“Desordem Democrática Econômica Social”, por Rafael Muller

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Democrática, Econômica, Social: Ordem.

Rafael Mulleri

Que ordem – conjunto de regras, leis e estruturas que sustentam uma sociedade – é essa?

A ordem econômica atual que se impõe e mostra as caras na PEC 186 é bem diferente da ordem econômica prevista pela Constituição, configurando-se como um grave risco à democracia. A atual Constituição prevê uma ordem econômica baseada no trabalho e na existência digna e com justiça social.

A ordem que se opera na prática, ditada pelos bancos e a ser positivada na Constituição (transformando-a em uma Constituição do Mercado através da PEC 186), prevê todo privilégio à dívida pública: austeridade, cortes, vedação de investimentos e uma série de medidas, todas com o objetivo de “redução do montante da dívida”. Ou seja: a coisa e o poder do povo – a democracia ela mesma – vê-se cortada, retalhada, em prol dos privilégios de uns poucos rentistas.

Kropotkinii, em seus escritos que datam de 1880-1882, já se questionava sobre que ordem social e econômica é essa que uma minoria ínfima impõe a razão imperante sobre a maioria e se permite manter seus privilégios pela astúcia, corrupção, força e massacre.

A agiotagem matando a indústria: é a isso que eles chamam de administração inteligente dos negócios!” (KROPOTKIN, 2005, p.24), dizia. Séculos mais tarde, em que progredimos?

Pensar sobre a ordem constitucional impõe-nos um desafio cético inicial: duvidarmos se a ordem textualmente prevista, de fato, se processa na realidade. São várias as menções a ordens no texto constitucional: internaiii, internacionaliv, constitucionalv, públicavi, econômicavii, jurídicaviii, políticaix e socialx. Posto em outros termos, todas essas facetas da ordem são os modos como nossas vidas são controladas.

Existe uma ordem internacional: que, idealmente, se guiaria pelo respeito à soberania dos povos. Na prática, o BISxi e seus braços emitem ordens econômicas através dos bancos centrais e suas políticas econômicas para consolidar a exploração e a retirada de autonomia dos povos.

Existe uma ordem interna: que reproduz acriticamente os ditames de instituições internacionais como o Banco Mundial, como vimos recentemente nos textos que embasaram a justificativa da PEC 32xii.

Existe uma ordem econômica-jurídica-política, de aristocratas de carreiras que impõem a sua racionalidade a todo o povo trabalhador explorado, sob critérios ditos técnicos e científicosxiii, mas que em nada colaboram para o progresso social e o desenvolvimento humano integral.

Existe uma ordem pública: que abusa do secretismo, ocultando documentos, para impedir a participação popular nas coisas públicasxiv e, assim, manter uma suposta ordem, pensada enquanto ausência de reivindicações. Existe uma ordem social às avessas. De controle do corpo social, securitismo e vigilância.

No texto da Carta Magnaxv, entretanto, todas essas ordens, idealmente, confluiriam para fundamentos e propósitos: de trabalho (e não escravidão), de livre iniciativa (e não livre exploração) e existência digna (e não apenas resistência).

Apesar disso, a aristocracia econômica caminha a passos largos na sua pressão por subverter, inclusive, a ordem prevista constitucional, para positivar sua ordem de exploração do trabalhador: a PEC 186xvi reafirma e reforça privilégios da dívida pública e da austeridade fiscal sobre os direitos sociais e o trabalho produtivo através de financiamentos e programas de estímulo à economia.

Repita-se: “A agiotagem matando a indústria: é a isso que eles chamam de administração inteligente dos negócios!” (KROPOTKIN, 2005, p.24). Séculos mais tarde, em que progredimos?

[…]
Continua o martírio das criaturas:
– O homicídio nas vielas mais escuras,
– O ferido que a hostil gleba atra escarva,
– O último solilóquio dos suicidas –
E eu sinto a dor de todas essas vidas
Em minha vida anônima de larva!
[…]

Augusto dos Anjosxvii

Assistimos à derrocada da ordem democrática. Esta (a “ordem democrática”) sequer é mencionada nesses termos em nossa Constituição. Até porque democrática mais seria a desordem – “a insurreição do povo contra essa ordem ignóbil, quebrando seus grilhões, destruindo os obstáculos e caminhando para um futuro melhor. É o que a humanidade tem de mais glorioso em sua história” (KROPOTKIN, 2005, p.89)

iDoutorando em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa.

iiKROPOTKIN, Piotr. Palavras de um revoltado. São Paulo: Ícone, 2005.

iiiNo preâmbulo.

ivNo preâmbulo.

vNo art. 5º XLIV.

viNo art. 34 III; no art. 136; no art. 144.

viiNo art. 170; no art. 173.

viiiNo art. 127.

ixNo art. 144 I.

xNo art. 193; no art. 144 I.

xv“Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social” (CF88)

xviiANJOS, Augusto dos. Eu e outras poesias. Porte Alegre: L&PM, 2002.