem justificativa técnica alguma! Simultaneamente, o BC aumentou o volume dos Depósitos Voluntários feitos pelos bancos junto ao BC, remunerando R$ 1 Trilhão da sobra de caixa dos bancos nessa taxa absurda! Além de custar perto de R$1 Trilhão[iv] aos cofres público nos últimos 10 anos, essa benesse ilegal concedida pelo BC aos bancos gerou escassez de moeda na economia, provocando a elevação das taxas de juros de mercado para patamares indecentes, de mais de 200% ao ano, levando empresas à falência, as pessoas ao desemprego e desespero e provocando a queda do PIB.
Além disso, o BC ainda acumulou resultados negativos em operações de Swap Cambial, ilegais, de setembro/2014 a setembro/2015, no valor de R$ 207 bilhões, cobertos com recursos do Tesouro Nacional!
Adicionalmente, o Tesouro Nacional emitiu títulos da dívida em volumes muito superiores ao necessário[v], sob a justificativa de acumular “colchão de liquidez” e dar segurança a investidores…
O mais grave é o fato de que, em vez de estancar essa política monetária que está produzindo crise e exigindo trilhões dos cofres públicos nos últimos 10 anos, o projeto de lei que se encontra em regime de urgência no plenário da Câmara dos Deputados – PLP 112/2019 – visa “legalizar” essa política e colocar o BC acima de tudo e de todos, sem interferência dos poderes Legislativo ou Executivo, livre para seguir praticando essa política monetária suicida.
O resultado dessa política monetária insana foi o aumento exorbitante do lucro dos bancos, que dela se beneficiaram, e a produção da crise, como já anunciávamos há anos[vi]. Derrubaram a economia!
Crise fabricada privilegia mercado financeiro e as medidas adotadas para contornar a crise também
Não foram os gastos sociais ou os gastos com a manutenção do Estado que produziram a crise, mas esses têm sido o alvo das medidas adotadas para contorna-la.
Apesar do Superávit Primário de mais de R$ 1 Trilhão no período de 1995 a 2015, a dívida interna federal aumentou de R$86 bilhões para quase R$4 trilhões no mesmo período, e seguiu crescendo, principalmente devido aos mecanismos de política monetária do BC.
Em audiência pública realizada no Senado Federal, o representante do TCU afirmou que dívida não serviu para investimento no país[vii] !
A necessidade de sustentar o Sistema da Dívida afeta profundamente os direitos humanos e sociais, pois tem sido a justificativa para:
- Destinação da maior parte do Orçamento Federal para os gastos com Juros e Amortizações, prejudicando todas as áreas sociais;
- Contínuo e rigoroso Ajuste Fiscal, levando a contingenciamentos cada vez mais drásticos que impedem o funcionamento do Estado (até mesmo na área da Defesa Nacional) e a prestação dos serviços públicos essenciais (Saúde, Educação etc.);
- Privatizações de patrimônio público, os quais são seguidos de programas de demissão “voluntária”, redução de benefícios antes proporcionados pelas estatais e desemprego;
- Contrarreformas, como a trabalhista (que retrocedeu conquistas sociais a situação anterior a Getúlio Vargas) e a da Previdência, que destrói o modelo de Seguridade Social solidário e universal conquistado em 1988;
- Modificações constitucionais danosas, que transformam a Constituição Cidadã cada vez mais na Constituição “do Mercado”, cabendo ressaltar a EC 95/2016;
- Novos esquemas geradores de dívida pública: “Securitização de Créditos Públicos”, mediante o qual o Mercado se apodera diretamente da arrecadação tributária, antes que os recursos alcancem os orçamentos públicos[viii].
Assim, a política monetária do BC cria a crise, aumenta o estoque da chamada dívida pública e estas servem de justificativa para o avanço do setor financeiro sobre os direitos sociais e o patrimônio público.
Consequências do Teto de Gastos e da Reforma da Previdência
Com a aprovação da Emenda Constitucional no 95/2016, o ajuste fiscal ganhou status constitucional!
É fundamental ressaltar que a EC 95 estabeleceu teto de gastos somente para as despesas primárias, deixando fora do teto os gastos financeiros com a chamada dívida pública e com as empresas criadas para operar o esquema da “Securitização de Créditos Públicos”, ou seja, congelou somente o que interessa à imensa maioria do povo brasileiro, para que sobrem mais recursos ainda para os privilegiados rentistas.
Essa excrecência legal vigorará por 20 anos, a não ser que a sociedade se mobilize para revoga-la.
As consequências da EC 95 têm servido para aprofundar a austeridade fiscal e o cenário de escassez aplicado somente aos gastos sociais e à manutenção do Estado, quando, na realidade, o gasto delinquente que precisa ser controlado é o gasto financeiro com a chamada dívida pública, que tem crescido de forma exponencial, sem a devida transparência, colocando o Estado brasileiro a serviço do privilégio de grandes bancos rentistas de maneira cada vez mais escandalosa, chegando a desviar diretamente a eles o fluxo de arrecadação tributária com o esquema da chamada Securitização de Créditos Públicos[ix].
O cenário de crise fabricada tem sido propício para outras medidas insanas como privatizações em massa e desfiguração completa da Seguridade Social.
A apresentação da PEC 6/2019 acompanhada de falsa propaganda de déficit estimulou a venda de planos de previdência privada, apesar de não oferecerem garantia alguma de benefício futuro e cobrarem taxas exorbitantes!
Ao contrário de resolver qualquer problema fiscal e tirar o Brasil da crise, como diz a propaganda, a PEC 6/2019 é regressiva e recessiva; responde à demanda do mercado financeiro[x], contém uma série de inconstitucionalidades[xi] e provoca danos à pessoas, à economia do país e às finanças públicas, por exemplo:
1) DANOS ÀS PESSOAS:
- R$ 1 TRILHÃO deixará de chegar às mãos das pessoas, pois a “economia” que o ministro Guedes quer fazer corta aposentadorias, pensões e benefícios da Seguridade Social, atingindo principalmente os mais pobres, mas também os servidores públicos, que terão aumento expressivo de alíquotas em sua contribuição previdenciária e até alíquotas extraordinárias, mesmo depois de aposentados.
2) DANOS À ECONOMIA DO PAÍS:
- O corte de R$ 1 TRILHÃO, que deixará de chegar às mãos das pessoas, deixará de irrigar as economias locais, prejudicando mais de 80% dos Municípios brasileiros, com reflexos para a arrecadação de tributos incidentes sobre o consumo.
3) DANOS ÀS FINANÇAS PÚBLICAS:
- Redução da arrecadação de tributos que incidem sobre o consumo
- Caso retornem com a Capitalização, fim da arrecadação das Contribuições ao INSS (de empregados e empregadores) além do custo de transição que pode chegar a R$ 10 trilhões, se custar aqui o que custou no Chile.
É uma infâmia o fato de que enquanto a PEC 6/2019 retira R$ 1 Trilhão da classe trabalhadora e da economia nos próximos 10 anos, o PLP 112/2019 “legaliza” a remuneração da sobra de caixa dos bancos, que já consumiu R$ 1 Trilhão na última década, e continuará destinando recursos públicos para bancos.
Por sua vez, a tributação das grandes fortunas (PLP 9/2019) e dos lucros distribuídos (PL 1981/2019) garantiriam a arrecadação de R$ 1,25 Trilhão em 10 anos. Os encargos com a chamada dívida pública consomem mais de R$ 1 trilhão por ano! E possuímos mais de R$ 4 trilhões no caixa do Tesouro, BC e em Reservas Internacionais, que já começaram a ser torradas, mais uma vez em benefício do mercado financeiro e não para investimentos geradores de emprego e renda…
Conclusão
O respeito aos direitos humanos e sociais não faz parte do cardápio da equipe econômica que de fato dirige o país, sob o comando da cúpula do mercado financeiro internacional: BIS, FMI e BM.
A EC 95 e a Reforma da Previdência evidenciam o privilégio do mercado financeiro, que se apodera do orçamento público e do maior patrimônio social do povo brasileiro, que é a Seguridade Social.
É incontestável o tremendo privilégio do Sistema da Dívida, que tem transformado o Estado brasileiro em um instrumento a serviço do poder financeiro transnacional, às custas do atraso de nosso próprio desenvolvimento socioeconômico, sendo imprescindível o conhecimento dos mecanismos financeiros por parte de toda a sociedade que paga essa conta , como vem sendo alertado pela Auditoria Cidadã da Dívida[xii].
A fim de desmontar o inaceitável cenário de escassez existente no Brasil, e garantir o atendimento aos direitos humanos, precisamos modificar o modelo tributário para que se transforme em instrumento efetivo de justiça fiscal e distribuição de renda; alterar a política monetária para que atue em favor dos interesses do país e do povo, e não apenas do setor financeiro; rever completamente a exploração mineral predatória e agronegócio voltado para exportação, e enfrentar o Sistema da Dívida por meio de auditoria integral, com participação cidadã, interrompendo esse processo de sangria de recursos e submissão aos interesses do mercado financeiro.
[i] Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida <www.auditoriacidada.org.br>. Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na Câmara dos Deputados Federais no Brasil (2009/2010). Membro da Comissão de Auditoria da Dívida da Grécia, convidada pela Presidente do parlamento Helênico, deputada Zoe Konstantopoulou (2015).
[ii] Fonte dados Op. Compromissadas no Banco Central e Conta única do Tesouro Nacional https://bit.ly/2ZepGfY e Reservas Internacionais https://bit.ly/2XDj5L4
[iii] SELIC https://www.bcb.gov.br/controleinflacao/historicotaxasjuros
[iv] O valor histórico (sem atualização monetária) obtido nos balanços do próprio BC é de R$ 754 bilhões. Se atualizarmos esse valor, chegamos a cerca de R$ 1 trilhão
[v] Sobraram R$ 480 bilhões no caixa do governo em 2015 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/sobraram-r-480-bilhoes-no-caixa-do-governo-em-2015/
[vi] O Banco Central está suicidando o Brasil https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/o-banco-central-esta-suicidando-o-brasil-dh5s162swds5080e0d20jsmpc/
[vii] Trecho da fala disponível em https://bit.ly/2NTPlJo
[viii] Considerando que o projeto de lei que “legaliza” esse esquema financeiro é extremamente confuso, os líderes de todos os partidos, presidente da Câmara e da CFT e relatores foram devidamente alertados dos graves danos do PLP 459/2017 mediante Interpelação Extrajudicial disponível em https://auditoriacidada.org.br/conteudo/interpelacao-extrajudicial-dirigida-ao-relator-do-plp-459-2017-deputado-alexandre-leite/
[ix] Análise dos danos provocados pelo PLP 459/2017 https://auditoriacidada.org.br/conteudo/analise-dos-danos-provocados-pelo-plp-459-2017-as-financas-publicas/
[x] Artigo de DANIEL SIMÕES E FÁTIMA PINEL “BIS | FMI | G10 | ORDENAM REFORMA DA PREVIDÊNCIA NOS PAÍSES”, disponível em
[xi] Carta aos Senadores sobre os graves danos e inconstitucionalidades da PEC 6/2019 https://auditoriacidada.org.br/carta-aos-senadores-danos-financeiros-e-graves-inconstitucionalidades-da-pec-6-2019-existem-outras-alternativas/
[xii] Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br , presente também no Facebook, Instagram, Youtube e Twitter